“O Executivo gerencia, mas não disputa projeto de sociedade”. Entrevista especial com Sérgio Botton Barcellos

Se de um lado o sistema tem imposto limites reais ao governo Lula 3, de outro, o governo tem se se acomodado e não entrega o prometido no Plano de governo eleito em 2022, afirma o sociólogo

Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/AGência Brasil

Por: Patricia Fachin | 17 Julho 2025

“Reconstruir o país e fazer novamente um Brasil de todos e para todos”, como disse o presidente Lula no discurso de posse do terceiro mandato, em 2023, ainda é uma miragem. Lula 3, na avaliação de Sérgio Botton Barcellos, “é menos mobilizador e muito pragmático”. O receio do governo e de setores progressistas, explica, é de que um novo “junho de 2013” emerja. “Isso também tem paralisado toda e qualquer tentativa de convocar as ruas como aliadas da governabilidade”, destaca. O protesto que tomou o país pouco mais de dez anos atrás, menciona, “foi lido por parte dos progressistas como o estopim de sua derrocada e da ascensão da extrema-direita. Desde então, a lógica predominante tem sido a de evitar qualquer agitação que possa escapar ao controle institucional. Isso inclui um certo distanciamento em relação a pautas populares mais incisivas e uma política de contenção de conflito”.

Na atual gestão, constata o sociólogo, “o Executivo gerencia, mas não disputa projeto de sociedade”. O desafio de Lula 3 “é sair do gerenciamento das desigualdades e injustiças e retomar as condições de propor aquilo que transforma e que traz justiça social e ambiental”.

Depois de duas décadas de governos progressistas, de direita e extrema-direita, a sociedade dá sinais de cansaço. Neste ano, informa Barcellos, “77,6% das famílias brasileiras estão endividadas, e 29,1% estão com dívidas em atraso” ou com problemas relativos à diminuição da renda. A situação, contudo, não gera “conformação” com os rumos do país. O que acontece, na avaliação do entrevistado, é que a população está ocupando a “maioria do seu tempo para sobreviver”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Sérgio Botton Barcellos explica como o discurso de eficiência associado ao agronegócio foi construído historicamente e vem se consolidando em muitos setores da sociedade brasileira, ditando os rumos do país. “O agronegócio foi se transformando em uma espécie de símbolo de Brasil rural, de sucesso, de orgulho nacional. Isso sufoca e invisibiliza outras experiências e outros discursos, ainda mais quando se faz necessário tocar nas questões de ‘terra para quê?’ e ‘terra para quem?’”

Apesar do amplo apoio do Executivo ao setor, pondera, “a luta não desapareceu, mas se fragmentou, se deslocou e perdeu parte da centralidade política que teve em décadas anteriores. Muitos dos movimentos que antes ocupavam o centro das mobilizações, hoje resistem em condições mais difíceis, com menos visibilidade, menos apoio institucional e diante de um Estado que, mesmo sob um governo progressista, segue priorizando o agronegócio em sua política econômica”.

Sérgio Botton Barcellos (Foto: Arquivo pessoal)

Sérgio Botton Barcellos é doutor e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Leciona no Departamento de Ciências Sociais e no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e é colaborador no Programa de Pós-graduação Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

Confira a entrevista.

IHU – Como o discurso da eficiência do agronegócio foi construído no imaginário brasileiro, particularmente na história recente do país? Diria que esse discurso já se enraizou na sociedade, inclusive entre os agricultores?

Sérgio Botton Barcellos – O discurso da eficiência associado ao agronegócio no Brasil não surgiu espontaneamente e por mérito. Ele é o resultado de uma construção histórica, ideológica e institucional que se intensificou sobretudo a partir da década de 1964 e se expande e consolida na década de 1990, mas que remonta às estruturas fundantes da colonização portuguesa. Ele não nasce do nada.

Desde a ditadura empresarial-militar de 1964, o Estado brasileiro tem investido fortemente na modernização da agricultura, com foco na expansão das fronteiras agrícolas, no crédito rural voltado para grandes propriedades e na criação de uma infraestrutura logística que favorece a exportação de commodities. O Brasil, depois da invasão portuguesa, foi organizado, ao longo da história, com base na concentração fundiária, monocultura e exportação. O sistema de plantation, implantado no século XVI, associava grande propriedade à produtividade econômica. Como destaca o historiador Caio Prado Júnior, em Formação do Brasil Contemporâneo (1942), essa lógica fundou um país voltado para fora, com pouca preocupação com o abastecimento interno e sob controle de elites agrárias. Essa mesma estrutura atravessou séculos. A abolição da escravidão, por exemplo, não foi acompanhada de uma reforma agrária. O latifúndio, segundo José de Souza Martins (O cativeiro da terra, 1990), manteve-se como a base de poder rural, com a exploração de mão de obra assalariada ou subcontratada.

Modelo latifundiário revestido de retórica tecnocrática e publicitária

Ao longo do tempo, esse modelo foi revestido de uma retórica tecnocrática e publicitária em meio à educação no campo (não do campo), assistência técnica e tendo como pré-requisitos para o crédito a produtividade, a competitividade, a eficiência, o protagonismo global. Durante a ditadura civil-militar (1964-1985), o Brasil passou por uma grande transformação tecnológica no campo com financiamento do Estado brasileiro: mecanização, pacotes de insumos da Revolução Verde, expansão de fronteiras agrícolas. Contudo, essa “modernização” não acompanhou o acesso à terra para os(as) trabalhadores rurais em suas diferentes categorias sociais. Ela consolidou o poder do latifúndio e de setores das elites agrárias. É nesse período que se forja a ideia de que o agronegócio é eficiente por natureza, por seu suposto uso racional da tecnologia e por “alimentar o mundo”.

Ao longo dos anos 1990 e 2000, o que era chamado agribusiness passa a ser denominado como agronegócio e passou a ser apresentado como “o Brasil que dá certo”, em contraste com os conflitos fundiários, a pobreza rural e os trabalhadores(as) do campo, frequentemente estigmatizados como “atrasados” ou “ineficientes”. Essa narrativa foi amplificada por grandes meios de comunicação, como a Rede Globo, por exemplo com campanhas como “Agro: a indústria-riqueza do Brasil”, por think tanks empresariais, como o Instituto Pensar Agro e a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), grandes feiras agropecuárias, e, mais recentemente, com o aporte da cultura do “agronejo”.

Diria, infelizmente, sim, que esse discurso, devido a essa conjugação de fatores, vem se consolidando como uma forma de “consenso” em muitos setores da sociedade brasileira. Ele ganhou tração também em contextos urbanos e diria até que com certa ambivalência entre agricultores(as) familiares e camponeses(as). Muitos(as) passaram a internalizar a ideia de que só serão reconhecidos(as) socialmente e terão êxito econômico se aproximando do agronegócio, adotando tecnologias de forma descontextualizada, produzindo para cadeias longas de mercado e buscando certificações de produção que muitas vezes ignoram suas realidades.

Resistências

O enraizamento do agro, contudo, não é homogêneo e nem definitivo. Ele convive com resistências, contra narrativas e práticas que apontam para outras formas de produzir, viver e pensar a terra. As lutas dos povos indígenas e quilombolas e a luta pela reforma agrária das redes agroecológicas mostram que a disputa em torno da terra, além de econômica, é também simbólica e cultural. Ou seja, o discurso da eficiência do agronegócio não é apenas uma afirmação técnica, é uma construção ideológica com base, digamos, construída sob quatro aspectos: expropriação – exploração do trabalho – monocultura – exportação. E isso precisa cotidianamente ser dito e questionado.

