04 Novembro 2025
Um estudo liderado pelo ganhador do Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, alerta que países com alta desigualdade têm sete vezes mais probabilidade de sofrer um declínio democrático do que países mais equitativos, e se concentra na riqueza herdada e no controle de empresas de tecnologia.
A reportagem é de Silvia Laboreo Longás, publicada por El País, 04-11-2025.
O mundo está vivenciando uma “emergência de desigualdade”. Esse é o principal alerta do primeiro relatório sobre desigualdade encomendado pela presidência do G-20. O estudo, apresentado nesta terça-feira, fornece novos dados que ilustram a dimensão desse problema e propõe a criação de um painel internacional independente sobre desigualdade para orientar as políticas públicas.
“Sentimos que hoje vivemos uma crise de desigualdade com muitas dimensões, não apenas econômicas, mas também democráticas”, explica o economista americano e ganhador do Prêmio Nobel, Joseph Stiglitz, presidente do comitê de seis especialistas que elaborou o relatório e que descreve o momento atual, com alta concentração de riqueza nas mãos dos mais privilegiados, como um “ponto de virada”, em entrevista por telefone.
O estudo, elaborado pelo Comitê Extraordinário de Especialistas Independentes sobre Desigualdade Global e encomendado pelo presidente sul-africano Cyril Ramaphosa durante a presidência da África do Sul no G-20, revela que, entre 2000 e 2024, o 1% mais rico do mundo abocanhou 41% de toda a nova riqueza, enquanto apenas 1% foi para os 50% mais pobres, segundo cálculos baseados em dados do Laboratório Mundial da Desigualdade. “O sistema econômico que temos hoje não proporciona bem-estar, dignidade ou políticas públicas para a maioria da população mundial”, explica Adriana E. Abdenur, cientista social brasileira, cofundadora da Plataforma CIPÓ e uma das autoras do relatório, em entrevista por videoconferência.
“Isso exige uma resposta forte se não quisermos entrar em um ciclo vicioso em que, quando há muita desigualdade, os ricos ditam as regras do jogo para preservar sua riqueza. Será muito difícil sair dessa situação”, acrescenta Stiglitz.
A desigualdade de renda e riqueza se traduz em desigualdades na saúde, no acesso à justiça e nas oportunidades.
Joseph Stiglitz, economista americano e vencedor do Prêmio Nobel de Economia.
Além disso, o 1% mais rico viu sua riqueza aumentar em média US$ 1,3 milhão (aproximadamente € 1,12 milhão) desde 2000, em comparação com uma média de US$ 585 (aproximadamente € 508) para a metade mais pobre do planeta.
“Em outras palavras, não é de se admirar que tantas pessoas ao redor do mundo sintam que seu padrão de vida estagnou e que a vida está se tornando cada vez mais cara. Isso está intimamente ligado à dramática concentração de riqueza no topo da pirâmide social”, destaca Abdenur. “A desigualdade de renda e riqueza se traduz em desigualdades na saúde, no acesso à justiça e nas oportunidades”, enfatiza Stiglitz.
Oitenta e três por cento dos países, representando 90% da população mundial, se enquadram na definição do Banco Mundial de alta desigualdade. Embora a desigualdade entre indivíduos em nível global tenha diminuído ligeiramente graças ao crescimento da renda em alguns países, como a China, a desigualdade interna disparou. Além disso, a disparidade de renda entre o Norte e o Sul globais permanece muito grande.
O comitê, presidido pelo ganhador do Prêmio Nobel de Economia, baseou suas conclusões em consultas com cerca de 80 economistas e especialistas em desigualdade de renome, cujas conclusões pintam um quadro sombrio. Hoje, a riqueza dos bilionários equivale a 16% do PIB global, atingindo seu nível mais alto de todos os tempos. Em contrapartida, 25% da população mundial, o equivalente a 2,3 bilhões de pessoas, enfrenta insegurança alimentar moderada ou grave; ou seja, uma em cada quatro pessoas é obrigada a pular refeições regularmente. Isso representa um aumento de 335 milhões desde 2019.
O aumento da desigualdade está claramente ligado à erosão democrática. "Estamos tendo sucesso em algumas áreas e falhando em outras, como a acumulação de riqueza no topo da pirâmide social, o que é particularmente perigoso para o funcionamento da nossa democracia", destaca Stiglitz.
