01 Novembro 2025
Madre de Dios, região no sudeste do Peru, fronteira com o Acre, é reflexo de um padrão: na região, a riqueza do ouro e a pobreza coexistem com autoridades que defendem negócios particulares, enquanto as facções impõem sua lei e o ouro flui para os mercados internacionais, deixando um ciclo interminável de violência e devastação em seu rastro.
A informação é de Pamela Huerta, publicada por InfoAmazônia, 29-10-2025.
Em Puerto Maldonado, a capital de Madre de Dios, o calor é implacável. As ruas queimam e a umidade é sufocante. Mas no escritório do governador regional – a mais alta autoridade local na região – Luis Otsuka Salazar, a atmosfera é diferente: o ar condicionado diminui a temperatura, as poltronas de couro branco reluzem e nas mãos do funcionário brilha um imponente anel de ouro que a lei o proíbe de explorar em rios e córregos. A cena resume a contradição desse departamento: um funcionário público enriquecido pelo próprio negócio que ele deveria, no mínimo, estar supervisionando.
Otsuka não esconde sua dupla condição. Ele é governador e garimpeiro. “Comecei a trabalhar para extrair ouro quando tinha 10 anos de idade”, lembra ele. O que ele omite é que a mineração de aluvião – a única possível em Madre de Dios – é proibida. Mas ele defende o negócio abertamente e seu argumento revela algo mais profundo: quando aqueles que deveriam fazer cumprir a lei fazem parte do negócio, a fiscalização morre no papel.
Os crimes ambientais na Amazônia peruana estão intimamente ligados à corrupção, que permeia as autoridades em todos os níveis. O poder econômico, ampliado pelas receitas do tráfico de drogas e fortalecido pelo garimpo ilegal, compra todos os tipos de cumplicidade: faz com que as autoridades que deveriam supervisionar as leis ambientais façam vista grossa, os reguladores forneçam documentação que legalize produtos de origem ilícita e os políticos eleitos comprem os votos necessários para permanecer no poder.
Das 250 autoridades eleitas localmente, incluindo governadores regionais, prefeitos provinciais e prefeitos distritais nas cinco regiões que compõem a Amazônia peruana: Amazonas, Madre de Dios, San Martín, Loreto e Ucayali, identificou-se que 200 são ou foram investigados pelo Ministério Público do Peru. Um total de 2.933 crimes em 1.993 processos.
Do total de crimes apontados pelo Ministério Público, 58,54% correspondem a crimes contra a administração pública, seguidos por crimes contra o patrimônio, crimes contra a fé pública, crimes ambientais, crimes contra a liberdade, lavagem de dinheiro, entre outros.
Esses números alarmantes deixam claro que a disputa pelos recursos da Amazônia peruana também inclui pessoas em cargos eletivos. Por isso, Amazon Underworld e Al Margen criaram uma ferramenta que mostra as denúncias feitas contra esses funcionários e os dados relevantes: o número de denúncias, os números dos processos e a situação atual das acusações.
A região Amazonas é onde se concentra o maior número de investigações de autoridades eleitas em nível local, com 832 crimes sob investigação. Ela é seguida por San Martín, com 702, Loreto, com 574, Ucayali, com 465 e Madre de Dios, com 360.
Esta última é uma região rica em ouro, cortada pela Rodovia Interoceânica. Essa área exemplifica como a corrupção não apenas permite crimes ambientais, mas também facilita a instalação de grupos criminosos internacionais violentos que ditam as regras no dia a dia.
Reflexo da Amazônia peruana Madre de Dios, a capital da biodiversidade do Peru, um departamento amazônico de 85 mil km², reflete um padrão mais amplo na Amazônia peruana: autoridades eleitas transformando seu papel de guardiãs do interesse público em um trampolim para defender negócios privados. Ao fazer isso, elas abrem caminho para crimes ambientais em grande escala.
“Qual é a solução? Que as pessoas queiram se formalizar? Tudo bem! Por que proibiram a concessão de mineração em Madre de Dios? Por quê? Ah, para a conservação da floresta? Que conservação? Para que esses canalhas das ONGs possam ficar ricos? Como é possível que, por construir uma estrada, eu esteja sendo denunciado porque supostamente criei uma zona de amortecimento?”.