IHU – Como explica o apoio de governos progressistas e de direita ao setor? Em que aspectos os diferentes atores políticos convergem e se distanciam na defesa do agronegócio?

Sérgio Botton Barcellos – O respaldo de governos progressistas e de direita ao agronegócio pode ser explicado por uma conjunção de fatores históricos, estruturais, estratégicos e ideológicos. Em primeiro lugar, no capitalismo brasileiro e na posição que o país ocupa na divisão internacional do trabalho, o agronegócio ocupa uma posição central no modelo econômico brasileiro, como setor exportador de commodities, gerador de superávit na balança comercial e até, em algumas situações, fonte de arrecadação fiscal em estados como Mato Grosso, Goiás e Bahia. Isso cria uma relação de interdependência econômica que atravessa governos de diferentes matizes ideológicas.

O apoio simultâneo de governos progressistas e conservadores ao agronegócio não é uma contradição pontual, mas expressão de um pacto mais profundo que atravessa a história política brasileira. Esse pacto tem raízes na permanência do latifúndio como estrutura fundante da desigualdade nacional, o que Florestan Fernandes (1975) chamava de “burguesia contrarrevolucionária”, que domina o Estado, bloqueia reformas estruturais e neutraliza a democracia social no campo. Desde a ditadura empresarial-militar de 1964, o Brasil passou a consolidar um modelo de “modernização conservadora” (Martins, 1981), no qual a concentração fundiária se manteve intacta, mas passou a ser revestida com a linguagem da técnica e da produtividade. O agronegócio, como síntese desse processo, ganhou musculatura política, econômica e simbólica.

Esse setor tem um poder político considerável, articulado pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG) e Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) (uma das maiores e mais influentes do Congresso Nacional). Essa bancada da Frente, formada por representantes de grandes proprietários de terra, empresas do agronegócio e cooperativas agrícolas, opera como um bloco suprapartidário, pressionando por reformas e legislações que favorecem o setor, com a (des)regularização fundiária, apropriação de terras devolutas da União, o desmonte da legislação ambiental e liberação de agrotóxicos.

Conciliação de interesses

Nos governos progressistas anteriores (2003-2014), como os de Lula e Dilma, houve uma tentativa de conciliar interesses: de um lado, o incentivo à agricultura familiar e a programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE); de outro, o fortalecimento do agronegócio como motor da economia nacional. Essa “dupla aposta” gerou avanços importantes em políticas sociais, mas também manteve e, em alguns casos, aprofundou a estrutura concentradora da terra e dos recursos. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por exemplo, continuou e priorizou o financiamento de grandes frigoríficos e o crédito rural majoritariamente beneficiou o agronegócio.

Os governos de direita, dentre os quais, os mais recentes, de Temer e Bolsonaro, assumiram abertamente a agenda do agronegócio. Isso se traduziu na desregulamentação ambiental, no enfraquecimento dos órgãos de fiscalização, no ataque aos direitos territoriais dos povos indígenas e na criminalização dos movimentos sociais do campo. A retórica mudou: deixou de lado a tentativa de equilíbrio e passou a rechaçar em boa parte os pequenos produtores, os ambientalistas e os defensores da reforma agrária.

Apesar dessas diferenças de forma, há um mito de fundo: a ideia de que o agronegócio é intocável, um setor “estratégico” e “eficiente”, cuja expansão é um bem nacional. A divergência está na maneira de se relacionar com os conflitos que esse modelo gera: governos progressistas tendem a mitigá-los, enquanto governos de direita os intensificam ou ignoram seus efeitos deliberadamente.

Esse conjunto de aspectos políticos e econômicos consolidam-se em políticas públicas, como no caso do Plano Safra, empréstimos do BNDES etc. Assim, essa convergência revela um limite profundo do pacto político brasileiro. O acesso à terra continua sendo uma fronteira de conflito e desigualdade. E a ausência de uma reforma agrária estrutural, de uma tributação justa sobre grandes propriedades e de políticas estruturantes para a agricultura familiar e camponesa com base na transição agroecológica mostra que, independente do governo, o latifúndio segue sendo um dos pilares do poder no Brasil e privilegia uma pequena parcela da sociedade.

IHU – Por que há dificuldades de pensar outros modelos de desenvolvimento econômico para o país, que vão além da hegemonia do agronegócio?

Sérgio Botton Barcellos – Pensar um modelo de desenvolvimento rural que não seja pautado no agronegócio, atualmente, esbarra em uma combinação de estruturas e instituições históricas, políticas, econômicas e simbólicas na sociedade brasileira que o próprio Estado deu aporte e consolidou por meio de uma elite oligárquica agrária e industrial em diferentes estágios do capitalismo no Brasil. Vislumbrar no horizonte outras alternativas de desenvolvimento rural para o Brasil em ampla escala, além do agronegócio, é um exercício utópico, diante de um mito de modelo agrário e agrícola imposto. Desde a colonização, a terra foi apropriada por poucos, explorada para exportação e usada como instrumento de poder. Esse padrão não foi rompido, apenas se atualizou sob novas roupagens: o agronegócio é, na prática, uma modernização do latifúndio, digamos que com equipamentos de alta tecnologia, mas ainda sustentado por concentração fundiária, intensa exploração do ambiente e do trabalho humano e uma produção planejada para atender interesses dos países centrais do atual estágio do capitalismo na Ásia e na Europa.

Apoio estatal ao agronegócio: símbolo do Brasil rural

O Estado, por meio dos seus governos, desempenha um papel central nessa equação. Políticas públicas, crédito, infraestrutura, incentivos fiscais, financiamento à pesquisa e blindagem política são massivamente direcionados ao agronegócio. O exemplo mais expressivo e recente disso, é o Plano Safra 2024/2025, que destinou mais de R$ 516 bilhões ao agro empresarial, diante apenas de R$ 89 bilhões à agricultura familiar. Isso molda o próprio conceito de “desenvolvimento”, no qual se o progresso e a modernidade tendem a ser assimilados como sinônimo de coisas que são exportáveis, rentáveis, tecnificadas e em larga escala. Além do aspecto econômico, existe uma construção ideológica muito forte. A propaganda do “Agro é pop, é tech, é tudo” não é apenas marketing e o “Agronejo” são instrumentos da produção de uma crença sobre a realidade presente e futura.

O agronegócio foi se transformando em uma espécie de símbolo de Brasil rural, de sucesso, de orgulho nacional. Isso sufoca e invisibiliza outras experiências e outros discursos, ainda mais quando se faz necessário tocar nas questões de “terra para quê?” e “terra para quem?” A agroecologia, a reforma agrária, a economia solidária e os modos de vida camponeses são tratados como “alternativas”, “experiências residuais” ou “resistências”, quando, poderiam ser eixo de outras formas de relações e modos de produção sociais e econômicos para o país, com base em justiça social e ambiental, ancoradas na vida e na distribuição de riquezas, e não na devastação e concentração de renda. E claro, nesse caso, quando me refiro à riqueza, é associado à ideia de bem-viver.

