28 Outubro 2025
Indígenas Guarani e Kaiowá relatam a violência sofrida no último dia 16 de outubro durante ataque da Tropa de Choque.
A informação é da assessoria de comunicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 26-10-2025.
Tornou-se comum ouvir entre os Guarani e Kaiowá um resumo perturbador de como se sentem a cada investida das polícias estaduais contra retomadas e aldeias: “estão tratando a gente como animal (…) não somos bichos”. A frase é de um indígena da retomada da Fazenda Ipuitã, sobreposta à Terra Indígena Guyraroká, em Caarapó (MS).
A Secretaria de Segurança Pública do estado tem afirmado que há “proporcionalidade” nas ações do Departamento de Operações de Fronteira (DOF), Polícia Rural e Tropa de Choque. Também que tem atendido as ocorrências por chamadas do 190. O flagrado na sede da fazenda, com uma base policial montada, e a violência dos ataques, contando com tentativas de atropelamento, as afirmações oficiais.
Os relatos a seguir tratam dos eventos ocorridos durante o ataque da Tropa de Choque do último dia 16 de outubro, com “tiroteiro, gente correndo, chorando, sangrando”. Ao menos nove indígenas ficaram feridos a tiros de bala de borracha e intoxicados por gás – um jovem de 14 anos foi atingido na cabeça e três mulheres grávidas passaram mal com a fumaça.
Entre erguer barracos, sucessivamente destruídos pela polícia e tratores da fazenda, recolher lenha para a fogueira e vigiar a movimentação de jagunços, o principal desafio é seguir resiliente e não deixar o ódio com o qual os tratam persuadi-lo a também se entregar ao ódio – este é um cuidado debatido na retomada.
Como se tornou costume, o indígena pede à equipe do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) para não ser identificado por temer represálias não apenas a ele, mas também à família. Parte dela seguiu com o Guarani e Kaiowá para a retomada.
“Um de nós precisa dar a vida pra conquistar a terra. Em (Nhanderu) Marangatu foi assim. Um morreu (Neri Guarani e Kaiowá) e então eles deram a terra. É assim a justiça nesse mundo. Nos tratam como animais. Se tiver que ser assim no Guyraroká, morro pra deixar a nossa terra, a morada dos nossos antigos, pros meus filhos”, afirma.
“Tiroteio, gente correndo, chorando”
Logo nas primeiras horas da manhã, a Tropa de Choque da Polícia Militar passou a escoltar tratores para furar o bloqueio que os indígenas fizeram com o objetivo de proteger a retomada e protestar contra o uso de agrotóxicos – uma nova lavoura de monocultivo vem sendo preparada.
Lembra das muitas vezes em que foi ofendido, xingado. Não há raiva envolvendo suas palavras, mas nas que dirigem a ele. Analfabeto. Imundo. Vagabundo. Os Guarani e Kaiowá não se abalam. Sabem de si. O mundo envenenado por palavras ruins é o que os afeta. Como podem ser tão ruins?
“Estamos nos defendendo, pelo menos isso eu acho que a gente tem direito. Chorei, chorei muito. Um de nós talvez precise morrer. Talvez seja eu”, diz.
Pesadelo: “Tá vindo! Tá vindo! Tá vindo!”
O Guarani e Kaiowá segue relatando o ataque de 16 de outubro. “Eu estava me protegendo no barraco e a pá escavadeira veio para enterrar o meu barraco, e quase me enterrou junto. Eu tentei escapar, mas a pá carregadeira voltou para me empurrar com tudo”, conta.
“A sorte é que eu escapei por baixo porque o poste ia cair na minha coluna, (mas acabou que) caiu o poste na minha cintura, eu não consegui nem correr (na hora). A tropa já tinha nos encurralado (e quando me livrei do poste) precisei correr com uma perna (a outra estava machucada), e as balas cruzando, tiros. Bala vinha cruzando, muito xingamento”, relata.
Enquanto o indígena se livrava dos escombros do barraco para fugir, a esposa levou um tiro de bala de borracha. “Meu filho presenciou tudo aqui. À noite ele não consegue dormir. Acorda gritando: tá vindo! Tá vindo! Tá vindo!”, diz.
O Guarani e Kaiowá reforça que apesar de todo o sofrimento, “não vamos recuar, não. Vamos seguir em frente. Temos muitas crianças. Não quero mais policiais aqui. Estão tratando a gente como animal. Parece que não tem nada nesse mundo que impeça de tratar a gente como cachorro, bicho do mato. Precisamos apenas das nossas terras”.
Xingamentos e tentativa de atropelamento
Mulheres, crianças, idosos. Para a polícia, pouco importa quem esteja à frente. O relato é de uma mulher indígena, mãe, integrante da retomada e agredida pelos policiais.
“Levei duas balas (de borracha). Eu e a minha irmã. Vieram com tudo (duas viaturas da PM) para nos atropelar. Bom que a gente é ligeiro. Corre pra lá, pra cá e eles não acertaram a gente. Na verdade, não sei como escapei. Ainda não estou bem, minha cabeça tá toda embaraçada. Meu pensamento é que aconteceu agora. Não consigo comer nada”, desabafa.
Ela conta que os policiais os chamavam de “cachorro, merda, porra. Não respeitam mulher, criança, idoso”. A Guarani e Kaiowá tem elaborado mecanismos para deixar passar os sentimentos de tristeza. Um deles é projetar o futuro, vê-lo, dar cores e sensações a uma vida sonhada.
“Meu filho está com oito anos. Quero ver o meu filho crescer nesta terra, de repente meus netos. Posso levar bala de borracha, mas não saio do lado da minha comunidade”, conclui.
Um outro Guarani e Kaiowá também precisou correr e desviar de viaturas que tentaram atropelar os indígenas. “Quando a viatura veio, tentei desviar. Pulei, mas a viatura da PM pegou na minha perna. Se eles pegassem em cheio, não sei se eu estaria vivo. Vieram com raiva, sabe, não sei a razão”, lembra.
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