04 Novembro 2025
Nos próximos dez anos, metade dos povos indígenas que vivem isolados desaparecerá.
O artigo é de Richard Gere, ator e ativista na luta pelos direitos humanos no Tibete, publicado por El País, 03-11-2025.
Eis o artigo.
Cresci muito perto do território da nação Onondaga. Situado a nove quilômetros ao sul de Siracusa (Nova York), é o centro sagrado da Confederação Iroquesa, a sede de um conselho de chefes com mil anos de antiguidade e um povo que, antes da invasão europeia, habitava uma extensão de mais de 10 mil quilômetros quadrados nas colinas do norte do estado de Nova York. Desde o contato com os europeus, o território dos onondagas foi reduzido a menos de 30 quilômetros quadrados, que lutam diariamente para proteger.
O contato com os europeus resultou no roubo de suas terras, doenças, violência e morte. Mas eles ainda estão aqui.
Atualmente, existem 196 grupos indígenas isolados em todo o mundo. Ao contrário do povo onondaga, é provável que metade deles não sobreviva nos próximos dez anos se os governos e as empresas não cessarem o desmatamento em seus territórios, o roubo de minerais e o avanço cada vez maior para o coração de florestas que encolhem sem parar — das quais depende sua existência.
Essa é a principal conclusão do relatório Uncontacted Indigenous Peoples: at the edge of survival (Povos indígenas isolados: no limite da sobrevivência), publicado nesta semana pela Survival International, uma organização dedicada à defesa dos direitos dos povos indígenas. A extração e exploração de recursos naturais com fins lucrativos é a ameaça mais grave e afeta 96% de todos os povos isolados, segundo a pesquisa da Survival.
Essa exploração provoca um genocídio silencioso, que passa despercebido pelo resto do mundo. E, com cada destruição de um povo, também morrem sua língua, sua cultura, seus conhecimentos botânicos e sua cosmologia. Sempre pensei que precisamos da diversidade deste planeta para sobreviver, que nossos povos e culturas diferentes são essenciais para a saúde de todos. Se existem lugares em que esse tipo de sofrimento é possível e se maltrata assim um povo, acabaremos todos em perigo, mesmo que desviemos o olhar.
Os povos indígenas isolados rejeitam o contato com o mundo exterior de forma deliberada e constante — uma reação às suas circunstâncias. Vivem em florestas remotas. Alguns, em ilhas. Sabem que o mundo exterior existe, mas o rejeitam. Em muitos casos, a origem dessa decisão está nas lembranças de contatos e invasões que trouxeram devastação, violência, epidemias e morte.
Os membros do povo Mashco Piro, do Peru, foram escravizados, espancados, maltratados, torturados e enforcados por coletores de borracha na década de 1880. Os que escaparam e se refugiaram nas cabeceiras do Amazonas permanecem isolados desde então. No entanto, agora surgiram madeireiros dispostos a derrubar suas árvores centenárias. À medida que as motosserras se aproximam, os mashco piro deixam símbolos — lanças cruzadas nos caminhos — como reafirmação de que a terra é deles e como ameaça. Os avisos enviam uma mensagem: o contato é perigoso tanto para os mashco piro quanto para quem se aproxima demais. Os confrontos já mataram pessoas de ambos os lados — entre elas, dois madeireiros mortos por flechas em agosto de 2024.
A perda das florestas dos povos isolados favorece o genocídio. Mas as doenças também os assolam. Basta um único forasteiro — uma tosse, um contato fugaz — para desencadear uma epidemia. Os povos isolados não têm imunidade contra doenças que, no mundo industrializado, são leves. E essas doenças provocadas pelo contato não apenas matam: elas enfraquecem os sobreviventes e as comunidades, causando trauma e dor. Além disso, perde-se a sabedoria dos anciãos, que com frequência são os primeiros a morrer.
