28 Novembro 2025
O anúncio de uma inédita Universidade Federal Indígena (Unindi) pelo governo federal, nesta quinta-feira (27), é mais que a conquista de uma política pública. Para os povos originários, é também um ato de reparação histórica e um reconhecimento fundamental da ciência que brota da floresta. Um projeto que é fruto de anos de décadas de luta de suas lideranças.
A reportagem é de Leonardo Fernandes, publicada por Brasil de Fato, 27-11-2025.
“O Brasil é o único país no mundo a ter nome de uma árvore”, lembra a deputada Célia Xakriabá, que fez parte do processo de concepção da nova universidade.
“Na verdade, a universidade indígena já existe há mais de 1.500 anos atrás. Hoje é apenas assinatura. Mas, na verdade, antes de assinar com a caneta, nós assinamos com sabedoria da floresta, nós assinamos com o jenipapo e o urucum”, afirma a parlamentar, que é graduada em Educação Indígena, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e estudiosa das experiências de universidades indígenas na América Latina.
“Em 2016, tive a oportunidade de pesquisar sobre universidade indígena no México e as universidades autônomas. E o Brasil ganha um momento muito importante porque é reconhecendo a universidade indígena, mas com a pluralidade de povos diferentes. E hoje pensar as epistemologias indígenas é pensar uma superação do epistemicídio também. Quantas vezes o nosso conhecimento indígena, a ciência indígena foi negada na universidade?”, comenta Xakriabá.
Consagração de um direito
Maurício Terena, advogado indígena, explica que a universidade representa a consagração do mandamento constitucional e o respeito ao conhecimento tradicional.
“Uma universidade indígena vem que para consagrar o respeito ao conhecimento tradicional indígena, que a história desse país é fundada numa perspectiva da qual os nossos corpos, os nossos conhecimentos, eles eram invalidados por essa ciência hegemônica. Então, poder hoje estar testemunhando esse lançamento dessa universidade indígena, eu acho que acima de tudo como advogado indígena, é a consagração do mandamento constitucional, mas também a promoção e o respeito dos conhecimentos indígenas”, afirma.
Terena lembra das dificuldades que passou para se formar em direito, sendo um estudante indígena. “Eu relembro um pouco das violências que a gente passa no ensino superior quando a gente fala que é indígena, quando a gente traz as perspectivas, no meu caso, do direito indígena para o debate”, recorda o advogado.
Territórios transformados
Além da importância epistemológica e climática, a universidade indígena é vista como um marco importante para a inclusão e a melhoria de vida nas comunidades. Para estudantes como Ricardo, do povo Potiguara, a universidade indígena é uma questão de resistência e proporciona visibilidade para seu povo. “Ajuda a dar visibilidade para o nosso povo e à nossa resistência”, comentou brevemente, tomado pela timidez, o jovem de 18 anos, que viajou da Paraíba a Brasília para prestigiar a criação da Unindi.
Josi é da etnia Galibi-Marworno, do estado do Amapá. Ela disse que estava emocionada por estar presente no que considerou um momento histórico para os povos indígenas do Brasil, pelo qual muitos de seus irmãos tombaram pelo caminho. “A maioria das nossas lideranças que lutaram já tombaram e isso é um fruto de muitas que já se foram e nós estamos vivendo esse momento aqui enquanto estudante. Então a gente está aqui nesse momento acompanhando todo esse processo que foi feito nesse momento histórico para nós, povos indígenas”, disse a indígena de 30 anos, que estuda História na Universidade Federal do Pará (UFPA).
“É um marco importante porque a inclusão que a gente tem hoje nas universidades federais é pouca. Porque olha, eu sou do estado Amapá, e saio para fazer o curso em outro estado. Então ter a universidade, e quem sabe ter os campis dentro do nosso território, é muito importante para nós”, afirmou.
Werymehe Pataxó é da região centro-oeste de Minas Gerais, e considera que Unindi é mais um passo na reparação histórica ainda em dívida com os povos indígenas.
“A gente fala que o Brasil ele tem uma dívida histórica e principalmente conhecimento. Então a academia foi um dos últimos lugares, que a gente fala que recebe os povos indígenas, mas recebe de uma forma ainda muito racista”, aponta a indígena, que é formada em psicologia pela UFMG e agora pretende apoiar o projeto da nova universidade.
“Desde o tempo da invasão, os portugueses que chegaram, trouxeram suas leis, seus conhecimentos, as suas armas, as doenças, e isso fez um impacto muito gigante para os povos indígenas. E aí o que eles fizeram? Escreveram sobre a gente, sobre o nosso conhecimento. Então hoje, todo o conhecimento que a academia tem é a partir do conhecimento dos povos indígenas. Só que eles escrevem do jeito deles, nunca citam os povos indígenas. Então essa construção da universidade indígena é para a gente mostrar que estão aqui e que também somos capazes de caminhar lado a lado com todo nosso conhecimento”, argumenta a indígena Pataxó.
Por sua vez, Maurício Terena já vislumbra transformações profundas a partir dessa experiência acadêmica que, se bem não está restrita aos povos indígenas, sendo uma universidade aberta a toda a sociedade, tem potencial para promover grandes viradas de pensamento na sociedade brasileira.
“Isso gera na sociedade brasileira uma nova maneira de se organizar politicamente. Eu já fico curioso para daqui 10, 15 anos, ver como ela vai transformar acima de tudo as nossas realidades locais, mas também a configuração da sociedade como um todo, e a academia também, porque a gente vai passar a trazer conhecimentos que, em alguma medida, foram invalidados durante o processo de construção desse país. Acho que trazer uma virada epistemológica mesmo da ciência no nosso país”, avalia.
Universidade do clima
Celia Xakriabá aponta que não é possível pensar em soluções climáticas sem reconhecer a ciência e a tecnologia ancestral dos povos indígenas. Ela chega a sugerir que a universidade indígena pode ser reconhecida como a universidade do clima, algo que não existe em nenhum lugar do mundo.
“No mundo inteiro não existe escola do clima e universidade do clima. E a universidade indígena já pode ser reconhecida também como a universidade do clima. Nós, povos indígenas, somos 5% da população mundial e protegemos mais de 80% da sociobiodiversidade”, propõe a parlamentar, que defende que a “ciência do clima” esteja enraizada nos territórios.
Com um toque de poesia e ancestralidade, a deputada reforça a ideia de que preservar as florestas e o meio ambiente já é uma alternativa e uma solução, e deve passar pelo reconhecimento dos saberes tradicionais. “A Terra é a professora mais antiga do planeta e a floresta também é escola, a floresta também é universidade”, recita.
Segundo o governo, os grupos técnicos interministeriais responsáveis pelo desenho das instituições atuarão ao longo de 2026 e a previsão é que as universidades entrem em funcionamento em 2027.
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