26 Setembro 2025
Iniciativa está parada no Ministério do Desenvolvimento Agrário desde 2024. Sem apoio de políticas públicas, agricultores de regiões fumicultoras saem no prejuízo ao tentar apostar em outros cultivos.
A reportagem é de Pedro Nakamura e Raquel Torres, publicada por ExtraClasse, 24-09-2025.
O agricultor Paulo Sérgio Padilha, 53, planta tabaco desde os sete anos de idade, mas depois desta safra venderá os cerca de 33 hectares de terra onde vive com a esposa e se aposentar do cultivo. Ele deixará de lado pomares de cítricos, plantações de milho, feijão e batata, gado e uma pequena agroindústria de conservas – alternativas ao fumo que tentou, sem sucesso, viabilizar. Na zona serrana de Sinimbu, um município de 10 mil habitantes na região central do Rio Grande do Sul, se o plano é largar o plantio de fumo, a resposta mais simples é se mudar.
Anos atrás, o agricultor tinha até certificação orgânica e vendia grãos e verduras para alimentação escolar. A partir de 2016, quando a verba de programas federais, como o de Aquisição de Alimentos (PAA) e o de Alimentação Escolar (Pnae), minguou, de clientes sobraram só as fumageiras. “Teve época que levávamos 500 quilos de batata doce toda semana para a cooperativa e vendíamos a R$2 o quilo, então valia a pena. Mas daí começaram a pedir só 18, 20 quilos”, lembra Padilha. “Por isso tivemos que voltar para o fumo.”
Na região onde ele mora, os terrenos e as estradas são irregulares e acidentados, cercados por encostas e barrancos, o que dificulta o escoamento de qualquer produção que não tenha sua logística já estabelecida, como o fumo.
“O que sustenta essa cultura e garante o tabaco na propriedade é o mercado: tu tem certeza que eles vão comprar, mesmo não sabendo por quanto vai vender”, explica Padilha, que nesta safra pretende cultivar seus últimos 50 mil pés para a Alliance One, multinacional que fornece a folha para cigarros chineses e de outras grandes empresas, como Japan Tobacco International (JTI, a fabricante do Camel) e Philip Morris International (do Marlboro).
Por que importa?
- Agricultores de regiões fumicultoras apostam sozinhos em alternativas ao plantio de tabaco, mas falta mercado para outros cultivos, como o de alimentos.
- Há anos o governo federal tenta implementar programas de apoio a fumicultores, mas medidas enfrentam falhas de gestão. Enquanto isso, indústria lança iniciativas próprias.
- Em meio à queda de uso de cigarros e avanço de vapes, a falta de políticas de diversificação pode fragilizar ainda mais o campo.
Segundo estimativas da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), eram mais de 138 mil produtores de tabaco na última safra de 2024/25, a maioria deles agricultores familiares da região Sul, como Padilha. O número, contudo, já foi maior. Em 2004/05, estava em torno de 236 mil.
O mesmo se aplica ao comércio exterior. Maior exportador da folha no mundo, o Brasil vendeu 446 mil toneladas para fora em 2024, 28% a menos se comparado a 2005, segundo números do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). A queda no período foi impulsionada pela redução global no uso de cigarros, puxada por medidas de saúde pública.
Um tratado mundial negociado no início dos anos 2000, a Convenção-Quadro para Controle do Tabaco (CQCT), é responsável por parte dessa queda. Coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), foi ratificado por 192 países. Contudo, a entrada do Brasil no acordo, em 2006, sofreu forte resistência da indústria do fumo e de fumicultores. Por isso, ao assiná-lo, o governo brasileiro prometeu criar políticas que apoiariam agricultores a diversificarem suas lavouras para outras culturas que não o fumo, já que esforços para combater o uso de cigarros levariam à redução na demanda pela folha.
