23 Agosto 2025
"Para Francisco, o Concílio não foi o fim de um trajeto, mas o início de um caminho de crescimento e amadurecimento da Igreja, sintonizada com os sinais dos tempos. Quando olhamos para os sinais dos tempos de hoje, o campo da moral e da ética se apresenta como um dos mais desafiadores para a teologia, tanto na relação interna da Igreja (ad intra), como na relação da Igreja com o mundo (ad extra)", escreve Alexandre A. Martins, em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Alexandre A. Martins é presidente da Sociedade Brasileira de Teologia Moral e professor de ética social e bioética na Universidade Marquette.
48º Congresso Brasileiro de Teologia Moral. (Foto: Reprodução)
O Concílio Vaticano II foi encerrado no dia 08 de dezembro de 1965, sendo a Gaudium et Spes, certamente, seu documento mais relevante para a teologia moral. 60 anos se passaram desde então, e os sócios da Sociedade Brasileira de Teologia Moral decidiram que era tempo para dedicar o Congresso de 2025 para refletir sobre a relevância do Concílio para a teologia moral na atualidade.
A relevância desse evento para a Igreja Católica é única, e seus temas, documentos, perspectivas, ensino e doutrinas têm iluminado o caminhar da Igreja desde então, com discussões teológicas ad intra (que olha para a própria teologia e comunidade eclesiástica) e ad exta (na relação da teologia e da comunidade eclesiástica com o mundo contemporâneo).
48º Congresso Brasileiro de Teologia Moral. (Foto: Reprodução)
Por três dias (20, 21 e 22 de agosto de 2025), teólogos e teólogas da moral se reúnem em São Paulo para o 48º Congresso Brasileiro de Teologia Moral a fim de refletir sobre o impacto do Concílio na Igreja Católica, especialmente em relação as questões morais e aos desafios do presente que não faziam parte do discurso público há 60 anos, mas que hoje se tornam imprescindíveis.
Numa entrevista, em 2023, o Papa Francisco disse:
O Concílio não trouxe apenas uma renovação da Igreja. Não é uma questão de renovação, mas um desafio para tornar a Igreja cada vez mais viva. O Concílio não renova, ele rejuvenesce a Igreja. A Igreja é uma mãe que sempre vai em frente. O Concílio abriu as portas a um maior amadurecimento, mais sintonizado com os sinais dos tempos. [1]
Para Francisco, o Concílio não foi o fim de um trajeto, mas o início de um caminho de crescimento e amadurecimento da Igreja, sintonizada com os sinais dos tempos. Quando olhamos para os sinais dos tempos de hoje, o campo da moral e da ética se apresenta como um dos mais desafiadores para a teologia, tanto na relação interna da Igreja (ad intra) como na relação da Igreja com o mundo (ad extra).
No contexto da moralidade, a leitura dos sinais dos tempos e a renovação de perspectivas foram, durante o Concílio, e são, atualmente, um grande desafio para a Igreja Católica, assim como é para a sociedade em geral e para teólogos e teólogas da moral, que têm a responsabilidade de ajudar as comunidades a crescer na reflexão e no enfrentamento de tais desafios.
Os avanços proporcionados pelo Concílio Vaticano II apenas foram possíveis por causa dos esforços teológicos e pastorais de renovação anteriores ao próprio Concílio. Tais esforços encontraram respaldo e voz nas plenárias entre os padres conciliares, visíveis em três grandes textos adotados pelo Vaticano II, a saber: Sacrosanctum Concilium, Dei Verbum e Lumen Gentium, que acolhem as novas perspectivas dos estudos e experiências eclesiológicas. Isso não acontece com os temas de teologia moral. O Vaticano II não apresentou um documento exclusivo sobre eles, mas os catalisou na Gaudium et Spes (GS), um texto no qual a Igreja Católica apresenta uma postura de abertura ao diálogo com o mundo moderno, suas transformações e desafios, a ponto de se dizer ser a GS é o texto de teologia moral do Vaticano II. No entanto, a realidade é que, diferentemente das outras áreas, o movimento pela renovação da teologia moral não encontrou o mesmo respaldo no Concílio.