Quando os britânicos colonizaram as Ilhas Andamã, na Índia, na década de 1850, os cerca de 7.000 habitantes da etnia Gran Andamanesa eram saudáveis e robustos. Mas os britânicos trouxeram o sarampo, a gripe e a sífilis — esta última com suas próprias conotações de abuso sexual e exploração. As epidemias devastadoras e a violência acabaram com mais de 99% da população gran andamanesa. Hoje restam apenas cerca de 50 pessoas.
No entanto, tudo isso não pertence apenas a um passado distante.
A grande maioria dos povos isolados vive no Brasil. Lá, entre 1967 e 1975, o sarampo exterminou uma comunidade isolada de ianomâmis durante a construção de uma estrada que atravessava suas terras. Entre 1980 e 1986, quando colonos e construtores começaram a invadir o território do povo Suruí Paiter, três quartos de seus membros morreram de sarampo e tuberculose. O povo Nambikwara perdeu mais de 90% de sua população, sobretudo por gripe, malária, sarampo e tuberculose, após o contato no século XX.
Em 1977, Karapiru Awá levou um tiro nas costas dos mesmos invasores que assassinaram sua família, na Amazônia oriental brasileira. “Sofri muito porque não tinha nenhum remédio para aplicar na ferida. Andei por dias, cheio de dor, com a bala nas costas, sangrando. É incrível que eu tenha conseguido escapar. Foi graças a Tupã (o Criador)”. Passou uma década sozinho, sem parar de caminhar.
“Fiquei muito tempo na selva, faminto e perseguido por fazendeiros. Estava sempre fugindo, sempre sozinho. Não tinha família que me ajudasse, nem ninguém com quem conversar”.
Em 1988, Karapiru encontrou-se a 640 quilômetros de seu território original com um fazendeiro brasileiro e foi com ele para sua aldeia. Os trabalhadores da FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), agência do governo brasileiro para assuntos indígenas, foram ao povoado para descobrir que idioma ele falava e a que grupo isolado pertencia. Pouco depois voltaram com um jovem awá chamado Xiramukū, que se revelou ser o filho de Karapiru; sem que ele soubesse, o filho havia sobrevivido ao massacre. Embora o reencontro lhe trouxesse alegria, Karapiru continuou vivendo com profunda tristeza.
Assim contou à Survival Wamaxuá Awá, outro antigo membro dos awá que também vivera isolado: “Quando eu vivia na floresta, tinha uma boa vida. Agora, se encontro algum dos awá isolados na mata, digo a ele: ‘Não vá embora! Fique na floresta; fora dela não há nada para você’”.
Antonio Cotrim trabalhou para a FUNAI em 1972, quando o governo ainda tinha como objetivo estabelecer contato com povos isolados. Na época, ele disse: “O que estamos fazendo é um crime. Quando entro em contato com os povos indígenas, sei que estou obrigando uma comunidade a dar o primeiro passo numa direção que levará seus membros à fome, à doença, à desintegração — em muitos casos, à escravidão, à perda de suas tradições e, por fim, a uma morte na mais absoluta miséria, que chegará cedo demais”.
Podemos pensar que estamos mais preparados do que aqueles que ignoraram os genocídios após o contato dos europeus com as Américas. No entanto, hoje, os povos indígenas isolados continuam sofrendo o assalto de um colonialismo incessante, que os aprisiona no estereótipo de seres primitivos, os despreza por considerá-los inferiores e valoriza o consumo e o lucro acima do direito de conservar suas terras e viver como desejam.
Passei toda a minha vida envolvido na luta pelos direitos humanos e territoriais. Acredito que os 196 grupos isolados que restam são uma parte essencial da diversidade do planeta. É necessário reconhecer que suas terras lhes pertencem, proteger esses territórios e permitir que sejam eles os que decidam como querem viver.
O povo onondaga tem uma tradição pela qual tenho enorme respeito. Antes de tomar uma decisão importante, seus chefes refletem sobre as consequências que ela poderá ter — não apenas para eles, nem mesmo para seus filhos, mas para as sete gerações seguintes.
Para muitos povos isolados, restam apenas dez anos. Já é hora de pôr fim a esse genocídio silencioso.
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