No entanto, quase 20 anos depois, produtores rurais ainda sofrem para encontrar alternativas viáveis ao cultivo de tabaco. Muitos dos que envelhecem – e já não têm força nem saúde para o trabalho intenso que o fumo exige – arrendam suas terras ou as vendem. Já seus filhos não têm interesse em viver no campo, menos ainda plantando a folha. Produtores maiores adquirem as fazendas dos pequenos que se aposentam, e o perfil produtivo da agricultura familiar migra para commodities agrícolas cultivadas em grandes áreas, como a soja.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 41% da área plantada em Sinimbu em 2003 era fumo, e não havia um mísero metro quadrado de soja. Em 2023, a folha tomava 35% das lavouras do município, enquanto o grão já avançava por quase 19% delas. Já a área do feijão, alimento cultivado para consumo próprio pelos fumicultores, caiu de 7% para 2% no mesmo período.
A própria indústria também não ajuda: fumageiras e entidades rurais encaram programas de diversificação como “ataques” para “eliminar” a fumicultura, o grande motor da renda de agricultores familiares em várias regiões do Sul do país. Ao mesmo tempo, o setor também nega que pequenos produtores sejam dependentes do cultivo. O objetivo é enquadrar qualquer política pública relacionada ao controle do tabaco como um golpe desferido nos fumicultores – logo, na agricultura familiar.
“Fica inscrita na mentalidade dos produtores essa máxima de que o tabaco é a única cultura que dá renda e gera lucro na pequena propriedade”, explica a geógrafa Virgínia Etges, professora da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), cidade que concentra as empresas do setor. “E eles se fecham nisso.”
Segundo a Afubra, na média, 56% da renda bruta de fumicultores vêm da folha, enquanto cultivos de alimentos e criação de animais respondem pelo resto. Na prática, no entanto, uma parte desse volume “alternativo” vai para consumo próprio.
Em 2005, o governo federal criou o Programa Nacional de Diversificação de Áreas Cultivadas com Tabaco (PNDACT) para impulsionar a transição da fumicultura para outras formas de renda, como parte das negociações da CQCT. O projeto foi criado para tentar aliviar os impactos de quedas na demanda por cigarros para a fumicultura do país, teve algumas edições e seguia um modelo em que entidades contratadas davam assistência técnica às famílias na busca por alternativas ao fumo, mas não deslanchou.
“Nós temos produtores que tinham saído 100% do tabaco, mas voltaram depois de algum tempo por necessidade”, explica Vilmar Sergiki, presidente da Ceasol, entidade que implementou o PNDACT na região de São João do Triunfo, no centro-sul do Paraná. Na avaliação dele, a falta de um mercado com compra garantida para outras culturas prejudica essa transição, apontando a necessidade de políticas mais amplas.
No país, as fumageiras operam em um sistema integrado no qual “contratam” produtores rurais para que lhes forneçam a folha. Neste esquema, a empresa encomenda uma certa quantia de pés de fumo ao produtor, fornece os insumos (sementes, agrotóxicos, fertilizantes etc), dá orientação e garante a compra do volume encomendado ao fim da safra. (O valor, no entanto, sofre desconto pelos custos dos insumos fornecidos, que não são dados de graça pela fumageira. Se o produtor não honrar a encomenda inicial, ele se endivida).
A venda antecipada dá uma sensação de segurança, fazendo com que muitos agricultores retornem ao cultivo do fumo ao primeiro sinal de instabilidade em outros mercados, como os de grãos, verduras ou laticínios. “O tabaco também tem essas variações no preço, mas pelo menos ele garante a venda, nem que seja mal”, explica Sergiki.
Em 2019, o governo Jair Bolsonaro brecou o programa de diversificação por considerá-lo um “ataque constante à cultura lícita do tabaco”, segundo um ofício do Ministério da Agricultura da época revisado pelo Joio. Por isso, a iniciativa foi congelada.
No início de 2024, na última conferência da Convenção-Quadro, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) até anunciou a retomada do PNDACT, mas a medida está parada no gabinete do ministro Paulo Teixeira desde dezembro daquele ano. Questionada, a pasta desconversa sobre a razão da demora no lançamento. Ao Joio, o ministério prometeu relançar o programa até março de 2026.
