02 Setembro 2025
"Não esqueçamos que as mulheres, juntamente com os homens, foram sujeitos da história sagrada e da Tradição em um devir histórico de contínua remodulação da mensagem cristã, mesmo que dessa sua prática tenha se perdido a memória".
O artigo é der Adriana Valerio, publicado por Avvenire, 30-08-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Adriana Valerio é historiadora e teóloga, professora de História do Cristianismo e das Igrejas da Universidade de Nápoles Federico II, autora de obras como Il potere dele donne nella Chiesa [O poder das mulheres na Igreja] (Laterza, 2016) e Maria di Nazaret: storia, tradizioni, dogmi [Maria de Nazaré: história, tradições, dogmas] (Il Mulino, 2017).
Eis o artigo.
A teologia feminista, que surgiu nos Estados Unidos da América por volta da década de 1960 e se afirmou na Europa no final da década seguinte, iniciou de forma sistemática e irreversível um processo de revisão da Bíblia para uma maior compreensão da Sagrada Escritura no que diz respeito às questões de gênero, e os resultados foram esclarecedores. A exegese implementada nos últimos cinquenta anos não só permitiu ler os textos nas culturas patriarcais que os geraram, revelando os limites das interpretações androcêntricas tradicionais, mas também destacar a possibilidade de escrever uma história da exegese feminina.
Não esqueçamos que as mulheres, juntamente com os homens, foram sujeitos da história sagrada e da Tradição em um devir histórico de contínua remodulação da mensagem cristã, mesmo que dessa sua prática tenha se perdido a memória. De fato, a presença feminina no panorama dos estudos da história da exegese é escassa, devido à pouca consideração reservada às mulheres como sujeitos legítimos e de autoridade da leitura e da interpretação. Quem deu o devido valor, por exemplo, às questões bíblicas postas pela Abadessa Héloïse, ou à reescrita de algumas passagens bíblicas por Hildegarda de Bingen, ou à elaboração filosófica do diálogo com a samaritana na obra de Marguerite Porete, ou às influências da teologia paulina em Catarina de Sena, ou às propostas exegéticas das humanistas em idade moderna, ou à releitura política oferecida pelas pregadoras dos movimentos evangélicos do final do século XIX?
Hoje, uma nova fase está se abrindo na relação entre mulheres e textos sagrados, à medida que os estudos bíblicos e históricos se unem, e a Sagrada Escritura se torna um tesouro ainda mais precioso pelas possibilidades que oferece de análise e interpretação, destacando os textos e sua recepção, as narrativas de uma história da salvação da qual emergem inéditos protagonistas femininas, e o eco que essas passagens tiveram nas consciências e vidas daqueles que encontraram o sentido do seu existir.
A novidade do projeto colaborativo internacional "A Bíblia e as Mulheres", nascido em 2006 no âmbito da Associação Feminina Europeia para a Pesquisa Teológica (AFERT), reside precisamente no confronto do método exegético com a abordagem histórica. A série resultante, 21 volumes em 4 línguas (italiano, alemão, inglês, espanhol), é fruto de vinte anos de pesquisa e será apresentada com a conclusão da obra nas edições italiana e alemã (Il Pozzo di Giacobbe e Kohlhammer) em Nápoles, de 4 a 7 de dezembro, na conclusão do Jubileu e do Sínodo napolitano, a pedido do Cardeal Domenico Battaglia, que trabalhou nos últimos três anos para dar maior espaço ao pensamento e às práticas das mulheres.
Na ocasião, com a participação de mais de sessenta estudiosas do mundo inteiro que participaram desse empreendimento cultural, será apresentada a Obra completa, abrangendo tanto os textos sagrados quanto a história do Ocidente, para identificar as relações entre a interpretação da Bíblia e a condição feminina.A série está dividida em três grandes seções.
A primeira trata da exegese bíblica, com três volumes dedicados à Bíblia hebraica (Torá; Profecia; Escritos) e dois ao Novo Testamento (Evangelhos e Cartas).
A segunda seção, em quatro volumes, é dedicada aos estudos judaicos: dos escritos pseudoepígrafos e apócrifos ao Talmude e ao judaísmo medieval.
A terceira, em doze volumes, a mais ampla, é dedicada à história da exegese. Abrange desde os Padres da Igreja até os textos femininos da Igreja primitiva; da Idade Média à Idade Moderna; da Reforma à Querelle des femmes; do Iluminismo aos movimentos e às novas comunidades religiosas do século XIX; da exegese feminista do século XX às tendências atuais nos estudos bíblicos e de gênero.
Uma parte significativa da série "A Bíblia e as Mulheres" como um todo é, portanto, dedicada ao estudo da recepção, não apenas para reconstruir o uso do texto sagrado por meio da pregação, de tratados, de códigos jurídicos, da literatura, da iconografia e assim por diante, mas, acima de tudo, para traçar as linhas de uma elaboração feita pelas próprias mulheres. Dessa forma, o projeto assumiu tanto uma releitura exegética das Escrituras, fazendo um balanço do estado da pesquisa, quanto abriu novos caminhos por meio do conhecimento da história de sua recepção no horizonte das épocas antigas e contemporâneas. Daí a importância das fontes arquivistas, literárias, iconográficas, musicais e artísticas no sentido mais amplo, que, juntamente com os escritos teológicos, constituem o amplo espectro das fontes a que haurir para promover uma maior compreensão das relações entre o texto sagrado e as questões de gênero.
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