A discussão conciliar sobre temas de moral foram muito tensas, com grandes embates entre diferentes perspectivas, sobretudo entre aqueles que gostariam de ver a Igreja assumir uma nova postural moral e aqueles que defendiam a manutenção da moral tradicional. Não foi por acaso que a GS foi o último documento a ser aprovado. Mesmo com essa tensão, o Concílio inovou com sua visão antropológica e personalista sobre a dignidade do ser humano. Isso foi possível por conta do autoexame que os padres conciliares fizeram sobre a missão da Igreja no mundo moderno. Em termos de teologia moral, a GS apresenta uma grande inovação e mudança de perspectiva na interpretação da vida moral cristã. O coração da GS é a relação da Igreja com o mundo, chamada a ler os sinais dos tempos à luz do Evangelho – conceito teológico essencial para discernir a atuação da Igreja no mundo em todos os tempos e contextos. A GS inaugura, assim, uma nova orientação para a leitura e o compromisso moral da comunidade cristã. De acordo com Marciano Vidal, essa nova orientação tem como características essenciais uma epistemologia alicerçada no Evangelho e na experiência humana, assumindo o discernimento e a consciência moral numa perspectiva holística do ser humano como critérios para ler os sinais dos tempos e a humanização como critério moral cristão. [2] Em outras palavras, segundo a GS, a moral cristã deve levar o ser humano a realizar o que o faz ser mais humano e o que é mais conforme e respeitoso da sua dignidade.
O caminho da teologia moral não seguiu essa perspectiva sem conflitos nas décadas posteriores ao Concílio. Sobretudo no pontificado de João Paulo II, houve um grande incentivo ao retorno da moralidade a partir de uma leitura tradicional da lei natural. Diferentes áreas da moralidade seguiram diferente caminhos, muitos deles conflitivos com outros, especialmente do ponto de vista metodológico. Isso é claro, por exemplo, quando analisamos as diferentes abordagens para questões de moral social e moral sexual no pós-Vaticano II. Se, na moral social teve prioridade o imperativo da consciência mediada pela fé, na moral sexual teve prioridade a conformidade da consciência as leis imutáveis inscritas na natureza.
Muitos argumentam que uma reconciliação metodológica apenas foi iniciada com a publicação da Amoris Laetitia do Papa Francisco com sua eclesiologia do discernimento pastoral.
Os teólogos da moral Todd A. Salzman e Michael G. Lawler argumentam que
“[...] a sugestão de novos métodos pastorais por parte do Papa Francisco ilumina um caminho para uma coerência antropológica e metodológica maior entre o ensino social católico e o ensino sexual católico ao priorizar coerentemente a orientação moral pelo sujeito de uma consciência discernente em relação à orientação moral pelo objeto de normas que são externas ao sujeito”. [3]
Com isso, retorno ao Papa Francisco e seu apelo para olharmos o Concilio Vaticano II como um “abridor de portas” em vista de um “maior amadurecimento” da Igreja e, por que não dizer, da nossa reflexão moral a partir da teologia. Como essa visão, podemos reconhecer que, apesar de toda a inovação teológica e avanços eclesiásticos proporcionados pelo Concílio, há limites e críticas ao alcance das propostas e orientações apresentadas por seus documentos. Ademais, temas críticos já no seu tempo e muitos que se começaram a se destacar nas décadas posteriores ao Concílio não foram abordados pelos padres conciliares e uma pergunta aberta hoje é se os textos do Concílio oferecem fundamentos e perspectivas para ler a realidade atual e enfrentar seus desafios.
Reunidos em São Paulo, teólogos e teólogas da moral fazem o exercício de retornar o Concílio com honestidade intelectual para compreender a perspectiva ético-moral nos documentos conciliares, mas com os pés na realidade de hoje, marcada por novos desafios para os quais os documentos do Vaticano II não oferecem respostas claras, mas que, certamente, abriram portas para que possamos buscá-las, em diálogo com a tradição da Igreja e com o mundo contemporâneo.
Hoje estamos no início de um novo pontificado, o de Leão XIV, e é muito cedo para dizer qual será sua perspectiva e quais serão suas prioridades. Contudo, esta transição se apresenta como uma oportunidade para teólogos e teólogas da moral oferecer uma contribuição à comunidade Católica e humana a partir do aprofundamento da reflexão teológica fundamentada na tradição cristã e olhar para os desafios do presente com imaginação criativa e inovadora para que crescemos como comunidade de fé e como sociedades sem nos amedrontarmos diante dos desafios.
[1] “O Concílio Vaticano II foi, na verdade, uma visita de Deus à sua Igreja”. Entrevista com o Papa Francisco (1a. parte), Instituto Humanitas Unisinos, 02 de março de 2023. Clique aqui.
[2] Vidal, Maciano. “Gaudium et spes y Teología Moral. A los 50 anos del Concilio Vaticano II”, Moralia 35 (2012) p. 122-130 iii Todd A. Salzman e Michael G. Lawler “Amoris Laetitia: aspectos antropológicos e metodológicos e suas implicações para a teologia moral”, Cadernos de Teologia Pública 15, n. 136, 2018.
[3] Todd A. Salzman e Michael G. Lawler “Amoris Laetitia: aspectos antropológicos e metodológicos e suas implicações para a teologia moral”, Cadernos de Teologia Pública 15, n. 136, 2018. Clique aqui.