06 Agosto 2025
"Quem dera o Brasil jamais esquecesse as palavras de Harry Hopkins: “a fome não se discute: as pessoas não comem no longo prazo, elas comem todos os dias”. Ou melhor, quem dera o Brasil mantivesse, de forma permanente, seu compromisso de erradicar a fome, caetaneando: 'gente é pra brilhar, não pra morrer de fome'", escrevem Murilo Tambasco, Luiz Gonzaga Belluzzo, Nathan Caixeta e André Passos Santos.
Luiz Gonzaga Belluzzo é sócio-diretor da BPCT Consultoria Econômica. Professor emérito da UNICAMP. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e secretário de Ciência e Tecnologia de São Paulo. Em 2001, foi incluído entre 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.
André Passos Santos é sócio-diretor da BPCT Consultoria Econômica. Doutorando em Desenvolvimento Econômico pelo IE-UNICAMP. Pesquisador do CECON-UNICAMP
Nathan Caixeta é sócio-diretor da BPCT Consultoria Econômica. Mestre em Desenvolvimento Econômico pelo IE-UNICAMP. Pesquisador associado do NEC-FACAMP.
Murilo Tambasco é sócio-diretor da BPCT Consultoria Econômica. Mestrando em Economia pela PUC-SP. Pesquisador da FIPE e do NEC-FACAMP.
Em meio ao colapso econômico que assolou os Estados Unidos na década de 1930, o presidente Franklin Delano Roosevelt protagonizou uma notável articulação política. Determinado a restaurar a rentabilidade da economia e devolver poder de compra às famílias, o democrata foi perspicaz o bastante para construir uma ampla coalizão progressista, reunindo setores sociais heterogêneos para enfrentar a Grande Depressão com coragem e determinação.
A coordenação e união de forças viabilizou a criação de programas emergenciais de assistência social, voltados a garantir uma renda mínima aos mais de 12 milhões de desempregados da época. O New Deal foi uma emblemática resposta de enfrentamento à maior crise da história do capitalismo até então, marcada por um esforço governamental intenso para conter o avanço da miséria e restabelecer a dignidade da população.
Um dos marcos desse período foi a criação, em 1935, da Work Projects Administration (WPA), iniciativa destinada à realização de obras públicas como forma de reabsorção do desemprego. À frente desse ambicioso projeto, Harry Hopkins, o principal auxiliar de Roosevelt, expressou seu pragmatismo humanitário através da máxima: “a fome não se discute: as pessoas não comem no longo prazo, elas comem todos os dias”.
A frase de magnífica sensibilidade e beleza, parece ter recuperado uma parcela de sua popularidade no Brasil, depois de um tempo escondida nas masmorras. Pela segunda vez neste século, nosso país sai do mapa da fome, que aponta os países onde mais de 2,5% da população enfrenta grave insegurança alimentar crônica, em que os indivíduos consomem menos calorias do que o necessário para uma vida saudável.
Em 2002, mais de 10% da população brasileira vivia em condições de subnutrição, um resultado que refletia as consequências de mais de duas décadas de crise econômica. Em contraste à ausência de assistência social, a fome passou a protagonizar o centro do debate político com a adoção dos programas Bolsa Família e Fome Zero, fazendo da comida que chegava à mesa de mais de 14 milhões de famílias brasileiras uma vitrine ao mundo, que admirava nossos avanços sociais.
Foram as políticas e programas articulados à instituições multilaterais, alinhadas ao investimento público, que levaram o Brasil a sair do mapa da fome em 2014. De acordo com ONU, o país apresentou uma redução de 82,1% do número de pessoas em situação de subalimentação, adotando um conjunto de “boas práticas” a serem seguidas por outros países do sul global.
No entanto, com a eclosão da depressão econômica e, sobretudo, a partir adoção de políticas de cunho contracionistas, a exemplo do Teto de Gastos (2016) - que fixou um limite à despesa primária dos poderes executivo, legislativo e judiciário, equivalente a correção pelo IPCA da despesa primária realizada no ano imediatamente anterior - o ciclo de superação da fome e da pobreza não foi apenas interrompido, como apresentou sinais de retrocesso, sendo gravemente atingido pelo sucateamento das políticas públicas e o debate sobre a diminuição imperativa do papel do Estado na economia.
A opção pela austeridade fiscal deferiu um golpe mortal às camadas mais carentes e vulneráveis da população brasileira, que observaram o desmonte da rede de proteção social e o aumento nos índices de pobreza. Com o abalo da pandemia da COVID-19, a situação foi ainda mais agravada e o país retornou ao mapa da fome no triênio 2018-2020. De acordo com os dados do Inquérito Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19, em 2020, 55,2% dos domicílios brasileiros conviviam com insegurança alimentar, o que em números absolutos correspondiam a 116,8 milhões de pessoas sem acesso pleno e permanente a alimentos na qualidade e quantidade necessárias.
A tormenta pôde apenas ser superada com uma mudança de rota nas relações institucionais entre o Estado e o povo em 2023. A “re”adoção de políticas sociais robustas, combinadas com os estímulos à geração de emprego e renda, apoio à agricultura familiar, fortalecimento da alimentação escolar e acesso à alimentação saudável. O sentimento era de que havia chegado a hora de uma reaproximação entre os setores do governo e esta figura tão abstrata, chamada de cidadão brasileiro.
Em 2023, a pobreza extrema foi reduzida ao mínimo histórico de 4,4% da população, o que significou a retirada de quase 10 milhões de pessoas dessa condição em relação a 2021. Com o mercado de trabalho dinamizado, a recuperação gradual do emprego, o aumento da formalização e a volta da política de valorização real do salário-mínimo fizeram com que um milhão de famílias superassem a pobreza e deixassem de necessitar do benefício do Bolsa Família em julho deste ano.
Este movimento foi a potência que nos levou a sair novamente do mapa da fome em 2025, sustentado por políticas públicas que consideram, adicionalmente, o caráter anticíclico da economia e que, assim como explicado por Keynes, reconhecem a necessidade de estruturação das condições de criação de renda como motor para a melhoria das condições socioeconômicas da população.
Quem dera o Brasil jamais esquecesse as palavras de Harry Hopkins. Ou melhor, quem dera o Brasil mantivesse, de forma permanente, seu compromisso de erradicar a fome, caetaneando: “gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”.