Em abril deste ano, o Tribunal de Contas da União (TCU) divulgou os resultados de uma auditoria que identificou vários problemas nas iniciativas do MDA, como a falta de diretrizes na criação de projetos, contratos e parcerias com prazos errados e omissões no acompanhamento de resultados dos programas. Não é à toa que faltam dados sobre as últimas edições do PNDACT. Por exemplo, se ao fim dos projetos os produtores voltaram ao fumo, e se os plantios alternativos tiveram sucesso.
De acordo com pedidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) realizados pela reportagem, o único documento de avaliação do programa que a pasta dispõe é um relatório de nove páginas referente a editais implementados entre 2018 e 2023. Sem detalhar os dados, o material afirma que quase metade dos cerca de 1200 fumicultores beneficiados teriam trocado o tabaco pelo milho como “atividade principal”, o que atestaria o sucesso do programa. O gado de leite, horticultura e a produção de feijão também teriam surgido como opções no restante dos casos. Não se diz, porém, em quais regiões essas culturas tiveram sucesso, quanta renda trouxeram, nem se esclarece se o fumo deixou de ser plantado nessas propriedades.
Ao Joio, a Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater), que foi a responsável por implementar as últimas edições do programa de diversificação de tabaco, disse que “por meio de sua Diretoria Técnica, não recebeu nenhuma diretriz ou ofício referente a um novo programa de diversificação da cultura do tabaco” até o momento. O órgão também afirmou que executa seus programas e ações a partir de objetivos, público-alvo, territórios e recursos definidos pelo MDA.
O ministério até criou um plano de trabalho para resolver os problemas apontados pela auditoria do TCU, o que inclui a pactuação de um novo “contrato de gestão” entre MDA e Anater até dezembro deste ano. O lançamento do PNDACT só deve ocorrer após o documento ser assinado, já que a agência será a responsável por implementá-lo. As diretrizes para o programa estão em fase final de elaboração, segundo a pasta.
“Nós da sociedade civil já vínhamos clamando para esse programa ser retomado porque, apesar dele ter tido até um reconhecimento internacional durante certo período, ele foi muito esvaziado”, diz Mônica Andreis, diretora da ONG ACT, que luta por medidas de controle ao tabaco. “Víamos com bons olhos o anúncio [da retomada], porém não vimos isso se concretizar depois.”
Ainda assim, o plano em discussão é tímido. A versão piloto do novo projeto prevê atender 300 famílias de agricultores familiares da região Sul por meio de editais e chamadas públicas de assistência técnica, em moldes semelhantes aos de edições passadas. Há até verba prevista, cerca de R$ 3 milhões, informaram servidores da pasta ao Joio em abril. Um valor baixo se comparado a anos anteriores, quando editais do PNDACT chegaram a R$ 26 milhões e atenderam até 7 mil agricultores, como em 2018.
À reportagem, o MDA não respondeu o porquê do programa de diversificação ainda não ter sido lançado. Em nota, o ministério afirmou que “o tema está sendo tratado com a seriedade e a responsabilidade necessárias, considerando os desafios e articulações necessárias”. A pasta não respondeu a dúvidas sobre os resultados da auditoria do TCU, e se limitou a dizer que desconhece auditorias “específicas” ou “diretamente relacionadas” ao PNDACT.
Enquanto o programa de apoio a fumicultores do governo não é retomado, a indústria do cigarro se adiantou para lançar as próprias iniciativas. No fim de março, o Sindicato Interestadual das Indústrias de Tabaco (SindiTabaco), que representa as fumageiras da região Sul do país, divulgou uma versão repaginada de uma iniciativa lançada nos anos 1980 pela antiga Souza Cruz, hoje British American Tobacco (BAT). Na época, a proposta era incentivar produtores a plantarem milho ou feijão na entressafra. Agora, se chama “Tabaco é Agro: Diversificação das Propriedades”.
Na ocasião do lançamento, em um pequeno auditório com cerca de 30 lugares durante a Expoagro Afubra, um das principais feiras agrícolas do Rio Grande do Sul, o presidente do sindicato, Valmor Thesing, indicou que o novo programa faz parte da mobilização do setor às vésperas da COP do tabaco, reunião dos países signatários da Convenção-Quadro. “Nós estamos em ano de COP e já estão anunciando que vão atacar toda a cadeia produtiva de novo”, disse Thesing. “Primeiro, que tem que eliminar a produção de tabaco porque os produtores não são diversificados: mentira!”
