A esquerda que não teme dizer seu nome. Artigo de José Maurício Domingues

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04 Outubro 2025

"Como tese mais geral do livro em tela, pode-se destacar a ideia de que no capitalismo hodierno já não há espaço de “negociação” – ou seja, a democracia liberal é um espaço comprimido. Pior, as instituições liberais em si pertencem ao capitalismo. Aliás, mais ainda, Vladimir Safatle afirma que nada do que Karl Marx assinalou quanto à “acumulação primitiva” do capital deixou de existir – inclusive a escravidão; apenas “mudou de nome. Hoje, somente uma postura “insurrecional” poderia nos levar adiante em nossas lutas, recuperando essa tradição da esquerda que foi tomada pela extrema-direita", escreve José Maurício Domingues, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 30-09-2025.

José Maurício Domingues é professor no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ. Autor, entre outros livros, de Uma esquerda para o século XXI. Horizontes, estratégias e identidades (Mauad).

Eis o artigo.

Considerações sobre a edição revisada do livro, recém-lançado, de Vladimir Safatle.

Livro do filósofo e escritor brasileiro Vladimir Safatle. (Foto: Reprodução) 

1.

Discussões políticas na esquerda intelectual brasileira hoje são raras. A denúncia do neoliberalismo parece consumir muita energia, junto a estudos de cunho fundamentalmente acadêmico geralmente vinculadas ao marxismo, destaque ainda para discussões dentro do feminismo e na interpretação do racismo.

Nesse sentido, a edição revisada do livro de Vladimir Safatle, A esquerda que não teme dizer seu nome como “um novo livro”, totalmente reescrito, é muito positiva. Eu havia lido a versão original e não havia gostado – parecera-me crua e muito básica, mesmo para um livro de “intervenção”. Esta nova versão me parece melhor. Mesmo assim os problemas que se evidenciam são grandes. Vou discuti-los a seguir, mas primeiro quero apresentar suas teses principais.

O diagnóstico básico de Vladimir Safatle está correto: desde 2012, quando o livro foi originalmente publicado, a desorientação da “esquerda” se “acelerou”. Presa à sua perplexidade, a “esquerda”, num movimento de defesa narcísico, busca pôr a culpa nos eleitores que se voltaram para a direita. Nenhuma capacidade de análise sobre o que realmente vem acontecendo se articulou. Nesse sentido é que Vladimir Safatle afirma que a “esquerda morreu”; não porque se divirta com isso, nem porque renuncie a ela, senão porque se esforça em reativá-la, antes de tudo mediante a reflexão intelectual.

Vladimir Safatle então se concentra no que seriam os pontos chave de uma renovação de horizontes. Em primeiro lugar, aposta nos dois elementos que considera cruciais para uma agenda de esquerda, segundo ele, a igualdade e a soberania popular. Garantidas ambas, como diz já mais para o fim do livro, “o resto, como dizia o Evangelho, virá por si mesmo”. Afirmação discutível se posta dessa forma, como veremos.

A igualdade, diz-nos Vladimir Safatle, seria o “fundamento de uma sociedade justa”, que se oponha a existência de hierarquias sociais. Ele corretamente alerta para a falsa oposição entre igualdade e liberdade, uma vez que aquela seria a verdadeira condição para esta. A igualdade deveria ser exercida no que considera as três dimensões da interação social: a linguagem, o desejo e o trabalho. É isso que a esquerda vem se mostrando incapaz de fazer. Não há liberdade individual, que se configura como uma das “criações espúrias” do liberalismo – somente uma sociedade verdadeiramente igualitária é livre.

Mais especificamente, a linguagem não pode estar submetida a apenas uma escala de valor, como é hoje, dominada pela mercadoria; os corpos, em sua singularidade e mutabilidade, não podem estar submetidos à hierarquia; no campo do trabalho não pode haver desigualdades brutais, como há sob o capitalismo (que ele define como uma “guerra civil” contra as populações pobres).

O universalismo nesse sentido, ou seja, a realização efetiva e generalizada da igualdade – e, portanto, da liberdade – nunca existiu – ele pertence ainda ao futuro, tendo existido tão-somente em momentos fugazes da luta revolucionária. Quem diz o contrário, segundo Vladimir Safatle, “mente”. Os ditos “identitarismo” lutam contra essa negação da universalidade. Mas é preciso, afirma, ir muito além das superficiais estruturas nas empresas que supostamente buscam a diversidade e da utilização das lutas “identitárias” por parte da esquerda para esconder sua impotência, bem como a cooptação desse tipo de movimento por esses esquemas.