Em síntese, a dificuldade de imaginar outro modelo, além de vários outros aspectos sociais, políticos e ambientais, diria que decorre de um tripé: dependência histórica de exportações primárias, captura institucional e financeira que garante subsídios bilionários ao latifúndio e hegemonia cultural que articula esse arranjo ideológico como “o Brasil que dá certo”.

Projetos de elites versus projetos populares

Para isso, precisamos ter, efetivamente, uma pauta e um projeto de país diferentes deste que está posto, que é o atual modelo de desenvolvimento que o governo Lula 3 reproduz de forma preponderante. Isto é, precisamos cada vez mais de menos modelos feitos por elites a portas fechadas, e de mais projetos de base popular. Hoje, as forças sociais ditas progressistas e de esquerda não têm como viabilizar um projeto alternativo ao modelo que está posto, caso houvesse esse projeto. Para isso, seria necessária uma capacidade de acordo político que não há no momento, pois as forças progressistas que estão nos governos têm uma imensa dificuldade de romper com sua condição de classe, seus preceitos liberais e os privilégios que têm a partir dos recursos e acessos que a máquina do Estado lhes proporciona e de suas relações com a iniciativa privada. As forças de esquerda, hoje, estão, pelo menos por enquanto, diminutas ao ponto de viabilizar mobilizações de massa e sem condições de se elegerem de forma substantiva do ponto de vista político partidário na estrutura eleitoral posta.

Quem quer uma sociedade diferente desta, no mínimo com justiça social, antes de querer inovar em algo ou pensar em algo novo que traga alguma novidade, de fato, talvez esteja precisando fazer e entregar o básico, ou como se diz, “fazer o feijão com arroz” ou “fazer o dever de casa”. Isso seria relativo ao trabalho cotidiano de base comunitária; construir políticas com as comunidades a partir da participação, não apenas querendo adesismo; observar, escutar e perguntar mais, do que chegar como portadores de uma suposta superioridade “moral”; mais convivência com as pautas populares e construir lideranças, ao invés de se impor como dirigente; cumprir o plano de governo eleito etc. São essas coisas que mais escuto no dia a dia, quando converso na feira com o queijeiro que vem do “interior”, com o artesão de couro, ou mesmo com os(as) estudantes. Não basta dizer que é alternativa; tem que ser uma alternativa. Muita gente não concorda com a extrema-direita ou o Agro nos territórios rurais, mas não se engaja com as pautas progressistas porque não vê mais nelas “cara e jeito de povo” e a transformação da sua vida.

Assim, enquanto não houver, por parte da sociedade, pressão para que o Estado e os governos garantam investimento social e econômico massivo em diversificação produtiva, soberania alimentar e agroecologia a partir de experiências concretas e apropriadas às diferentes realidades do Brasil e administradas por um corpo político e técnico preparado e comprometido com essas pautas no interior do Estado, elas continuarão relegadas a experiências locais de organizações e movimentos sociais, políticas públicas minguadas e sem fomento apropriado, além do questionamento e ataque ideológico constantes.

Para iniciar, uma possibilidade de inversão dessa lógica exigiria romper com o subsídio desigual entre agronegócio e a agricultura familiar e camponesa, fazer valer a função social da terra prevista na Constituição, subsidiar iniciativas de base agroecológica, sobretudo, disputar o imaginário coletivo de que eficiência e riqueza não é só produzir mais e mais commodities. Ou seja, redistribuir a riqueza, para quem produz riqueza com seu trabalho, e no caso não são as oligarquias agrárias e urbanas. Produzir no rural pode e deve ser para alimentar a sociedade brasileira de forma saudável, com justiça social e ambiental. Alternativas existem e resistem: cooperativas, redes e coletivos agroecológicos, experiências de soberania alimentar, redes camponesas, iniciativas em economia solidária. A própria vida em territórios indígenas e quilombolas são exemplos vivos de outros modos de produzir e viver.

Atualmente, o desafio é trazer as experiências de base popular para as políticas públicas, embasando um projeto de país. Isso exigiria intensa mobilização social e de formulação, desde as forças progressistas e a esquerda, com boa parte da população.

IHU – A agenda agrária e fundiária não é uma das prioridades do Executivo? Qual é a mentalidade que está por trás do fato de tornar essas pautas secundárias e qual é o impacto dessa decisão para comunidades tradicionais, povos originários e o país como um todo?

Sérgio Botton Barcellos – A agenda agrária e fundiária segue relegada ao segundo plano no governo Lula 3, apesar das promessas de campanha e da retórica de justiça social. Essa omissão não é acidental. Ela está profundamente enraizada em uma estrutura histórica de poder no Brasil, em interesses econômicos dominantes que viabilizam a manutenção do governo e em uma concepção de desenvolvimento centrada na mercantilização do território, que favorece os grandes proprietários e marginaliza os povos do campo.

Como afirma o antropólogo Alfredo Wagner de Almeida, a omissão do Estado em relação à terra é uma forma de governar. Ele administra a desordem fundiária quando isso interessa ao capital e às elites nacionais, estaduais e locais.

O Estado brasileiro, ao longo de sua história, geralmente atuou de forma mais ou menos intensa como sustentador da ordem fundiária concentrada. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, menos de 1% dos estabelecimentos rurais concentram 45% de toda a área agrícola do país. Ainda assim, os recursos públicos continuam priorizando os grandes proprietários. Outro exemplo, além do Plano Safra que já foi mencionado, é como os governos priorizam políticas que financiam e expandem o agronegócio, com forte apoio de bancos públicos. Nesse governo o BNDES destinou R$ 66,5 bilhões ao setor em 2024/25, sendo R$ 18,7 bilhões apenas para produtores médios e grandes. Enquanto isso, a agricultura familiar, responsável por boa parte dos alimentos consumidos no Brasil, recebe menos de 15% dos recursos, mesmo com redução de juros e aumento das linhas do Pronaf para juventude, mulheres, agroecologia e semiárido.

O governo Lula 3, com sua conformação tecnocrática e institucionalista, operacionalizado por uma base pequeno burguesa que ocupa os espaços e cargos estratégicos do governo, geralmente tende a buscar uma suposta estabilidade institucional e a preservação de alianças frágeis do que fazer enfrentamentos estruturais. É uma questão ideológica que reflete também em uma mentalidade tecnoburocrática no interior do Estado e defende interesses da elite, que é 1% da população, mesmo que tenha a ilusão que defende o contrário. Isto é, não se trata apenas de ineficiência administrativa de um grupo inapto e oportunista que porventura ocupe o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) ou mesmo de dificuldades de “correlação de forças” junto ao Congresso.

Esse conjunto de aspectos comprometem não apenas os direitos dos povos do campo, das águas e das florestas, mas também a soberania alimentar, o enfrentamento à crise climática e a participação popular nos territórios. As omissões do governo Lula 3 diante das pautas da agricultura familiar e camponesa estão corroendo a sua legitimidade política entre os povos do campo. E cabe distinguir que legitimidade política é uma coisa; lógica eleitoral é outra.

Sem a decisão para que haja condições políticas rumo à reforma agrária, demarcação dos territórios dos povos originários e garantia do direito à terra como bem comum, a violência no campo continuará crescendo, a injustiça se aprofundará paulatinamente e o país permanecerá refém de um modelo concentrador, excludente, exportador e ambientalmente destrutivo.

IHU – Qual é o projeto agrícola e agrário em curso no país a partir dos recursos destinados pelo Plano Safra? Em contrapartida, como essa divisão assimétrica contribui para acirrar os conflitos territoriais?