Em junho, o Joio pediu ao sindicato que indicasse agricultores que já teriam participado do novo programa para que pudessem contar à reportagem de que modo aderir ao projeto contribuiu para que eles plantem outros cultivos. Mas o SindiTabaco preferiu não indicar ninguém nem dar mais detalhes sobre como o projeto opera.
Segundo o fumicultor Sergio Padilha, esse tipo de iniciativa de “incentivo” à diversificação se limita a oferecer, por exemplo, sementes de grãos na hora da encomenda de insumos no início de cada safra. Assim como os demais agroquímicos fornecidos para o cultivo de fumo, os custos da “diversificação” também são descontados do pagamento do produtor na hora da venda do tabaco. “Se for para comprar milho transgênico, vou em um agrocomercial da vida e compro por R$ 600 o mesmo produto que a empresa te vende a R$ 1,1 mil”, critica.
No mesmo evento, o SindiTabaco também anunciou um projeto com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), estatal do governo federal. O programa foi batizado de “Solo Protegido” e irá selecionar 33 propriedades da região Sul para testar boas práticas de manejo na produção de fumo até 2029. A iniciativa foi adaptada de uma parceria que a Embrapa já mantinha com a empresa de cigarros Philip Morris desde 2019, chamada “Auêra” e criada para, nas palavras da empresa, “promover a produção sustentável do tabaco”.
“Essa é a lógica: fortalecer e qualificar o solo para que se tenha um tabaco com maior produtividade, melhor qualidade, mas também que se trabalhe a diversificação das culturas”, afirmou ao Joio o pesquisador Waldyr Stumpf, na época chefe-geral da Embrapa Clima Temperado, que assinou o termo de cooperação com o sindicato. “Não estamos focando na substituição [do fumo], mas sim que ele [o produtor] também produza além do tabaco, porque ele já tem um mercado estabelecido, mas a gente também gostaria que ele trabalhasse feijão, milho, hortaliças, pêssego, morango”, disse.
As iniciativas, no entanto, não indicaram nenhuma forma de suporte para a comercialização desses plantios, o principal entrave para diversificar. “Hoje nós já temos outras culturas que dão mais dinheiro que o tabaco, só que a parte da comercialização é o grande gargalo”, diz Sergiki, da Ceasol, que já trabalhou com produtores de hortaliças e frutas, como alface e morango, que deixaram o fumo e não retornaram. “O agricultor sabe produzir, mas não sabe vender.”
Encontrar compradores, no entanto, não deveria ser um desafio. No Vale do Rio Pardo, uma das principais regiões fumicultoras do Rio Grande do Sul, que concentra municípios como Santa Cruz do Sul, Sinimbu e Venâncio Aires, faltam alimentos que alcancem a demanda. No entanto, há indústria do tabaco de sobra – por lá, estão sediadas as unidades de fábricas de cigarros, como Philip Morris e JTI, processadoras de fumo e multinacionais que exportam a folha brasileira.
“Um grande volume [de alimentos] é buscado, por exemplo, na Ceasa de Porto Alegre [central de distribuição a 166 km], para abastecer os supermercados aqui”, disse ao Joio o prefeito Gilson Becker, de Vera Cruz, município vizinho a Santa Cruz do Sul, que também preside a Associação dos Municípios Produtores de Tabaco (Amprotabaco), uma das entidades que apoiam os interesses do setor fumageiro. “Então tem um nicho de mercado bem expressivo que pode ser avançado e que, hoje, ainda não tem o volume de produção suficiente para atender a demanda local.”
Segundo Becker, a Amprotabaco é a favor da diversificação, mas não tem nenhuma ação coordenada que apoie esse tipo de política, que fica a cargo de cada município. Na prática, isso significa que iniciativas que apoiem alternativas ao fumo se diluem nas ações que secretarias de agricultura e equipes de assistência técnica rural já fazem para pequenos produtores do interior no geral, sejam eles fumicultores ou não.