A fala é de Luis Otsuka, governador regional de Madre de Dios e garimpeiro desde criança. O caso de Otsuka não é isolado. Madre de Dios é formada por três províncias: Tambopata, Tahuamanu e Manu, que subdividem seu território em um total de 11 distritos. Das 12 autoridades que governam esse departamento, pelo menos sete (60%) têm vínculos com a mineração. Seis delas estão registradas elas próprias ou parentes diretos no Registro Integral de Formalização da Mineração (Reinfo), um registro de caráter temporário para evitar a criminalização de garimpeiros que desejavam se formalizar, e quatro têm ou tiveram títulos de mineração concedidos pelo Instituto Geológico, Mineiro e Metalúrgico (Ingemmet), um instrumento formalizar a atividade de mineração.
Embora muitos dos trabalhadores das minas aluviais se encaixem no estereótipo do garimpeiro coberto de lama e roupas rasgadas, não são eles que lucram com o negócio. Nessa região da Amazônia peruana, os garimpeiros também usam camisas engomadas e sapatos limpos, são eleitos pelo voto popular, ocupam cargos e têm ligações diretas e indiretas com a mineração de ouro. Aqui não se fala em ilegalidade ou informalidade; usa-se linguagem calculada, com argumentos estruturados, para defender a mineração “em prol do progresso e do desenvolvimento”.
Entre os nomes mais visíveis estão o já mencionado governador regional, Luis Otsuka; Luis Bocángel, prefeito provincial de Tambopata; Juan Tovar, prefeito distrital de Inambari; Julio Luna, prefeito distrital de Laberinto; Cirilo Espinal, prefeito provincial de Manu; Jerônimo Ccotohuanca, prefeito distrital de Madre de Dios; e Anselmo Quispe, prefeito distrital de Huepetuhe.
Em muitos casos, não se trata apenas de projetos individuais, mas de empresas familiares que gerenciam permissões e concessões como ativos privados. Pais, irmãos, filhos, tios e sobrinhos estão envolvidos na administração desses direitos de mineração. Assim, o poder político e os interesses do ouro se fundem na mesma engrenagem.
Qual é a solução? Que as pessoas queiram se formalizar? Tudo bem! Por que proibiram a concessão de mineração em Madre de Dios? Por quê? Ah, para a conservação da floresta? Que conservação? Para que esses canalhas das ONGs possam ficar ricos? Como é possível que, por construir uma estrada, eu esteja sendo denunciado porque supostamente criei uma zona de amortecimento? — Luis Otsuka Salazar, governador e garimpeiro
A escala do negócio é enorme. Em 2023, Madre de Dios exportou US$ 196 milhões em bens, de acordo com o Ministério do Comércio Exterior e Turismo (Mincetur), dos quais mais de 70% eram ouro destinado à Índia, aos Emirados Árabes Unidos e à União Europeia.
De todas as exportações de ouro do Peru entre 2020 e 2024 (US$ 555 milhões), mais de 60% foram exportados por apenas duas empresas: E&M Company (US$ 192 milhões) e GoldMax’D Oro (US$ 154 milhões). O ouro também foi comprado por apenas algumas empresas, incluindo a Kundan Refinery Private Limited, On The A/C Esteem International, Omgl Refinery Limited Liability, Esteem International Trading Fze Co Transguard Emirates e Arbit Commodities Dmcc. Esses importadores prometem a seus clientes um produto de alta pureza, fazem o refinamento e o transformam em barras de ouro, moedas, joias e até mesmo em molduras de ouro.
Madre de Dios tem indicadores sociais entre os mais baixos do Peru. Por um lado, 7,7% de sua população vive abaixo da linha de pobreza. Porém, esse número é enganoso. A pobreza multidimensional chega a 43,7%: ou seja, há dinheiro, mas faltam serviços básicos, saúde e educação decentes. Basta entrar no departamento para ver centros de saúde em péssimo estado, escolas com os tetos das salas de aula caindo ou meninas que não têm chance de imaginar um projeto de vida porque são vítimas do tráfico de pessoas nas minas.
A corrupção agrava o quadro. Em Madre de Dios, 70% das autoridades, incluindo Otsuka, estão sendo investigadas por crimes como desvio de verbas, abuso de poder ou ausência do cargo. A metade está sendo processada por crimes ambientais. Otsuka e Bocángel têm processos pendentes por garimpo ilegal e lavagem de dinheiro.
Na província de Manu, o quadro é ainda mais sombrio. A prefeita do distrito de Fitzcarrald, Mariza Soto Chaiña, foi processada por crimes ambientais e, entre 2003 e 2024, acumulou pelo menos nove investigações por tráfico de drogas. Tentamos entrar em contato com Soto Chaiña para a publicação deste artigo, mas não obtivemos resposta.
