18 Novembro 2025
Ao associar o aumento das emissões e o imperialismo verde, os mecanismos de regulação do mercado não caminham para resolver problemas sociais, mas sim para aumentar o lucro.
O artigo é de Francisco Figueiredo, divulgador científico e diretor de estratégia da Agência Índica, publicado por ((o))eco, 17-11-2025.
Segundo ele, "a COP30, se conduzida com coerência e visão jurídica sólida, pode marcar o início de um novo constitucionalismo ambiental brasileiro. Um constitucionalismo que reconhece o meio ambiente como fundamento da soberania, da dignidade humana e da legitimidade do próprio Estado Democrático de Direito".
Eis o artigo.
No contexto de um mundo que se reorganiza em torno das transições ecológica e energética, o Brasil ocupa um lugar primordial. Com uma matriz elétrica predominantemente renovável, ampla disponibilidade de recursos hídricos e a maior floresta tropical do planeta, o país pode liderar a construção de um modelo de desenvolvimento realmente sustentável compatível com o princípio constitucional da função socioambiental da propriedade e com os compromissos assumidos no Acordo de Paris, sem explorar tais recursos através de um viés de lucro e utilitarismo. No entanto, essa conjuntura não se limita apenas ao debate ambiental, mas também representa um momento importante para a ampliação do protagonismo brasileiro na diplomacia, especialmente na construção de acordos e relações multilaterais com parceiros estratégicos como BRICS e União Européia. A COP30 é uma oportunidade para o Brasil reposicionar sua política externa e afirmar-se como mediador entre o Norte e o Sul Global, articulando interesses comuns entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, e promovendo a ideia de responsabilidades comuns, porém diferenciadas, consagrada na Rio 92.
Com a União Europeia, o Brasil busca consolidar uma agenda de desmatamento zero e transição verde vinculada à ratificação do Acordo Mercosul-UE, pautando uma diplomacia ambiental baseada em garantias jurídicas. Com os Estados Unidos, a aproximação passa pela cooperação tecnológica e pelo investimento em biocombustíveis e hidrogênio verde. Já no eixo dos BRICS, o país reforça uma visão de sustentabilidade que se opõe à financeirização da natureza e ao monopólio do Norte Global sobre o financiamento climático. O Brasil se coloca, assim, como interlocutor entre blocos, defendendo que a transição energética não pode reproduzir a mesma lógica de exploração e desigualdade que sustentou o sistema industrial-carbonífero. Entretanto, o real protagonismo brasileiro na COP, que corresponde aos interesses do povo e das avançadas discussões da sociedade civil, só se consolidará se for acompanhado de uma reflexão crítica sobre os instrumentos econômicos e jurídicos utilizados no regime climático global.
Com isso em vista, o Brasil foi responsável por apresentar a proposta para “Coalizão Aberta de Mercados Regulados de Carbono”, endossado pelos principais players políticos participantes do evento, uma tentativa de criar uma rede colaborativa para construção de sistemas de Monitoramento, Relato e Verificação (MRV), metodologias de contabilidade de carbono e possíveis regulações no potencial de créditos de alta integridade. Tal proposta aparece como um dos principais temas a ser defendido pelo Estado brasileiro, mas comparado ao tamanho da importância dada à temática, grande também é a sua ambiguidade.
Apresentado como solução técnica para as emissões de gases de efeito estufa, a mercantilização do carbono traduz uma tentativa de internalizar a poluição dentro da lógica produtiva, transformando o dano ambiental em mercadoria. Esse modelo, amplamente defendido nas negociações internacionais, é o ponto de inflexão que evidencia a tensão entre a racionalidade econômica e a racionalidade ecológica. Nesse sentido, é um erro pensar que o mercado de carbono tem por objetivo resolver o problema da crise climática. Ele tem como único objetivo resolver um problema de externalidade (emissão de gases), internalizando essa emissão dentro do ciclo de produção. E faz isso da forma mais torta: através de um direito de propriedade para negociação, que gira em torno do próprio mercado. Não é na forma de imposto, o chamado “imposto pigouviano”, onde as “benesses”, os “ganhos” financeiros da compensação da poluição estariam com um agente externo ao mercado, o Estado, e isso gera uma contradição central do modelo. Emite-se carbono como externalidade de uma linha de produção que tem como objetivo gerar lucro. Cria-se um mercado que modera as transações desses direitos de emissão, “tapando o buraco da externalidade”. Nem na teoria funciona. Caso parta-se da premissa de que o mercado tem por objetivo final resolver o problema das mudanças climáticas, conclui-se que seu futuro é o fim: os agentes, interessados em zerar este custo, zerariam suas emissões, acabando com esse mercado. Dentro da própria teoria liberal, não conheço nenhum caso onde um mercado tem, por objetivo final, acabar.