Até 2019, o agricultor Valderi de Moura, 59 anos, costumava plantar cerca de 2,5 hectares de fumo – por volta de 40 mil pés – em sua propriedade no interior de Sinimbu. Desde então, ele passou a arrendar parte de seus 23 hectares de terras para vizinhos e agora testa o plantio de citros, na tentativa de achar uma boa alternativa à folha. “A ideia é apostar em algo que tenha um certo retorno com uma mão de obra que não seja tão grande”, explica. O teste inicial será plantá-los em cerca de meio hectare da propriedade.
A iniciativa faz parte de um projeto da prefeitura de Sinimbu que inclui Moura e outros oito produtores rurais. Com isso, cada um ganhou um pequeno incentivo municipal para investir em frutíferas. “Até R$ 4 mil, eles devolvem metade do valor [R$ 2 mil]”, ele diz. Um dos onze irmãos de pai e mãe analfabetos, o agricultor aprendeu a cultivar fumo ainda pequeno. Hoje, sua filha, que faz graduação em Agroecologia e trabalha em uma cooperativa, ajuda com os pomares – o que também poderá lhe garantir a quem comercializar a produção.
Enquanto isso, a principal fonte de renda de Moura segue sendo o arrendamento de parte de suas terras. O avanço da soja nos arredores de sua propriedade, no entanto, lhe preocupa. Há vizinhos que usam drones para pulverizar suas lavouras com agrotóxicos e o ex-fumicultor teme que o veneno possa se dispersar até seus pomares, que estão sendo cultivados de forma orgânica.
Até se aposentar do fumo, Moura era produtor integrado da Continental Tabacos (CTA), fumageira brasileira que é subsidiária da norte-americana Hail&Cotton, que fornece a folha para o mercado global, assim como a Alliance One. Elas estão entre as várias exportadoras que alçam o Brasil à liderança no comércio exterior no setor – e podem enfrentar dificuldades conforme a procura por tabaco seguir em queda no longo prazo, ainda que o tabagismo continue forte em alguns países asiáticos populosos, como China e Indonésia.
Porém, o avanço de cigarros eletrônicos pode acelerar a queda dessa demanda, já que milhares vapes podem ser abastecidos com a nicotina do fumo de poucas centenas de agricultores. Não é à toa que fornecedoras da folha, como a própria Alliance One, por exemplo, enxerguem esses novos produtos como um risco aos negócios.
“Alguns de nossos clientes mais significativos, incluindo Philip Morris International e a British American Tobacco [que produz as marcas Kent e Lucky Strike], anunciaram publicamente intenções de irem na direção de produtos livres de fumaça [vapes, tabaco aquecido e sachês], que substituiriam cigarros tradicionais”, menciona o relatório para investidores de 2024 da Pyxus, holding que é dona da Alliance One. “Geralmente, produtos livres de fumaça requerem menos tabaco em sua produção que cigarros tradicionais. O aumento na tendência de substituição de cigarros tradicionais por produtores livres de fumaça, dirigida por nossos clientes ou consumidores, poderia afetar materialmente e adversamente os resultados de nossas operações”, conclui um dos trechos, na seção de riscos ao negócio do relatório.
Já outra grande fornecedora de tabaco, a norte-americana Universal Leaf, também encara o tema com cautela. Segundo uma apresentação para acionistas sobre as atividades da companhia em 2024, a empresa considera que os “efeitos na demanda do fumo em folha” de novos produtos de nicotina são “ainda incertos ou em desenvolvimento”.
No status atual do mercado, contudo, a fumageira ressalta que “todas as grandes fabricantes de tabaco estão criando produtos de nova geração” e que eles “usam menos folhas de fumo em uma estrita comparação um-para-um com um cigarro comburente”. A multinacional, por outro lado, já investe na produção de nicotina líquida para não ficar para trás na cadeia de suprimentos para vapes.