Enquanto isso, o cultivo de coca em Madre de Dios cresceu mais de 40 vezes em seis anos: de 36 hectares em 2018 para 1.476 hectares em 2024. Mais da metade dessa área – 51% – fica em Manu. Isso significa 756 hectares cheios de arbustos de coca. Em meio a esse cenário, o prefeito de Huepetuhe, Ancelmo Quispe, exibe com orgulho sua obra mais emblemática: o Estádio Municipal de Huepetuhe. Ele diz que foram os garimpeiros que forneceram o maquinário e a mão de obra para preparar o terreno onde ele foi construído. Uma aliança tácita entre o poder local e a economia ilegal.
A onomatopeia de La Pampa Otsuka Salazar perdeu o pai quando ainda era criança, e sua casa após uma grande enchente. Junto com a mãe e os irmãos, diz ele, mudou-se para uma área mais alta para recomeçar com um machado e um facão. Esse infortúnio, de acordo com seu relato, mudou o rumo dele e de sua família. “A enchente havia plantado muito ouro (nas margens do rio) e minha mãe recebeu dois metrinhos de largura em uma pequena praia para trabalhar. Foi assim que comecei a trabalhar com ouro, com uma pá e um carrinho de mão”, relembra com tristeza. Hoje, ele saiu da pobreza extrema para declarar uma renda de mais de 1,5 milhão de soles por ano, cerca de R$ 2,3 milhões.
Otsuka não esconde sua história, nem sua posição atual sobre o assunto, pelo contrário, ele reclama da legislação que proíbe a mineração de ouro em corpos d’água. “Do que você acha que o Peru vive? Vive da mineração”, diz ele, levantando a voz. “Mas há uma lei, o Decreto Legislativo 1100, que proíbe a mineração em rios, córregos, lagos… Então, onde eles vão minerar?”
A contradição é óbvia: as próprias leis que os obrigam a proteger o meio ambiente – a Lei Orgânica dos Governos Regionais, a Lei Orgânica dos Municípios e a Lei Geral do Meio Ambiente – batem de frente com seus interesses particulares.
A temperatura está em torno de 30 graus. Em Puerto Maldonado, capital de Madre de Dios, as ruas queimam como brasa e estão desertas. Ao cair da noite, a situação muda. Os restaurantes abrem, as lojas acordam e as vibrações ao ritmo de cumbias e huaynos ecoam nas discotecas: a cantora de música andina Yarita Lizeth é a artista da moda.
Mas a apenas uma hora da cidade, do quilômetro 98 ao 115 da Rodovia Interoceânica Sul, que liga o Peru ao Brasil, o som se transforma em uma onomatopeia insuportável: pum-pum-pum-pum-pum… É o anúncio de que você está em La Pampa, um assentamento de cerca de 40 mil habitantes que parece um grande campo de guerra. Para onde quer que você olhe, há extensas áreas de floresta desmatada e lama.
As trincheiras são os poços onde os trabalhadores que operam as dragas afundam. Como acontece com um jovem que, por motivos de segurança, chamaremos de Lorenzo*. Ele veio de Ica, à beira do Pacífico, aos 16 anos, para trabalhar como operador de máquinas pesadas em uma mina informal. Ele diz que trabalhava em turnos de 12 horas, sem intervalos, por 1.500 soles por mês (R$ 2.300) em Huepetuhe, um dos pontos ativos mais importantes da única Zona de Uso de Mineração Aluvial (ZUM) autorizada no Peru graças ao Decreto de Emergência 012-2010, que declarou de interesse nacional a regulamentação da mineração no departamento de Madre de Dios.
“Aqui não existe descanso. Você vem para ganhar um pouco de dinheiro para poder progredir. Tenho que pagar empréstimos que fiz no banco para ajudar minha família. Foi por isso que vim quando me ofereceram. Depois, vim para La Pampa porque aqui ganho pelo que tiro diariamente, não é fixo”, diz Lorenzo* enquanto se senta em um cano sujo como assento. “Para aqueles que dizem que aqui o dinheiro é fácil, eles deveriam vir e ver se aguentam”, acrescenta.
Entretanto, a mineração ilegal não devora apenas a selva: ela também alimenta um sistema de violência sem fim. O controle dos acampamentos está nas mãos de organizações criminosas que impõem suas próprias regras. O Comando Vermelho (CV) alcançou esta parte da Amazônia. À sua sombra estão Los Guardianes de la Trocha (LGdT), um grupo que a Polícia Nacional do Peru (PNP) descreve como paramilitar, nascido nos campos de mineração da região e hoje com ramificações armadas em outras regiões, como Amazonas, Loreto e Ucayali.
