"A diversidade religiosa no Brasil tem variadas marcas. Chama-nos a atenção o fato de que, não obstante o fortalecimento institucional e popular de propostas religiosas de caráter mais verticalista, em geral conflitivas, fechadas ao diálogo, marcadas por violência, não somente simbólica, e por posturas fundamentalistas, o campo religioso tem simultaneamente experimentado formas ecumênicas de diálogo entre grupos religiosos distintos."
Claudio de Oliveira Ribeiro (Foto: Arquivo Pessoal)
O artigo é de Cláudio de Oliveira Ribeiro, pastor metodista e professor de Ciência da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora.
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Temos conversado e refletido em vários espaços sobre o pluralismo, especialmente o religioso, devido a nossa percepção de que se trata de uma dimensão importante na atualidade. Ela está ligada às nossas preocupações sociais e políticas, sobretudo com a situação de dor e sofrimento das pessoas pobres e marginalizadas. Neste espaço significativo de Vozes de Emaús retomamos esse assunto.
Nossa primeira consideração é que o cenário da diversidade religiosa brasileira, em função das novas configurações socioculturais, tem sido realçado em pelo menos duas direções. A primeira, dentro do campo especificamente religioso, tanto nas fronteiras das diversificações internas de cada grupo – o que nos leva a nos referirmos sempre no plural: espiritismos, cristianismos, catolicismos, pentecostalismos, candomblés, umbandas, encantarias, islamismos –, quanto nos contatos conflitivos ou harmoniosos dos grupos religiosos na sociedade.
A segunda direção se refere às interações das vivências religiosas com dimensões públicas e seculares da cultura expressas na vida cotidiana, tais como práticas econômicas, formas de entretenimento e de lazer, exercícios terapêuticos e de valorização da saúde, espiritualidades não explicitamente religiosas e outras. Tais zonas fronteiriças, somadas à esfera especificamente religiosa, tornam o campo religioso cada vez mais complexo e plural. Para as pessoas e grupos ligados ao campo teológico da libertação, que consideram a realidade como ponto de partida da reflexão, essa compreensão é de fundamental importância.
A diversidade religiosa no Brasil tem variadas marcas. Chama-nos a atenção o fato de que, não obstante o fortalecimento institucional e popular de propostas religiosas de caráter mais verticalista, em geral conflitivas, fechadas ao diálogo, marcadas por violência, não somente simbólica, e por posturas fundamentalistas, o campo religioso tem simultaneamente experimentado formas ecumênicas de diálogo entre grupos religiosos distintos. O encontro dos diferentes grupos religiosos, seja nos confrontos ideológicos ou identitários, seja nas aproximações e valorização da diversidade, contribui para uma crescente reconfiguração do quadro religioso, que intensifica o pluralismo.
Outro aspecto de nossas análises é observar as diferenças religiosas dentro da dinâmica social que leva em conta os efeitos dos processos de globalização. Eles, como se sabe, são amplos e se revelam especialmente na velocidade das alterações socioculturais, no ineditismo de certas reconfigurações religiosas e nas formas híbridas cada vez mais crescentes no campo religioso.
As experiências religiosas na atual sociedade globalizada se apresentam fortemente marcadas pelo modelo econômico vigente, altamente excludente, o que revela a força sedutora do capitalismo globalizado, como força de massificação e uniformização. Tais vivências, embora estejam dentro de um quadro crescente de diversidade religiosa, confirmam, em certo sentido, as teses que defendem a ideia da força do sistema capitalista como religião subtraindo dela a importância na organização da vida, como nos indicou Walter Benjamin. No entanto, realçamos que, contraditoriamente, estão presentes na sociedade diversas expressões de presença pública das religiões, articuladas ecumenicamente ou não, que vão em direção do reforço da democracia, do pluralismo e da capacidade contra-hegemônica na defesa dos direitos humanos e da terra. É importante que nos atentemos para elas.
A construção teológica que procuramos desenvolver com base na Teologia da Libertação e no princípio pluralista considera as diversas e crescentes expressões religiosas de presença pública, sobretudo as que se opõem ao status quo e às formas imperiais de dominação, embora saibamos, como já referido, que as religiões na atualidade estão relativizadas em sua força de mobilização da vida pelas engrenagens do sistema econômico ou agem em consonância com ele. Porém, o quadro é por demais complexo.