Sérgio Botton Barcellos – O que está em curso, infelizmente, sem meias palavras, é um projeto de desenvolvimento rural excludente, baseado na financeirização da terra, no esvaziamento das políticas de reforma agrária e na submissão da política agrícola aos interesses do capital agroindustrial. Esse modelo aprofunda a desigualdade, alimenta os conflitos e bloqueia a possibilidade de construir outro campo brasileiro: diverso, popular, sustentável e enraizado nos direitos dos povos.

Essa assimetria reforça um desenvolvimento rural que privilegia o crescimento econômico concentrador ao destruir modos de vida locais. E tem efeitos diretos no aumento dos conflitos por terra e água. O relatório “Conflitos no Campo Brasil 2024”, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) registra 2.185 conflitos, o segundo maior número da série histórica desde 1985. Desse total, 1.768 confrontos envolvem disputa por terra, com 1.680 episódios de violência, o pico na última década.

O desequilíbrio se agrava ao observarmos a quantidade de pessoas afetadas: em 2024, 904 mil estiveram diretamente envolvidas em conflitos por terra. Os conflitos pela água somaram 266 ocorrências (3º maior patamar em 5 anos), muitas vezes decorrentes de contaminação por agrotóxicos. Este último item é especialmente preocupante: houve um aumento de 762% nessa tipologia de violação (de 32 para 276 casos), afetando 17.027 famílias, em grande parte pelo uso de pulverização aérea no Maranhão. As regiões mais afetadas pelos conflitos do campo são o Cerrado, a Amazônia e o Matopiba, onde o avanço do agronegócio, da mineração e da grilagem atinge diretamente territórios de comunidades tradicionais.

Acirramento de conflitos

Essa divisão assimétrica contribui diretamente para o acirramento dos conflitos no campo. Ao favorecer o agronegócio com crédito, subsídios, tecnologia e respaldo político, o Estado contribui para a expansão da fronteira agrícola sobre territórios indígenas, quilombolas, camponeses e extrativistas, aumentando a grilagem, a violência e os despejos.

A reforma agrária está em uma situação de letargia. O governo afirma ter assentado 71 mil famílias em 2024. Entretanto, segundo o MST, apenas 5.800 lotes foram efetivamente disponibilizados, a maioria resultante da regularização de famílias já em ocupação, procedimento já adotado nos governos Lula e Dilma anteriormente. Esse número representa menos de 5% do que foi alcançado anualmente nos primeiros mandatos de Lula e Dilma. Além disso, a lentidão na titulação de territórios quilombolas, a baixa execução do Programa Nacional de Reforma Agrária e a fragilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) como órgão executor agravam esse cenário. Atualmente há cerca de 145 mil famílias vivendo em acampamentos no país. Destas, 100 mil estão ligadas ao MST. O movimento reivindica o assentamento imediato de ao menos 65 mil que aguardam a regularização há mais de 15 anos. A promessa no MDA é assentar 30 mil famílias até o final de 2025.

Gestão da crise agrária

Embora o nome “Terra da Gente” dialogue com o imaginário popular, sua execução tem sido tratada como um projeto técnico-administrativo, sem embasamento em um plano nacional de reforma agrária robusto. Segundo análises publicadas no site Outras Palavras e por pesquisadores críticos, o programa reflete mais uma tentativa de “gestão da crise agrária” do que de enfrentamento da desigualdade fundiária.

A própria estrutura política do governo Lula 3 tem colocado o MDA em segundo plano. A agenda agrária e fundiária não figura entre as prioridades do Executivo, o que se reflete na destinação orçamentária e na influência limitada do ministério em decisões centrais. A condução da política agrícola está fortemente voltada às demandas do agronegócio, com apoio do sistema financeiro e de outros ministérios mais influentes, como a Casa Civil e a Agricultura. Cabe também questionar qual tem sido a ação do governo e de sua base no Congresso, diante das diversas proposições legislativas defendidas pela bancada ruralista no Congresso Nacional que expressam o projeto político de aprofundamento da expropriação territorial e da devastação ambiental no país.

De acordo com a ONG Terra de Direitos, em 34 anos desde o reconhecimento constitucional do direito ao território quilombola, apenas 54 territórios foram titulados pelo INCRA. Desses, 24 têm titulação total e 30 foram titulados de forma parcial, ou seja, com apenas parte da área reconhecida. Em 11 desses 30 casos, a titulação cobre menos de 15% da área total. Os dados não incluem processos conduzidos por estados ou municípios, nem comunidades sem certificação da Fundação Palmares. O processo de regularização costuma levar décadas entre o reconhecimento, a medição e a titulação, e avança em ritmo insuficiente diante da demanda real.

Em relação aos conflitos territoriais e ambientais relacionados aos povos originários, aos quais muitos convivem em um mesmo território com a agricultura familiar e camponesa, mesmo após a recriação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) e a criação do Ministério dos Povos Indígenas, o ritmo das demarcações de terras segue extremamente lento. Há várias demarcações de Terras Indígenas com processos paralisados em diferentes fases. Mesmo assim, nos primeiros dois anos de atuação do Ministérios do Povos Indígenas, 13 Terras Indígenas foram homologadas. Claro, sempre se quer e precisa demarcar muito mais.

Isto é, esses conflitos não são fatos em relações sociais isoladas, mas são consequência direta da ausência de regularização fundiária, da falta de demarcação de territórios e do abandono das políticas públicas voltadas para o campo. E isso, por mais que se diga que não é a intenção, torna o governo por meio de sua prática, não pelo seu discurso, um indutor de violência no campo e gestor das desigualdades sociais nos territórios rurais.

Priorizar a agenda agrária exigiria confrontar interesses poderosos, como a Frente Parlamentar da Agropecuária, grandes empresários do agro, fundos imobiliários e até setores do Judiciário e do Ministério Público. E esse governo, por sua característica lulopetista e de frente ampla, não fará isso.

IHU – Quem luta por terra, comida, soberania alimentar e agricultura familiar e camponesa hoje no Brasil? Essa ainda é uma luta dos setores progressistas da sociedade? Diria que essa luta se dissipou nas duas últimas duas décadas? Por quê?

Sérgio Botton Barcellos – A luta por terra, comida, soberania alimentar e pela valorização da agricultura familiar e camponesa segue viva no Brasil, embora tenha passado por transformações nas últimas duas décadas. Ainda é, sem dúvida, uma luta fortemente vinculada aos setores progressistas e de esquerda da sociedade, mas precisa ser compreendida dentro de um contexto mais complexo, no qual há avanços localizados, retrocessos institucionais, disputas simbólicas intensas e desafios organizativos reais. São muitas organizações e movimentos sociais; vou tentar listar aqui algumas das que mais acompanho ao longo da minha trajetória.

Movimentos

Atualmente, essa luta é protagonizada por uma diversidade de atores que atuam tanto no campo quanto nas cidades. Destacam-se os movimentos sociais como o MST, que com mais de 40 anos de história continua sendo uma referência nacional na luta pela reforma agrária popular, combinando ações de ocupação, produção agroecológica, educação do campo e cooperativas. O movimento realiza todos os anos a Feira Nacional da Reforma Agrária, que em sua última edição em São Paulo reuniu mais de 300 mil pessoas, com alimentos produzidos nos assentamentos, debates, oficinas e atividades culturais. Além disso, mantém mais de 100 escolas do campo, como o Instituto Educar, e um sistema próprio de comercialização e distribuição de alimentos, como a exitosa experiência dos Armazéns do Campo, com unidades em várias capitais, inclusive em João Pessoa.