Um médico local, que pede anonimato por motivos de segurança, desenha essa cena sem rodeios: “Muitos dos feridos chegam com um tiro na palma da mão. Os ‘seguranças’ – diz ele, referindo-se ao CV e à LGdT – punem assim aos acusados de roubo. As balas geralmente não são registradas além do relatório médico. A polícia, mesmo que receba o relatório, raramente aparece”.
Fontes policiais confirmam extraoficialmente que suas unidades têm pouco espaço de manobra porque os territórios estão divididos entre agentes criminosos externos e elas não têm os recursos necessários para enfrentá-los.
Em La Pampa, o epicentro da mineração ilegal, Lorenzo* tem outra versão. Ele sabe de cor as taxas que sustentam o maquinário de ouro. Para cada draga instalada, ele explica, são pagas duas parcelas. A primeira, de 500 soles (R$ 775) por mês, é paga aos “seguranças”, um sistema de controle territorial imposto pelo Comando Vermelho (CV) e pelos Los Guardianes de la Trocha (LGdT). A segunda, a mais alta, para a Polícia Ambiental: 1.000 soles (R$ 1.550) por semana para que não destruam motores ou maquinário. De acordo com testemunhas, esse arranjo foi mantido até 3 de agosto de 2025, quando uma ordem policial retirou a Polícia Ambiental de todas as suas bases em Madre de Dios para repensar as operações contra crimes ambientais. Até a publicação desta matéria, a agência não havia respondido a nenhuma de nossas perguntas sobre o assunto.
Semanas depois, entre 20 e 25 de agosto, foi realizada uma operação conjunta com a participação da Promotoria do Meio Ambiente (FEMA), da PNP e do Exército. Nessa intervenção, de acordo com informações oficiais, foram destruídos sete motores, oito balsas, três lanchas, quatro motocicletas e diversos materiais utilizados por organizações criminosas para fins ilegais. Solicitamos uma entrevista formal com a Diretoria de Meio Ambiente da Polícia Nacional do Peru (PNP), mas até o momento da publicação desta matéria ainda não havíamos recebido uma resposta.
Enquanto a extorsão e a violência marcam o cotidiano de Madre de Dios, as autoridades locais estão ajustando sua agenda com um objetivo diferente: mudar a lei para permitir a mineração de aluvião. O prefeito provincial de Manu, Cirilo Espinal, diz sem rodeios: “Se eles fazem mineração em outros países, por que vão proibi-la aqui? Se o limite está definido e ninguém passar dele… o governo deveria nos apoiar o mais rápido possível.”
Para Germán Fernández Hanco, um defensor do meio ambiente reconhecido pelo mecanismo de proteção do Ministério da Justiça (Minjus), a disputa não é apenas legal. Trata-se da perda de seu mundo. “Tínhamos vacas, leite, queijo, galinhas… tudo era verde. Um riacho transparente onde pescávamos e aprendíamos a nadar. Era lindo”, lembra.
Em 20 de março de 2022, Germán perdeu seu irmão, que foi morto ao tentar impedir que mineiros ilegais invadissem seu território. Seus pais chegaram na década de 1970 de Sicuani, em Cusco, e foram uma das famílias fundadoras de Nuevo Arequipa. Ele conta essa história com orgulho, embora carregue o peso do irrecuperável.
A Rodovia Interoceânica Sul, inaugurada em 2010, selou a mudança. A estrada, que liga o Peru ao Brasil, trouxe um fluxo constante de garimpeiros e comerciantes ilegais. Os campos verdes de sua infância foram substituídos por poços, clareiras e faixas desmatadas. “Vivíamos precariamente, mas éramos felizes. Quando a construção começou, começaram os roubos. Levavam nossos carros, nossos animais. Tudo mudou”, diz Germán.
Essa mudança foi mais do que um ajuste de hábitos. Ela deu início a uma paisagem quebrada, onde o ronco dos motores, o mercúrio e a ameaça armada substituíram o canto dos pássaros e o brilho dos rios.
Na mineração, o ouro é obtido por meio da dragagem do leito do rio para remover os sedimentos que contêm ouro. O método pode ser artesanal ou mecanizado, embora atualmente o último seja predominante, especialmente entre aqueles que operam fora da lei. O material é então transportado para áreas de processamento, onde o ouro é separado e a amalgamação é realizada com mercúrio, o único metal pesado que é líquido em temperatura ambiente. No Peru, seu uso é regulamentado pelo Ministério do Meio Ambiente (Minam), pelo Ministério de Energia e Minas (Minem) e pela Superintendência Nacional de Alfândega e Administração Tributária (Sunat). Em Madre de Dios, no entanto, basta entrar em uma loja de ferragens para comprá-lo. Cerca de 100 gramas, que cabem mais ou menos em uma tampa de refrigerante, podem custar entre 300 e 350 soles (R$ 465 a R$ 543).