De fato, a vivência religiosa no Brasil, assim como em outras partes do globo, sofreu fortes mudanças nas últimas décadas. Alguns aspectos do novo perfil se devem:
(i) à afirmação religiosa indígena e afro-brasileira em suas diversas matrizes, em sua maioria híbridas e recompostas, incluindo as formas de umbandas, candomblés e encantarias, e uma série de expressões culturais regionais, como Tambor de Mina, Catimbó-Jurema, Terecô, Xangô e Jarê, além de expressões sincréticas como Vale do Amanhecer, Fraternidade Eclética Espiritualista Universal, entre outras;
(ii) à multiplicação e maior visibilidade dos grupos orientais, em toda a sua diversidade étnica e cultural, tanto as diferentes expressões de budismos, e, em menor escala, de hinduísmos, de xintoísmos, de taoísmos e de confucionismos, como Seicho-no-Ie, Perfect Liberty, Igreja Messiânica, Fé Bahá’í, Hare Krishna e seguidores de Osho, e organizações como Ananda Marga e a Brahma Kumaris;
(iii) à presença pública, embora minoritária, das diferentes expressões do judaísmo e do islamismo, incluindo, em cada uma delas, uma variedade de práticas devido à diversidade étnica, grupos com orientações político-ideológicas distintas, vivências comunitárias diversificadas, e maior ou menor flexibilidade no tocante aos aspectos tradicionais destas religiões;
(iv) à força popular do espiritismo kardecista, na diversidade e autonomia de diferentes grupos, formalmente instituídos em centros espíritas ou não, de colorações doutrinárias distintas como, por exemplo, os que cujas práticas são de maior ou menor intersecção com o catolicismo popular ou com expressões afro-brasileiras, e de especificidades ideológicas como aqueles que se caracterizam pela defesa dos direitos humanos e pautas inclusivas;
(v) às expressões espiritualistas e mágicas que se configuram em torno da chamada Nova Era e outras formas de neopaganismos em ascensão como Wicca e Rosa Cruz;
(vi) às expressões religiosas caracterizadas pelo ritual de consumo de ayahuasca, como o Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal;
(vii) ao esforço nucleador dos mórmons, dos testemunhas de Jeová e dos adventistas do Sétimo Dia;
(viii) à manutenção, no campo católico-romano, das atividades das comunidades eclesiais de base (CEBs) e das pastorais populares, ao lado de grupos chamados tradicionais, de devoções populares e do fortalecimento institucional dos movimentos de renovação carismática, que reforçam a pluralidade católica constituída por dezenas de ordens, grupos e tendências doutrinárias e teológicas;
(ix) ao crescimento evangélico, em especial o das igrejas e movimentos pentecostais, ao lado da visibilidade pública e midiática desses grupos, somada à presença e atividade das igrejas evangélicas chamadas “tradicionais”, à multiplicação de “células” e comunidades autônomas, e à maior visibilidade e articulação de movimentos evangélicos progressistas;
(x) à visibilidade e multiplicação de grupos, movimentos e comunidades cristãs LGBTQIA+, católicas e evangélicas, em especial nos centros urbanos.
Todas essas expressões, além de outras, formam um cenário complexo e de matizes as mais diferenciadas, ainda mais se forem acrescentadas as formas religiosas seculares e culturais, como as terapêuticas, de autoajuda, econômicas, midiáticas e de entretenimento. Tais características estão presentes nos processos de diversificação do quadro religioso brasileiro e se reforçam a partir de vários outros elementos. Entre eles estão as variadas formas de trânsito religioso, de múltipla participação e pertença religiosa, de experiências de transreligiosidade e de novas configurações religiosas, boa parte delas peculiares e inéditas. Não se pode esquecer o número crescente de pessoas que se declaram sem religião, que no Brasil está atrás apenas dos grupos católicos e evangélicos.
Trata-se de uma realidade plural que desafia enormemente o pensar teológico latino-americano e suas práticas políticas e pastorais correspondentes, sobretudo a preocupação com a vida concreta das pessoas pobres e subalternizadas. A conversa, portanto, está longe de terminar! E é importante que cada um de nós vá trazendo os tijolos para que a construamos bem.