Por seu turno, o empreendedorismo é uma mentira. Do que precisamos é a autogestão das firmas pelos trabalhadores. É preciso ainda reconhecer que os homens brancos podem ser vistos como “ressentidos”, mas seria provavelmente melhor, crê Vladimir Safatle, que a esquerda apresentasse um programa capaz de combater a precariedade e a vulnerabilidade generalizadas.

A resposta da direita é simples, embora inefetiva, implicando a radicalização do neoliberalismo. Observe-se que, segundo Vladimir Safatle, o capitalismo nunca foi competitivo, evidenciando-se ainda um “núcleo feudal” baseado na reprodução familiar de suas camadas superiores.

Como tese mais geral do livro em tela, pode-se destacar a ideia de que no capitalismo hodierno já não há espaço de “negociação” – ou seja, a democracia liberal é um espaço comprimido. Pior, as instituições liberais em si pertencem ao capitalismo. Aliás, mais ainda, Vladimir Safatle afirma que nada do que Karl Marx assinalou quanto à “acumulação primitiva” do capital deixou de existir – inclusive a escravidão; apenas “mudou de nome. Hoje, somente uma postura “insurrecional” poderia nos levar adiante em nossas lutas, recuperando essa tradição da esquerda que foi tomada pela extrema-direita.

2.

Isso nos remete ao segundo aspecto que Vladimir Safatle considera como crucial para uma agenda de esquerda: a questão da soberania. Ele não a define de fato, mas aponta que pode se apresentar como uma alternativa à teologia (preocupado que está ademais com os evangélicos) na qual “a soberania popular de um povo animado pelo desejo de igualdade radical, de fim de hierarquias, desempenha papel revolucionário”. Ela se põe inclusive contra a ideia e suposta prática da “representação”. A democracia “parlamentar” – nada representativa – deve ser superada por meio de sua “pulverização de mecanismos de poder e participação popular”.

Assim, Vladimir Safatle se coloca contra o que define como a “mistificação grosseira” do roubo da soberania e a “degradação” dos “setores hegemônicos” da esquerda em sua suposta luta para melhorar a representação.

O Estado – que, aparentemente, não deixaria de existir na perspectiva de Vladimir Safatle, ao contrário do que em geral se vê no marxismo revolucionário – se converteria assim no lugar da mera implementação de deliberações externas a ele, deixando de lado a deliberação política: assembleias, plebiscitos, consultas diretas, conselhos, etc., teriam essa tarefa.

Assim superaríamos também a violência da democracia atual, que se apresenta como a única forma de governá-la. Que se aponte para a suposta incapacidade do povo para resolver questões técnicas é na verdade uma “piada de mau gosto”. Enfim, a soberania popular é provavelmente a única via para solucionar a crise climática. Claramente o que os governos fazem hoje é inócuo.

Vladimir Safatle decide não discutir a questão da organização política porque, acredita, ela é sempre marcada por contextos locais – embora tenha logo antes de propor esta tese tenha observado que as dinâmicas revolucionarias evidenciam tendências autoritárias devido, “entre outros [sic], a seu modo necessário de organização”. O que isso teria a ver com o Chile, único caso que analisa, de passagem (apesar de dizer que foi a ver, in loco, os processos das primaveras árabes, entre outros), não é claro.

De resto, ele não percebe que foi exatamente a ampliação da participação popular, definida nas novas leis eleitorais chilenas pós-“estallido” que tornaram o voto obrigatório, o que derrotou, em plebiscito, a Constituição altamente progressista da esquerda, mas igualmente a que a direita reacionária propôs em seguida.

Embora A esquerda que não teme dizer seu nome seja bastante curto, como vê são muitas as questões e muitas as teses que Vladimir Safatle apresenta em seu curso, muitas vezes de maneira ligeira (e por vezes bastante dogmática). Pouco ajudam as diversas invectivas que lança, preventivamente, por assim dizer, contra quem dele ouse discordar, além de carregar muito nas tintas em seus ataques ao que não lhe pareça revolucionário ou admita positividade na trajetória do liberalismo.

Em Marx, a crítica ácida se baseava em análises sistemáticas, antes que em meras invectivas. Por seu turno, os bolcheviques desenvolveram um estilo polêmico que historicamente não fez bem a esquerda. Não creio que valha a pena revivê-lo, ainda que a controvérsia explícita e mesmo dura seja importante para revitalizar o pensamento de esquerda.