Após o processo em altas temperaturas, o ouro fica livre de impurezas e se torna uma peça do metal mais cobiçado do planeta. A mineração acelera em meses processos que a natureza leva séculos para concluir. A obtenção desse brilho tem um custo letal.
Entre 2018 e 2022, Julissa Estrada, coordenadora de projetos do Centro de Pesquisa e Tecnologia da Água (Utec), liderou um estudo para medir o impacto da mineração de ouro nos rios amazônicos, com foco especial em Madre de Dios. As imagens de satélite e a análise hidrogeomorfológica marcaram um ponto de inflexão. Entre 1984 e 1995, o impacto foi baixo. A partir de 2008, e especialmente entre 2010 e 2020, o desmatamento disparou.
Áreas como Huepetuhe ou Caichigüe deixaram de ser rios sinuosos e vivos e se tornaram manchas de água presas entre piscinas e ilhas. “Em muitos casos, não podíamos mais medir os parâmetros, pois o rio havia perdido sua forma natural”, diz Estrada. O deslocamento lateral, a erosão e a alteração do canal estão avançando em um ritmo sem precedentes.
O mercúrio, naturalmente presente nos solos da Amazônia, é liberado em massa quando os leitos e as margens dos rios são perturbados. A maior concentração viaja com os sedimentos finos – argilas e sedimentos – que turvam a água. Embora os garimpeiros artesanais geralmente recuperem o mercúrio que usam devido ao seu custo, o desmatamento em massa libera o mercúrio que ficou preso no solo por séculos.
Esse metal entra no ciclo do rio, fixa-se nos peixes e se instala na cadeia alimentar. “Não se trata apenas do que eles usam, mas também do que eles liberam quando perturbam o solo. E em épocas de chuva forte, todos esses sedimentos contaminados são levados para o rio”, diz Estrada.
O estudo da Utec encontrou uma lacuna grave. As regulamentações ambientais medem a qualidade da água e do solo, mas ignoram a fração sólida que viaja com o rio. Esses sedimentos finos são onde se concentra a maior carga de mercúrio, e sua exclusão das medições oficiais oculta a extensão dos danos. Estrada recomenda incluir esse parâmetro para conhecer a extensão real da contaminação.
Nas estações chuvosas, o rio pode subir até três metros em um dia e arrastar toneladas de sedimentos com metais pesados. Um trânsito que levaria séculos em condições naturais agora leva semanas.
Em 2020, o Centro de Inovação Científica da Amazônia (Cincia) apresentou um estudo preocupante. Em três comunidades indígenas Matsigenka no Parque Nacional de Manu, as concentrações de mercúrio e metilmercúrio no cabelo – medidas entre 2014 e 2018 – excederam os valores de referência da OMS. Os peixes carnívoros e necrófagos analisados também excederam os níveis permitidos, especialmente em sua fase adulta.
O vice-presidente da Federação Nativa do Rio Madre de Dios e seus afluentes (Fenamad), Eusebio Ríos Ibiche, adverte que a mineração não apenas devora a floresta. Ela também os impede de consumir água e peixes com segurança. “As comunidades são afetadas pelas invasões, pela Rodovia Interoceânica que permite acesso direto aos nossos territórios. Não há controle”, reclama. Ele acrescenta que os invasores vêm de diferentes partes do país e do exterior. “Não conseguimos identificá-los, não é nosso trabalho, mas as autoridades deveriam fazer isso”, diz ele.
Longe de ser uma exceção, Madre de Dios é a radiografia de como os interesses econômicos e pessoais dos detentores do poder abrem as portas para os crimes ambientais em toda a Amazônia. O que se expressa aqui em ouro ilegal, mercúrio nos rios e facções armadas se repete em outras economias ilícitas em Loreto, Ucayali ou Amazonas. A fórmula é a mesma: autoridades que se tornam parceiras de negócios ilegais, supervisores que negligenciam seus deveres e comunidades que arcam com o ônus da violência e da contaminação.
O resultado é um ciclo perverso em que ouro, madeira e coca são transformados em riqueza no exterior, enquanto a floresta é devastada e os povos amazônicos perdem seu futuro. Nessa equação, a Amazônia sempre perde, e a corrupção se torna o verdadeiro poder que dita o destino da região.
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