Também há o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), que atua com força especialmente no Sul e no Nordeste e articula pautas relativas à soberania alimentar junto à luta camponesa por justiça social. O MPA promove anualmente a Jornada Nacional de Lutas por Soberania Alimentar e mantém a campanha permanente “Comida de Verdade no Campo e na Cidade”, além de articular cooperativas e redes de sementes crioulas em parceria com universidades e institutos de pesquisa.

O Movimento Camponês Popular (MCP) é outro ator relevante que atua especialmente no Centro-Oeste, Sudeste e parte do Nordeste, organizando camponeses que lutam por terra, agroecologia e um projeto de campo voltado à vida digna e à preservação ambiental. O MCP promove a campanha nacional “Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis”, e desenvolve sistemas agroflorestais em áreas de retomada camponesa. Também participa da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e tem inserção em redes territoriais de base ecológica.

A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) mobiliza centenas de organizações, redes, sindicatos, ONGs, universidades e agricultores que constroem, em diferentes territórios do país, experiências concretas de produção de alimentos saudáveis e preservação ambiental. A ANA promove o Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), que reúne milhares de participantes e é uma das maiores expressões públicas da agroecologia popular no Brasil. Também coordena campanhas de valorização da agricultura camponesa e realiza sistematizações de experiências em agroecologia em todos os biomas do país.

Os povos indígenas e quilombolas também são protagonistas dessa luta, com articulações como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), que reivindicam a demarcação e titulação de seus territórios e resistem aos avanços do agronegócio, da mineração e da grilagem sobre suas terras. A APIB organiza anualmente o Acampamento Terra Livre, o maior encontro indígena do país, com milhares de lideranças reunidas em Brasília. A CONAQ, por sua vez, articula campanhas como “Quilombo Resiste”, promove jornadas de formação e participa ativamente das discussões sobre o combate ao racismo ambiental e a defesa do território como bem comum.

A temos também a Comissão Pastoral da Terra (CPT) que foi criada em 1975 pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em meio à ditadura militar, com o objetivo de apoiar camponeses e trabalhadores rurais vítimas de violência, grilagem e injustiças fundiárias. Desde então é uma referência na defesa dos direitos das populações do campo, povos indígenas e comunidades tradicionais. Atua na denúncia de conflitos agrários, produzindo anualmente o relatório Conflitos no Campo Brasil. Entre seus principais eventos estão a tradicional Romaria da Terra e as Jornadas de Formação com base na educação popular, articulação ecumênica e fortalecimento das lutas territoriais.

Sindicalismo rural brasileiro

Ao lado desses movimentos, são muito atuantes e relevantes duas importantes organizações do sindicalismo rural brasileiro: a Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (CONTAG) e a Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar do Brasil (FETRAF). A CONTAG, com mais de 4 mil sindicatos rurais filiados, representa uma base ampla, capilarizada e diversa de pequenos(as) agricultores(as), trabalhadores(as) assalariados(as) e aposentados(as) do campo. Ela teve papel fundamental na criação de políticas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), o Programa Nacional de Habitação Rural e as Conferências de Desenvolvimento Rural durante os governos Lula e Dilma. Sua atuação, fortemente institucionalizada, garantiu avanços, mas também foi criticada por certa distância da mobilização de base e por uma atuação mais voltada à negociação técnica do que à disputa política mais ampla. Ainda assim, a CONTAG realiza periodicamente a Marcha das Margaridas, uma das maiores mobilizações de mulheres do campo da América Latina, que reúne dezenas de milhares de participantes em Brasília para pautar direitos sociais, ambientais e territoriais. Também promove a Semana Nacional da Agricultura Familiar e atua na articulação e execução de políticas públicas com o MDA e outros ministérios.

Já a Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar do Brasil (FETRAF), que surgiu nos anos 2000 como uma dissidência da Central Única dos Trabalhadores (CUT), adotou desde o início um foco mais direto na agricultura familiar enquanto sujeito político autônomo. Com forte presença no Sul, Sudeste e Nordeste, a FETRAF defende com ênfase a agroecologia, a participação das mulheres e dos(as) jovens, e tem apostado em formas alternativas de comercialização e cooperação. Coordena feiras de economia solidária em parceria com universidades e administra projetos de agroindústria familiar, além de participar de conselhos e fóruns de políticas públicas. Nos últimos anos, ampliou sua atuação em redes de abastecimento local e sistemas de comercialização por meio de cooperativas.

Ambiente adverso para mobilização social

No entanto, cabe considerar que a urbanização acelerada, a violência no campo, a fragmentação das lutas sociais, o crescimento das igrejas neopentecostais no campo e a ascensão do bolsonarismo no rural criaram um ambiente adverso para a mobilização em torno da terra e dos territórios. A luta não desapareceu, mas se fragmentou, se deslocou e perdeu parte da centralidade política que teve em décadas anteriores. Muitos dos movimentos que antes ocupavam o centro das mobilizações, hoje resistem em condições mais difíceis, com menos visibilidade, menos apoio institucional e diante de um Estado que, mesmo sob um governo progressista, segue priorizando o agronegócio em sua política econômica.

Apesar disso, a resistência continua. Há experiências consolidadas de coletivos agroecológicos, feiras livres, bancos de sementes crioulas, escolas do campo, ocupações urbanas que se articulam com o rural e novas gerações que recuperam o valor da terra como território de vida, e não apenas como mercadoria. Considero que a CONTAG, FETRAF, MST, MPA, MCP, ANA, APIB e CONAQ seguem sendo organizações históricas e de destaque nessa disputa, com capilaridade, legitimidade e potencial de (re)organização constante.

Onde vivo e pesquiso, com os limites do meu ponto de vista, a luta pela terra, os debates e ações pela soberania alimentar e por um rural digno de se viver perpassa em boa parte por essas organizações e movimentos sociais.

IHU – O senhor disse recentemente que o nome de Tarcísio de Freitas como possível candidato à presidência “ganha força no meio do ‘Agro’”. Quais posições do governador de SP agradam ao setor?

Sérgio Botton Barcellos – O nome de Tarcísio de Freitas, atual governador de São Paulo, tem ganhado força entre setores do agronegócio como possível candidato à presidência em 2026. Ele parece representar uma espécie de “bolsonarismo que come com garfo e faca”. Ele foi ministro da Infraestrutura no governo Bolsonaro, mas sempre se manteve em uma posição tecnocrática, longe dos arroubos ideológicos do ex-presidente. Essa imagem de gestor apolítico, que entrega obras e resultados, agrada muito ao empresariado urbano e rural, que busca previsibilidade, segurança jurídica, desregulamentação para seus negócios, sem o risco que figuras mais estridentes da extrema-direita oferecem.

Em São Paulo, seu governo reforçou essa imagem ao anunciar pacotes bilionários de investimentos em infraestrutura, incentivo ao agronegócio e parcerias público-privadas. O apoio ao setor agroindustrial com mais de R$ 2 bilhões em menos de dois anos, somado à defesa de obras estratégicas e a privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP), de ferroviárias e rodoviárias, ampliou seu prestígio entre as federações industriais, grandes produtores e fundos de investimento. Ele também tem defendido o enxugamento da máquina pública, a privatização de empresas estatais e o controle dos gastos públicos — uma agenda que sintoniza com os interesses de bancos, multinacionais e investidores estrangeiros.