Ainda assim, entidades que deveriam defender, em tese, o interesse público, como a rede de prefeitos Amprotabaco, apoiam a liberação de dispositivos eletrônicos sem discutir medidas que possam aliviar o impacto desse avanço aos fumicultores de seus municípios. Como o país exporta cerca de 90% do tabaco que produz, o risco independe de uma legalização no mercado interno. Hoje, cigarreiras como BAT e Philip Morris já têm entre 17% e 40% de seus lucros oriundos de “produtos livres de fumaça” – e o objetivo de ambas descrito nos relatórios anuais a acionistas é que, até 2035, o portfólio de novos produtos abocanhe a receita dos tradicionais.
Na avaliação de Romeu Schneider, presidente da Câmara Setorial do Tabaco, órgão consultivo ligado ao Ministério da Agricultura que reúne representantes da indústria e dos fumicultores, o avanço de vapes lembra o surgimento do que hoje é o cigarro convencional, antigamente chamado de “cigarro de papel”, que suplantou o consumo de palheiros e de fumo de corda décadas atrás.
“Essa migração vai acontecer, na nossa visão, também com os dispositivos eletrônicos de fumar”, avalia Schneider, que já presidiu a Afubra. “Acreditamos que o consumidor vai determinar essa transferência de uma maneira de consumo para outra e, obviamente, quem fornece os produtos precisa se adaptar gradualmente.”
Por muitas décadas, a produção fumageira do fumo de corda – um tabaco mais escuro, rústico, usado em palheiros e charutos – se concentrou na região Nordeste, principalmente no interior de Alagoas. A partir dos anos 1990, o mercado minguou e hoje há centenas de fumicultores que, a duras penas, seguem na cultura. Com baixa demanda, cada hectare plantado rende R$ 10 mil brutos ao ano por uma safra inteira, mostrou o Joio. Por lá, nem sequer as iniciativas do PNDACT – voltadas em sua maioria à região Sul – chegaram.
Nota
Essa reportagem foi originalmente publicada por O Joio e O Trigo e republicada pelo Extra Classe; realizada por Pedro Nakamura, de Sinimbu, Vera Cruz e Santa Cruz do Sul (RS), com contribuição de Raquel Torres.
Leia mais
- Agrotóxicos em lavouras de fumo causam intoxicação de trabalhadores e poluem rios no interior de SC
- Fumo produzido no Sul do país usa agrotóxicos banidos internacionalmente
- Casos de câncer preocupam comunidades rurais em SC e RS
- Famílias plantadoras de fumo. “É um regime de trabalho surreal”. Entrevista com Mariana Salomão Carrara
- Sofrimento para agricultores, abraços aos 'amigos', tabaco é problema social no RS
- Fumo produzido no Sul do país usa agrotóxicos banidos internacionalmente
- Produção de tabaco emprega crianças, desmata e causa doenças físicas e psíquicas no RS
- Tabaco. Mentiras que perpetuam o empobrecimento
- A dependência econômica do tabaco. Um problema de saúde pública. Entrevista especial com Tânia Cavalcante
- Agricultura familiar e o cultivo do fumo: mais de três séculos de dependência econômica. Entrevista especial com Amadeu Bonato
- Documentário mostra pobreza e insalubridade na produção familiar de fumo
- "Roucos e Sufocados" investiga o poder da indústria do tabaco
- Políticas antifumo impactam cultura do tabaco no Brasil
- A estratégia perversa da indústria do tabaco
- Agroecologia: Os modos de ser, de produzir e de lutar. Artigo de Denise de Sordi
- RS. Agapan alerta para prejuízos à saúde e ao meio ambiente de projeto que regula aviação agrícola
- "Bomba-relógio" de suicídios: Como uma mescla de agrotóxicos, depressão e dívidas abala grupo de agricultores gaúchos
- Agrotóxicos no Brasil: uma tragédia. Entrevista especial com Yumie Murakami
- 14 mil pessoas foram intoxicadas por agrotóxicos durante governo Bolsonaro
- Atingidos por agrotóxicos não conseguem reparação na Justiça, aponta dossiê inédito
- Mercado ilegal representa 25% dos agrotóxicos vendidos no Brasil
- Mais agrotóxicos no país que voltou a passar fome