Há ainda mais um agravante neste caso: as grandes empresas, campeãs em poluição e, por consequência, maiores clientes do mercado, investem pesado em startups de crédito de carbono. Ou seja: eu, empresa poluidora, emito carbono como externalidade da minha linha de produção. Essa linha de produção remunera. Com parte desse dinheiro, eu compenso minhas emissões de carbono, pagando a uma startup de créditos que eu mesmo sou dono. Qual a forma de maximizar os ganhos dessa cadeia como um todo? Se eu reduzo as emissões e, consequentemente, reduzo a produção, deixo de gastar compensando essas emissões mas, ao mesmo tempo, deixo de ganhar ao reduzir a produção. Do lado da startup geradora de crédito, a demanda cai, e o preço também, e deixo de ganhar compensando o carbono, que não foi emitido. Se, por outro lado, eu elevo a produção, passo a ser melhor remunerado pela linha, e meu gasto com crédito aumenta. Com o aumento da demanda, o preço do crédito sobe, e a startup que eu mesmo sou dono aumenta seus lucros.
Se os mecanismos de regulação do mercado fossem perfeitos, não haveria problema: eu estaria aumentando as emissões e compensando-as proporcionalmente. A grande questão é que os mecanismos de regulação de mercado não caminham, historicamente, para resolver problemas sociais, mas sim para aumentar o lucro. As emissões são, muitas vezes, omitidas, e a compensação é, muitas vezes, inflada. Além dos casos onde o lobby garantiu que atividades que não sequestram carbono, como a produção de soja, possam gerar créditos pelo carbono que não fixou no solo.
A isso se soma o fato de que esse próprio movimento de lobby é alimentado por uma estrutura internacional marcada por relações de poder profundamente assimétricas, e, portanto, torna-se impossível dissociar a expansão dos mercados de carbono de uma lógica imperialista que subordina os países detentores de florestas tropicais aos interesses regulatórios e financeiros do Norte Global. E, enquanto esse processo se intensifica, observa-se que a metodologia predominante para certificação e contabilidade de créditos, concebida majoritariamente na Europa e voltada para realidades temperadas, não se adequa com precisão às dinâmicas ecológicas das rain forests, já que ignora especificidades como ciclos de umidade, variação de biomassa e complexidade socioclimática dos territórios amazônicos. Por essa razão, o mercado de carbono opera não apenas como um instrumento de financeirização da natureza, mas como mecanismo que recentraliza poder econômico e normativo nos países desenvolvidos, reproduzindo, assim, a estrutura imperialista que historicamente determinou quem regula e quem obedece.
O resultado final é um buraco de externalidade mal tampado, maior lucro para as corporações e a criação de um mercado que teve, como único objetivo, gerar lucro para os agentes que já lucram com a poluição. Isso significa que toda experiência que faça parte do ciclo do mercado de carbono é problemática? Não, mas que o mercado não funciona como solução estrutural do problema de emissões. Ele funciona como sustentação financeira de soluções locais, enquanto não há um plano contundente para financiar políticas de reflorestamento.
Essa crítica expõe o cerne do desafio brasileiro na COP30: conciliar liderança ambiental com soberania econômica, sem reproduzir a lógica do capital especulativo fantasiado de compromisso climático. Para o Brasil, o mercado de carbono só pode ser instrumento legítimo se estiver submetido a uma regulação pública rigorosa, transparente e baseada em critérios socioambientais. Isso implica fortalecer a atuação do Estado como agente regulador, assegurar a participação de povos indígenas e comunidades tradicionais na formulação de políticas e impedir que o território amazônico seja transformado em ativo financeiro a serviço de grandes corporações.
No plano interno, a realização da COP30 também provoca uma reorganização institucional profunda. O fortalecimento do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, a reativação do Fundo Amazônia e a integração de políticas interministeriais demonstram que o país tenta restabelecer uma governança ambiental coerente com sua Constituição. A pauta indígena emerge como eixo estruturante desse processo. A proteção territorial, a consulta prévia e a valorização dos saberes tradicionais passam a ser reconhecidas como condições essenciais para a implementação de políticas climáticas justas. Isso insere a questão ambiental no centro do pacto democrático brasileiro, vinculando o direito à terra, à cultura e ao ambiente equilibrado como direitos humanos fundamentais.
Por fim, a COP30 abre para o Brasil uma oportunidade histórica de liderar a transição global para um modelo econômico de baixo carbono e energias limpas. Mas o êxito dessa liderança dependerá de romper com o paradigma de mercado que transforma a crise climática em oportunidade de lucro. A reconstrução da imagem internacional do país só será duradoura se o Brasil assumir o compromisso de pautar o desenvolvimento sustentável não como discurso de conveniência, mas como projeto de Estado. Isso significa compreender a Amazônia não como fronteira de compensação, e sim como horizonte civilizatório. A COP30, se conduzida com coerência e visão jurídica sólida, pode marcar o início de um novo constitucionalismo ambiental brasileiro. Um constitucionalismo que reconhece o meio ambiente como fundamento da soberania, da dignidade humana e da legitimidade do próprio Estado Democrático de Direito.
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