Tampouco posso discutir uma a uma as questões que Vladimir Safatle levanta, muitas vezes de passagem, valendo assinalar que ideias como as de que o liberalismo pertence ao capitalismo (com uma filiação a um tipo brutal de economicismo), que a acumulação primitiva segue a todo vapor (tese que está na moda, mas certamente seria recusada por Marx, ainda que processos de expropriação sigam ocorrendo, com a mais-valia, entretanto, se pondo no centro da reprodução do capitalismo hoje, num mundo em que predomina o trabalho assalariado).

Não faz sentido afirmar, além do mais, que o capitalismo tem “núcleo feudal”, quando o que está em questão é simplesmente a reprodução da estrutura de classes desse tipo de “modo de produção”. Finalmente, à sua divisão entre linguagem, desejo e trabalho seria possível opor outra teorização, o que nos levaria muito longe.

3.

Ou seja, se sobra um pouco a retórica, falta a Vladimir Safatle uma consideração adequada do que seja o capitalismo, em particular nesta fase atual, assim como soa forte sua denúncia de sua “desonestidade profunda”, sem que um conceito adequado de ideologia dê conta de entender o que isso efetivamente significa. Mesmo uma teoria social mais robusta seria de esperar.

Contudo, em lugar de discutir esses temas, muito amplos, quero me concentrar nas duas questões principais que ele mesmo destacou, a da igualdade e a da soberania popular. Antes disso, é imprescindível uma reflexão sobre a situação atual da “esquerda” e sua atuação frente à extrema-direita, bem como o que seria a caracterização da própria época em que vivemos.

Primeiramente, não creio que se possa falar de “uma” esquerda. As “esquerdas” são várias e cada uma tem e terá sua própria agenda, com ênfases distintas, programas de longo prazo diferentes: são socialdemocratas, socialistas, anarquistas, comunistas e autonomistas.

Evidentemente, cada uma dessas esquerdas reivindica para si uma visão correta do mundo, de suas possibilidades e das estratégias para chegar a seus objetivos. Não adianta supor que elas se unificarão, decerto nunca totalmente. Fez e fará muito mal as esquerdas desconhecer essa pluralidade, ainda mais num mundo ele mesmo cada vez mais diverso. Dito isso, de fato, toda a esquerda vai muito mal.

Esse é um problema global, que afeta todas as suas correntes, todas elas historicamente derrotadas, a não ser que reconheça na China um projeto socialista – entendimento absurdo ao qual voltarei brevemente adiante. É essa pluralidade que deve ser vista como nosso ponto de partida, em si em larga medida positivo, uma vez que permite temporalidades distintas, que podem ser exploradas de maneira produtiva inclusive por forças de uma esquerda socialista – “insurrecional”, como quer Vladimir Safatle, perspectiva com a qual estou de acordo.

O que não se pode desconhecer é que a extrema-direita está aí. O próprio Vladimir Safatle, em uma das várias referências a seu próprio engajamento, assinala que fez de tudo para que Jair Bolsonaro não se elegesse e, quando isso ocorreu, se esforçou para que isso não se repetisse. Ora, a não ser que queiramos falsificar nosso próprio comportamento, todos os que, na esquerda, o fizemos, o fizemos em aliança com a centro-direita liberal, por que, ademais, acreditamos que a democracia liberal tem valor e que deve ser defendida.

Não creio que qualquer de nós tenha deixado de vibrar com a condenação de Jair Bolsonaro e seus cúmplices em sua tentativa de golpe. Nesse sentido, Vladimir Safatle está profundamente equivocado quando diz que “quanto maior a frente ampla, maior a sua eficácia em impedir a emergência de figuras de extrema-direita” que exploram o desejo anti-institucional e a raiva social oriunda do sentimento de ser “deserdado e esquecido”.

O problema é real, mas não é a frente ampla que boqueia um programa que neutralize e eventualmente seque a extrema-direita, mas sim a incapacidade da esquerda de disputar na sociedade mais ampla há muito tempo, de ganhar hegemonia, como diria Antonio Gramsci. Isso não se (re)faz da noite para o dia, ainda mais que seus programas e soluções – todos – fracassaram. Enquanto isso, há problemas fundamentais a encarar – bastante concretos no que tange à defesa da democracia

Por outro lado, a centro-esquerda foi partícipe, em particular via socialdemocracia e desenvolvimentismo, de um momento de desdobramento expansivo da modernidade, em que o capitalismo foi um pouco amansado – sobretudo mas não exclusivamente na Europa –, a democracia liberal, muito ampliada –, por meio dos partidos e organizações de massa e estabeleceram-se os direitos sociais – seja por formas variadas de Estado do Bem-Estar Social ou de seu horizonte por construir, do qual a Constituição de 1988 no Brasil foi uma das últimas promessas.