Do ponto de vista simbólico, Tarcísio “agrega valor” como alguém que, para eles, “não vem do mundo político tradicional”, mas que soube se projetar com apoio militar, sem perder a interlocução com partidos do centrão, do bolsonarismo e sem rejeições nos setores mais tecnocráticos da direita.

Até alguns dias atrás, sua candidatura à presidência passou a ser considerada uma “solução de centro-direita” viável para 2026, ainda mais em um cenário em que Bolsonaro está inelegível, Sergio Moro, enfraquecido, e nomes como Zema ou Caiado não conseguem unificar o campo liberal-conservador. Tarcísio, no momento, tem sido apontado como a “alternativa ideal” para as elites econômicas que desejam um governo alinhado ao mercado, ao agronegócio e ao conservadorismo moral, mas sem o caos institucional, o isolamento internacional ou o desgaste que marcaram o bolsonarismo em sua forma original. É visto como um “executivo confiável”

Recentemente, o nome dele havia ganhado mais tração ainda nesse setor, quando, em abril recente, durante a Agrishow em Ribeirão Preto, o governo paulista anunciou um pacote de R$ 600 milhões destinados ao agronegócio paulista. Esse aporte incluiu R$ 100 milhões para subvenção ao seguro rural via Fundo de Expansão do Agronegócio Paulista (FEAP), R$ 200 milhões para recuperação de mil quilômetros de estradas rurais com construção de pontes e centros de distribuição, R$ 50 milhões para o programa “Pró Trator” (maquinário com juros reduzidos), R$ 115 milhões em fundos de investimentos (FIDC) para infraestrutura logística e biocombustíveis, além de R$ 50 milhões para a linha “Agromáquinas” da Desenvolve SP e R$ 110 milhões em crédito via FEAP para cadeias produtivas como leite, orgânicos e irrigação

Ou seja, o governador de São Paulo representa uma síntese funcional entre o agro, o bolsonarismo e a FIESP, apresentando-se como alternativa à polarização política e como alguém capaz de garantir continuidade institucional aos interesses do agronegócio, representando menos “risco”. Agora, cabe acompanhar como vai ficar a sua popularidade e seus próximos passos diante do tarifaço de Trump, com o registro pró-Trump e selfies com o boné do MAGA (Make America Great Again).

IHU – Em artigo recente, o senhor disse que “muitas questões, injustiças e desigualdades no campo permanecem e uma espécie de modus operandi e status quo dos governos do PT em relação à agricultura familiar e camponesa”. Pode explicar essa ideia? Se é assim, o que explica o apoio de parte desses setores ao partido em períodos de campanha presidencial?

Sérgio Botton Barcellos – Primeiro se reconhece e é inegável que os governos do PT foram historicamente mais abertos ao diálogo com os movimentos do campo, criaram políticas inovadoras, como linhas diferenciadas no PRONAF, o PAA e o PNAE (com compras da agricultura familiar), investiram em programas de habitação rural, educação no campo e incentivo à agroecologia, e possibilitaram espaços institucionais de participação (como os conselhos e conferências nacionais de desenvolvimento rural).

A noção de um modus operandi refere-se ao funcionamento semelhante repetido de um padrão de gestão que, embora reconheça formalmente a importância da agricultura familiar e camponesa, a trata como acessória, como um setor a ser assistido, e não como centro de um projeto de desenvolvimento nacional soberano e sustentável.

Essa frase expressa uma crítica recorrente e fundamentada no campo dos estudos agrários e nas próprias experiências vividas e relatadas por movimentos sociais, sindicatos e organizações do campo: a de que, apesar de avanços promovidos pelos governos do PT, sobretudo entre 2003 e 2015, muitas das estruturas de desigualdade e exclusão que marcam o meio rural brasileiro não foram enfrentadas de forma estrutural. Isso inclui a lentidão ou paralisia na reforma agrária, a concentração de recursos públicos no agronegócio, a criminalização de movimentos do campo e o enraizamento de uma lógica de desenvolvimento rural subordinada às demandas do mercado capitalista e da exportação de commodities.

Escolha tática e estratégica

O apoio que parte significativa dos movimentos sociais rurais e da agricultura familiar oferece ao PT durante as campanhas presidenciais deve ser compreendido não como adesão cega, mas como uma escolha tática e estratégica. Trata-se de um voto em defesa de um campo político mínimo que permita a continuidade da luta, que reconheça a legitimidade dessas organizações e que não as trate como inimigas internas, como fizeram os governos Temer e Bolsonaro.

Ou seja, nem o agronegócio, nem a agricultura familiar e camponesa são um bloco monolítico, pois ambos têm diferentes matizes ideológicas, interesses, conflitos e acordos entre si. Observa-se o avanço do bolsonarismo e do agronegócio em segmentos da agricultura familiar e em assentamentos rurais seja pelo debate da “classe média rural”, seja via táticas de cooptação no governo Bolsonaro, pela pressão ideológica via Serviço de Aprendizagem Rural (SENAR), Agronejo, pela desinformação via redes sociais e por meio de grupos religiosos.

Paradoxo e ambiguidade

Em outras palavras, há um paradoxo vivido por muitas das organizações e movimentos sociais: de um lado, a frustração com o não enfrentamento de temas centrais, como a reforma agrária, a reversão dos privilégios ao agronegócio e a criação de um modelo alternativo de desenvolvimento; de outro, a constatação de que fora desse campo progressista institucional, as condições de existência e organização política são ainda mais difíceis. Assim, o apoio se renova mais por ausência de alternativas viáveis no espectro político e pela necessidade de manter alguma institucionalidade democrática para continuar resistindo, organizando e disputando políticas públicas.

Essa ambiguidade também revela um dos impasses centrais do Brasil atual: a falta de um projeto de país que coloque o campo e os territórios tradicionais no centro da soberania alimentar, da justiça ambiental e da justa redistribuição de riqueza. Enquanto isso não se torna prioridade real, o ciclo histórico se repete na agricultura familiar e camponesa: avanços parciais e políticas de baixo lastro em governos progressistas, reconhecimento discursivo e manutenção da estrutura desigual do campo.

IHU – Para onde o governo Lula 3 está conduzindo o Brasil? Quais diria que são os avanços, as estagnações e os retrocessos da nova gestão? Em que aspectos o governo atual é diferente e semelhante das gestões anteriores?

Sérgio Botton Barcellos – O governo Lula 3 representa uma combinação complexa de avanços, estagnações e retrocessos, conduzindo o país por uma rota de reconstrução institucional, mas com notáveis limites impostos por um cenário político fragmentado, um Congresso conservador e a necessidade constante de conciliação com o mercado simbolizado pelo arcabouço fiscal. Ao contrário de seus dois primeiros mandatos, Lula retorna ao Planalto em um país transformado pela crise institucional iniciada em 2016, pela ascensão da extrema-direita com aspirações neofascistas, pelo desmonte de políticas sociais e públicas, por uma nova correlação de forças marcada pela ascensão da extrema-direita, a desmobilização social e a retração do campo progressista e da esquerda.