Segundo o estudo, países com altos índices de desigualdade têm sete vezes mais probabilidade de sofrer um declínio democrático do que países mais equitativos. “Essa foi uma das principais conclusões da nossa análise: a riqueza extrema, como a que vemos atualmente no mundo, não é apenas um meio de acesso a um estilo de vida mais confortável. As desigualdades econômicas tendem a se traduzir em desigualdades políticas, por exemplo, no acesso à justiça ou na capacidade de ter voz nos processos políticos”, explica Abdenur.
“Esse problema é agravado pelo surgimento de grandes plataformas tecnológicas, que colocaram o controle das mídias sociais — que são, por assim dizer, a praça pública do século XXI — nas mãos de alguns bilionários”, acrescenta. “[As empresas de tecnologia]”, explica Stiglitz, “não só afetam a política da maneira usual, influenciando ou financiando campanhas e políticos, mas também indiretamente, controlando a mídia, incluindo as redes sociais. Isso é muito importante, porque os algoritmos determinam o que as pessoas veem e isso [por sua vez] determina como elas veem o mundo”, completa.
“No meu país, o Brasil, vemos que a falta de regulamentação das grandes plataformas tecnológicas está permitindo uma concentração de riqueza que mina nosso processo democrático. Mas isso não acontece só no Brasil. Está ocorrendo tanto em países ricos quanto em países em desenvolvimento”, enfatiza Abdenur.
A desigualdade de riqueza não é uma crise momentânea; é um problema intergeracional. E se não a enfrentarmos agora, veremos a situação piorar nas próximas décadas.
Adriana E. Abdenur, cientista social brasileira e cofundadora da Plataforma CIPÓ
Além disso, dados recentes sobre o aumento da riqueza herdada mostram que US$ 70 trilhões serão transferidos para herdeiros nos próximos 10 anos. “Este é um grande desafio para a mobilidade social, a equidade e a igualdade de oportunidades. Mais uma vez, a desigualdade de riqueza não é uma crise momentânea; é um problema intergeracional. E se não a enfrentarmos agora, veremos a situação piorar nas próximas décadas”, alerta o coautor do relatório. “A desigualdade é uma traição à dignidade humana, um impedimento ao crescimento inclusivo e uma ameaça à própria democracia. Enfrentá-la é um desafio intergeracional inevitável”, afirmou Ramaphosa em um comunicado à imprensa.
Especialistas propõem ações em três áreas para combater a desigualdade. Em nível internacional, defendem a reforma das regras econômicas globais, desde a regulamentação da propriedade intelectual (especialmente em questões como pandemias e mudanças climáticas) até a reformulação das regras tributárias para garantir uma tributação mais justa das empresas multinacionais e dos mais ricos.
Em âmbito nacional, defendem a promoção de regulamentações favoráveis aos trabalhadores, a redução da concentração empresarial, a tributação de grandes ganhos de capital, o investimento em serviços públicos e a adoção de políticas fiscais mais progressivas. Por fim, advogam novos modelos de cooperação entre os países em matéria fiscal, comercial e de transição verde.
Um painel de especialistas
Uma das principais conclusões do Comitê, explica Stiglitz, é que houve “falta de análise, dados e monitoramento das tendências de curto e longo prazo, bem como falta de identificação dos fatores que impulsionam a desigualdade e de propostas de medidas políticas que possam combatê-la”. “Há uma crise de desigualdade e, para combatê-la, precisamos de uma base mais sólida para compreendê-la”, acrescenta.
Portanto, recomendam, como um pedido “prioritário” ao G-20, a criação de um Painel Internacional sobre Desigualdade (IPI), nos moldes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). “Acreditamos que algo semelhante [ao IPCC] é necessário para esta emergência de desigualdade, algo que reúna conhecimento técnico não apenas para avaliar as evidências, mas também para ajudar a coletar dados melhores e mais abrangentes”, explica Abdenur.
O professor sul-africano Imraan Valodia, da Universidade de Witwatersrand (WITS) e coautor do relatório, concordou em uma declaração: “Muitas estimativas parecem ter subestimado seriamente sua magnitude. Sem uma análise adequada, a desigualdade saiu do controle e é hora de enfrentá-la.”
“Precisamos de um fórum permanente para que especialistas independentes avaliem as evidências e proponham ideias que ajudem os países a combater a desigualdade”, continua Abdenur. “Não se trata apenas de um exercício acadêmico. É útil para formuladores de políticas, sociedade civil, setor privado, academia e mídia”, acrescenta. Porque, para a especialista, “compreender a desigualdade é uma questão técnica; combatê-la é uma escolha política”.
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