Esse momento expansivo se transformou na direção de uma retração desde os anos 1970-1980, mais tardiamente na América Latina, com restrições crescentes – reoligarquização da democracia – neoliberalismo competitivo em todos âmbitos da vida social e cerceamento de direitos, embora a pluralização das identidades no curso de fortes lutas sociais e nos quadros do neoliberalismo progressista tenha avançado (se bem que o enfretamento do racismo date de períodos bastante anteriores).

É provável que este seja um mundo ao qual é impossível retornar e que somente com um enfrentamento muito mais duro entre as forças das esquerdas e da direita e da extrema-direita possamos avançar. Isso não pode ser tomado de forma alguma como antagônico às conquistas do século XX, em particular da democracia liberal representativa (parlamentar). Essa foi uma conquista da classe trabalhadora, das mulheres e dos negros, dos explorados e oprimidos em geral, daqueles que se pode definir politicamente como “plebeus”.

4.

Nesse sentido, o autoritarismo que se erige com a mistura de partido-Estado e capitalismo com corte em larga medida neoliberal na China não é uma solução para as esquerdas (sobretudo se têm, como deveriam, compromisso com a democracia). Realmente, diminuiu em muito a pobreza ali, mas aumentou brutalmente a desigualdade, para o que a brutalidade do regime político autoritário e crescentemente autocrático é fundamental.

De fato, apresenta-se a China em oposição ao imperialismo estadunidense, anacronicamente redesenhado por Donald Trump, mas ela mesma se projeta como uma força em larga medida nacionalista e imperial. Seu projeto nada tem a ver com o cosmopolitismo soviético, inclusive em seu momento mais autoritário e autocrático.

Declarações pias não fazem verão. Os cubanos que o digam. Suponho que Vladimir Safatle não discorde do tom geral dessas minhas afirmações, ainda que, em um livro sobre a contemporaneidade da esquerda, seja estranha a ausência de qualquer menção à China, fetiche para muitos hoje no Brasil.

Isso remete evidentemente às duas questões principais levantadas por Vladimir Safatle. A soberania popular só é possível com uma participação massiva. Isso se contrapõe obviamente ao projeto despolitizante do liberalismo, a despeito da política na prática o capturar sempre. A democracia liberal representativa-parlamentar é um regime misto, para recorrer a tradição do pensamento político.

Ou seja, ela é democrática, por conter em si a liberdade de expressão, organização e manifestação, o voto popular, a rotatividade formal dos “representantes”, etc.; e é oligárquica na medida em que quem controla o processo político conforma um estrato separado, que hoje se compõe cada vez mais de profissionais, inclusive quando são de esquerda, inclusive quando seus programas se propõem a trazer justiça social ou mesmo eliminar as desigualdades e o capitalismo. Vladimir Safatle, tão preocupado com o capitalismo, não se dá conta disso, mas a solução que sugere é correta.

Parcialmente correta, na verdade. Isso ocorre em razão da complexidade efetiva da vida social contemporânea, menos em termos de conhecimento, pois cientistas e técnicos podem e devem propor ideias e medidas que são decididas pela população – esse “povo” elusivo que se constitui na própria participação política – e mais porque, como se sabe, conselhos, plebiscitos, consultas, etc., têm seus próprios problemas e dificuldades. A começar pela formação de oligarquias nos conselhos, como os sovietes russos bem o demonstraram, se bem que aí o problema tenha sido até mais o controle brutal exercido pelos bolcheviques a partir de 1918 (se deixamos de lado a narrativa oficial, adotada por grande parte da esquerda, do desdobramento da revolução de 1917).

A soberania popular só é possível com uma participação massiva. Isso se contrapõe obviamente ao projeto despolitizante do liberalismo, a despeito da política na prática o capturar sempre - José Maurício Domingues

O que se chamava convencionalmente na tradição de esquerda de mera “delegação” acaba sendo, inevitavelmente, por sua própria dinâmica, apenas um caminho para a representação, independentemente da boa vontade daqueles que participam da política de esquerda. A luta plebeia por uma democracia radical e efetiva tem que ser uma constante.

Nesse sentido, é preciso pensar maneiras de aperfeiçoar a representação, incluindo a comunicação e a formação da vontade política entre representantes e representados, que são aqueles que no dia a dia se encarregam da política. Supor que isso possa ser simplesmente delegado à burocracia estatal é cair numa mescla despolitizada de liberalismo e tecnocracia que acaba por entregar o poder a oligarquias ainda menos controláveis.