Avanços

Considero que os principais avanços do governo Lula 3 são o combate à fome, a reestruturação dos programas sociais e a retomada de protagonismo internacional. Em 2023, a insegurança alimentar severa caiu de 17,2 milhões para 2,5 milhões de pessoas, segundo dados do governo. O Bolsa Família foi relançado com valor médio de R$ 670 e atendeu mais de 21 milhões de famílias. O novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) prevê R$ 1,68 trilhão em investimentos até 2026, com foco em habitação, mobilidade, energia e educação. Na política externa, o Brasil recuperou espaço em fóruns internacionais como BRICS, Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), G20 e COPs ambientais, retomando um papel ativo nas negociações globais sobre clima, comércio e democracia.

No que tange os dados macroeconômicos, a quem interessar, o país apresentou crescimento de 2,9% do PIB em 2023, a maior alta em anos recentes, com recorde na balança comercial (superávit de US$ 98,8 bilhões) e redução histórica do desemprego, que chegou a 6,2% em 2024, apesar do aumento da informalidade e precarização das condições de trabalho.

Contradições

No entanto, muitos desses avanços convivem com contradições. A execução orçamentária de programas sociais e ambientais tem sido baixa. Outro exemplo é o caso das universidades federais. O orçamento de 2024 para as universidades federais foi fixado em aproximadamente R$ 44 bilhões, mas esse valor está abaixo do orçamento pré-pandemia, quando, em 2014, o orçamento das universidades federais foi de R$ 49 bilhões, o que representa uma redução de cerca de 10%, considerando a inflação acumulada. Esta diminuição impacta diretamente na manutenção das universidades e na qualidade dos serviços prestados aos estudantes, como cursos de graduação e pós-graduação, pesquisa científica, assistência estudantil e infraestrutura.

Em temas estruturantes, como reforma tributária, o governo priorizou a simplificação da cobrança sobre o consumo, sem enfrentar o problema da regressividade tributária brasileira. A proposta aprovada beneficia setores empresariais e pode trazer eficiência ao sistema, mas ainda não toca nas grandes fortunas, lucros e dividendos, mantendo a concentração de renda e patrimônio intocada.

A governabilidade tem se sustentado a partir de uma aliança pragmática com a direita (centrão), resultando em concessões significativas. O governo sancionou mais de R$ 59 bilhões em emendas parlamentares em 2024 e entregou ministérios estratégicos a partidos conservadores, comprometendo a coerência programática de sua gestão. Além disso, é comentário comum nos corredores do palácio do planalto a disfuncionalidade administrativa desse governo, em relação aos outros governos Lula e o governo Dilma. Isso tudo, e mais aspectos que poderiam ser trazidos, tem limitado o enfrentamento de interesses estruturais e resumido o projeto deste governo a crença no arcabouço fiscal. Em várias áreas, o governo prefere evitar confrontos com o Congresso e com setores econômicos, optando por uma postura de desmobilização, ausência de deputados(as) e senadores(as) da base do governo nas comissões, contenção e silenciamento diante de pautas polêmicas como a desmilitarização da segurança pública, regulação das big techs, PL do Licenciamento Ambiental etc.

Lula 3 é menos mobilizador e mais pragmático

Comparado aos governos anteriores, o Lula 3 também é menos mobilizador e muito pragmático. O vínculo com os movimentos sociais e sindicatos foi formalmente reativado, mas sem a mesma intensidade política ou mobilização de base. Há receio de um novo “junho de 2013”, e isso também tem paralisado toda e qualquer tentativa de convocar as ruas como aliadas da governabilidade. O Executivo gerencia, mas não disputa projeto de sociedade. E sem essa disputa, geralmente o governo é pautado, ao invés de pautar, e fica refém das narrativas dominantes do mercado financeiro, da mídia tradicional e das fake news nas redes sociais. Em relação a governos anteriores, como vemos também nas pesquisas de diferentes institutos, o governo Lula 3 tem uma popularidade muito menor que nos governos anteriores.

Em resumo, o governo Lula 3 tem um projeto, que é o do arcabouço fiscal. Além disso, o governo, em seus diferentes matizes, também tem apostado na reconstrução do que foi desmantelado, mas ainda sem a base popular necessária e sem força suficiente para propor e implementar o plano de governo eleito em 2022, pois opta por um modelo de governo institucionalista. É um governo que evita o abismo, mas não constrói um novo horizonte. Avança em medidas emergenciais e simbólicas, mas recua quando pressionado pelas elites econômicas que estruturam o Estado brasileiro e mantém o status quo.

Desafios

Seu desafio é sair do gerenciamento das desigualdades e injustiças e retomar as condições de propor aquilo que transforma e que traz justiça social e ambiental. E para isso, vai ter que deixar de priorizar apenas reuniões a portas fechadas “com o andar de cima” e os convescotes fora da agenda oficial para andar mais cotidianamente pelas comunidades do Brasil, fazer mais reuniões e encontros com as organizações e movimentos sociais, apostar mais na participação popular e desistir do pressuposto de que as pessoas devem aderir ao que já foi definido.

E há de se considerar que, diante dessa realidade, mesmo com suas contradições, Lula é ainda o favorito, caso concorra, para as eleições 2026, ainda mais por conta das recentes posições de Tarcísio ao apoiar Trump e ter uma reação vacilante e tardia em relação ao tarifaço, causando desconfiança junto a setores do agro e setores empresariais. Isto é, Lula tem “a faca e o queijo na mão” para se eleger a uma quarta vez junto ao Executivo Federal. Basta o governo fazer o “dever de casa”. Os setores progressistas e de esquerda têm o desafio das eleições legislativas na Câmara e no Senado, sob pena de uma derrota eleitoral acachapante (e quiçá política) para a direita e a extrema-direita, com uma piora das condições de “governabilidade” a partir de 2027.

IHU – Alguns avaliam que o governo Lula 3 não está conseguindo implementar as políticas que deseja nos campos social, econômico e político porque é refém de um sistema mais amplo, que inclui o setor financeiro e a oposição no Congresso. Até que ponto isso é verdadeiro e limitante? Qual tem sido a ação do governo e de sua base no Congresso para fazer frente à realidade social, econômica e política do país?

Sérgio Botton Barcellos – É verdade, apesar de ser relativa, a avaliação de que o governo Lula 3 enfrenta dificuldades para implementar as políticas que deseja por estar imerso em um sistema mais amplo de interdições, que envolve o setor financeiro, o mercado internacional e uma oposição majoritária no Congresso. O governo Lula 3 opera sob um cenário político e institucional muito diferente dos seus dois primeiros mandatos. Hoje, o Executivo não apenas lida com um Congresso mais conservador e refratário a pautas redistributivas, como também com um sistema financeiro fortalecido, uma mídia hegemônica hostil e um campo progressista desmobilizado.

Desde sua posse, Lula tem se pautado pela estabilidade econômica e para evitar rupturas com o capital. Isso se traduziu na nomeação de Fernando Haddad para o Ministério da Fazenda, com a missão de agradar ao mercado, no compromisso com o novo arcabouço fiscal (PLP 93/2023) e na defesa de superávits primários mesmo em meio a demandas sociais urgentes. O receio de desagradar os investidores e provocar reações negativas no câmbio, na inflação e nos juros tem conduzido o governo a adotar uma política econômica de “equilíbrio pragmático”, ainda muito aquém das promessas de justiça social e de reversão das desigualdades estruturais.