Enfim, dada a conjuntura de agressão promovida pelo governo dos Estados Unidos no momento, a soberania popular tem também um componente nacional que neste momento será necessariamente enfatizado. Ele não pode nunca, todavia, sobrepor-se à soberania enquanto democracia; do contrário degenera facilmente em autoritarismo travestido de nacionalismo, como as revoluções anticoloniais sobejamente demonstraram e países como China, Vietnam e Cuba demonstram hoje. Teria sido importante que Vladimir Safatle o tivesse enfatizado.

Por outro lado, embora os estados contemporâneos façam muito menos que o necessário para enfrentar a mudança climática, não é possível aceitar a mera afirmação de que uma verdadeira soberania popular estaria na base desse enorme desafio contemporâneo. Hoje, as evidências até apontam para a hipótese contrária, uma vez que ninguém quer abrir mão de seus atuais ou prospectivos padrões de consumo. Não que isso não possa mudar, obviamente. O processo complexo de convencimento e construção de alternativas é crucial para que isso seja possível.

Enfim, o igualitarismo. Vladimir Safatle está correto ao recusar a oposição entre igualdade e liberdade, uma invenção do liberalismo que neutraliza ambas. Mas falar de “mistificação grosseira” do liberalismo ao referir-se à liberdade individual é falso. Sabemos todos disso: ninguém quer voltar ao feudalismo ou à escravidão. Esse serviço o liberalismo, sobre o solo do capitalismo e do sistema de direitos civis do Estado moderno nos prestou – como aliás a volta à ideia de “legalidade socialista” no dito “socialismo real” (coletivismo autoritário) após a autocracia stalinista demonstrou.

Mas obviamente esse avanço é muito limitado, inclusive quando ele aumenta a liberdade ao introduzir direitos sociais que limitam o poder dos capitalistas e em maior ou menor medida reduzem a desigualdade social. Dois pontos precisam ser melhor entendidos, porém.

Primeiro que a igualdade tem de ser estabelecida em todas as dimensões. De alguma maneira Vladimir Safatle está ciente disso – não por outra razão argumenta a favor, a despeito dos problemas que assinalei anteriormente, de uma democratização radical da política, em detrimento, implicitamente, das oligarquias que as controlam. Segundo, que a liberdade igualitária é o que nos deve nortear.

Sem dúvida, não há que opor igualdade e liberdade. Mas queremos igualdade para podermos desfrutar, cada um de nós, da liberdade, para nos desenvolvermos como quisermos, segundo a nossa fantasia e desejos, contra preconceitos e limitações ligadas à classe, à raça, à etnia e ao gênero. De qualquer modo, é a liberdade que fortemente colore o imaginário contemporâneo e à esquerda cumpre responder a esse destaque com uma proposta que a afirme de maneira adequada e produtiva, resgatando-a do neoliberalismo.

O sistema liberal de direitos proveu um módico de liberdade igualitária, no terreno formal do direito. Isso se substancializa na medida em que nesse sistema de direitos, na esfera do direito, todos temos o mesmo poder. Essa igualdade de poder tem de ser generalizada para a vida social em sua totalidade em todas as suas dimensões, do contrário uns serão mais livres que outros (e aqui seria necessário discutir se de fato o senhor é tão pouco livre como o escravo, como sugere Vladimir Safatle recorrendo à discutível figura hegeliana). Aí sim teríamos um universalismo efetivo.

Por isso, a democracia via autogestão é crucial, mas insuficiente. É preciso colocar a questão da propriedade em sua dimensão social. Gerir sim, mas o que é coletivo. Mesmo isso é, contudo, insuficiente. Pois os egoísmos que podem se pôr nas gestões, ainda que coletivas, de empresas e outras entidades têm de ser superados por uma política democrática de planejamento que beneficie produtores e consumidores em geral.

Não pode ser, porém, decidida de cima para baixo, pelo partido e tecnocratas, que, além do mais, fortalecem economicamente as classes capitalistas ao passo que se fortalecem, desigualitariamente, em seu comando dos mecanismos do poder político. Não é que Vladimir Safatle tivesse que discutir isso em detalhe, mas falar adequadamente de liberdade e igualdade, ou melhor, liberdade igualitária, nos impõe uma consideração ao menos mínima dessa problemática. Obviamente, trata-se aqui de uma esquerda socialista ou comunista, com inflexões que remetem ao anarquismo e ao autonomismo.

Problemas não obstante, contribuições como A esquerda que não teme dizer seu nome são muito necessárias e bem-vindas, sempre e em particular na atua conjuntura. Como combinar a política de resistência democrática e a ampliação de espaços políticos com um horizonte e um projeto de longo prazo segue sendo o nosso grande desafio.

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