Limitações

No plano legislativo, o governo também se vê limitado. A correlação de forças no Congresso é amplamente desfavorável. A chamada “coalizão entre direita-extrema e direita” domina a Câmara e o Senado, e impõe suas pautas que muitas vezes são contrárias ao Plano de governo eleito em 2022. O Planalto tem recorrido a um modelo de governabilidade baseado em liberação de emendas e “remendas parlamentares”, concessão de cargos e ministérios a partidos fisiológicos, como União Brasil, PP e Republicanos. Só em 2024 o governo sancionou cerca de R$ 59,5 bilhões em emendas (dinheiro público), cifra recorde que evidencia a dependência do Executivo em relação à direita (centrão) para garantir votações mínimas.

Esse modelo tem garantido vitórias pontuais, como a aprovação da reforma tributária do consumo e o marco fiscal, mas também levou a derrotas significativas, como a aprovação do Marco Temporal das Terras Indígenas, o esvaziamento de políticas e desregulamentação da legislação ambiental. O que o governo disse ser sua prioridade na campanha eleitoral de 2022, como a taxação de grandes fortunas, a reforma do Imposto de Renda, a regulamentação das plataformas digitais e o fortalecimento da agricultura familiar, continuam morosas ou engavetadas.

Apesar dessas limitações, ao mesmo tempo setores do governo têm buscado fazer avançar políticas públicas via execução direta do Executivo. Exemplos disso incluem a retomada do Bolsa Família, a reestruturação do PAC com foco em habitação e infraestrutura, o Mais Médicos, o aumento real do salário mínimo e investimentos em educação básica. Também houve esforço na retomada da política externa, reposicionando o Brasil em organismos multilaterais e tentando construir pontes com o BRICS, com a América Latina e com a África, mesmo com as retaliações do governo americano de Trump. No entanto, essas ações ainda são insuficientes diante da realidade e da magnitude das demandas sociais e das expectativas populares. Falta compromisso efetivo com as necessidades populares, articulação com os movimentos sociais e capacidade de mobilizar a sociedade civil em defesa de uma agenda popular. E sobra arcabouço fiscal.

Governo gestado pela tecnoburocracia pequeno-burguesa

Frente a esse quadro todo a tarefa de governar já seria difícil por si só, mas fica mais difícil ainda quando o governo tem sido gestado, em boa parte, pois há exceções (ainda bem), por uma tecnoburocracia pequeno-burguesa que acha que governa por WhatsApp, Excel, Microsoft Teams e Sistema Eletrônico de Informações (SEI). Para a ocupação de cargos o principal critério, muitas vezes, é o compadrio e o clientelismo, não necessariamente o preparo político e técnico e muito menos o comprometimento político e capacidade de formulação política. Falta a quem ocupa os cargos em comissão do governo (não me refiro ao concursados, pois é outra conversa) e fazem a gestão: enraizamento popular; clareza ideológica; deixar de reproduzir práticas elitistas e assediosas; e o principal, um projeto político de base popular.

Em síntese, é verdade que o sistema impõe limites reais ao governo, mas também é verdade que o governo tem se acomodado dentro desses limites e não vem fazendo as entregas prometidas no Plano de governo eleito em 2022. Romper com isso exigiria mais do que cálculo institucional e “fechar as contas” para agradar o mercado financeiro, exigiria mobilização, conflito político, base social ativa e disposição para enfrentar questões estruturais. Se continuar assim, o governo Lula 3 terminará sendo reconhecido na história, se reelegendo ou não, como o governo eleito com apelo popular, mas que foi o governo do “arcabouço fiscal”.

IHU – Nesse quadro que apresenta, como avalia a sociedade brasileira hoje, depois de ter passado por uma década de governos progressistas, gestões de direita e extrema-direita e, novamente, um governo progressista? A sociedade está cansada, conformada? Por que não se veem amplas manifestações sociais no país, para além de manifestações reduzidas ao apoio político deste ou daquele candidato? O que tudo isso indica sobre o atual momento social do país?

Sérgio Botton Barcellos – Primeira coisa: a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), divulgada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), em 2025, revela que 77,6% das famílias brasileiras estão endividadas, e 29,1% estão com dívidas em atraso. O endividamento atinge todas as faixas de renda, mas é mais elevado entre as famílias de baixa renda. Dentre as principais causas estão o aumento da inflação e dos juros, e a aposta em bets, dificultando o controle das despesas e o pagamento das dívidas. A queda na renda real de algumas famílias dificulta a quitação dos compromissos financeiros. E todas são questões vinculadas em maior e menor grau a política econômica no governo Lula 3 também. Ou seja, não é conformação, é sobre ocupar a maior parte do seu tempo para sobreviver somado ao fato da exaustão diante de uma escala de trabalho 6x1. Com um dia a dia desses, o que sobraria de disposição para se mobilizar politicamente para ir à rua, caso opte por isso?

E não nos enganemos, isso não é obra do acaso. Além da exploração intensiva do trabalho para obtenção de lucro por parte da elite econômica, é uma tática de controle social que compõem uma estratégia maior de guerra de baixa intensidade na manutenção do atual estágio do capitalismo. Há também o receio da repressão, o medo da criminalização e a violência política, que influenciam esse retraimento.

Sociedade cansada

Depois de mais de uma década de governos progressistas, do avanço de pautas redistributivas e de inclusão social, o país vivenciou um ciclo de rupturas e momentos marcantes: o golpe parlamentar de 2016, os governos Temer e Bolsonaro, a pandemia, o ato golpista de 08 de janeiro de 2023, o aprofundamento das desigualdades, a expansão do crime organizado, a criminalização dos movimentos sociais e o enraizamento de uma cultura política autoritária e individualista. A volta de um governo progressista em 2023 gerou expectativas, mas também uma frustração precoce entre muitos setores que não veem mudanças concretas em seu cotidiano. Há políticas públicas sendo retomadas, mas sem mobilização social e ampliação de direitos em torno delas.

Aparentemente, a sociedade também está cansada de promessas não cumpridas e está desconfiada diante de crises sucessivas, insegurança econômica e disputas morais. Isso se deve, em parte, ao esvaziamento dos espaços de participação popular, à fragmentação das lutas sociais, ao enfraquecimento dos sindicatos e partidos como mediadores e à centralidade das redes sociais na sensação de que passar o dedo na tela, turbinada pela dopamina, por si só, gera realidade e a vida em sociedade.

Somado a isso, desde 2023, o governo Lula 3 evita estimular à mobilização popular autônoma e vê manifestações com receio, especialmente por lembrar o ciclo iniciado em junho de 2013. Aquele ciclo foi lido por parte dos progressistas como o estopim de sua derrocada e da ascensão da extrema-direita. Desde então, a lógica predominante tem sido a de evitar qualquer agitação que possa escapar ao controle institucional. Isso inclui um certo distanciamento em relação a pautas populares mais incisivas e uma política de contenção de conflitos. Exemplo disso é o recente movimento de apaziguamento com Hugo Motta por parte do governo.

Reconfiguração das formas de ação coletiva

Isto é, a ausência de grandes mobilizações populares de massa perpassa por esse conjunto de aspectos. O que se vive hoje é um momento de reconfiguração das formas de ação coletiva. A luta segue presente em territórios, nas periferias, em práticas culturais e em redes de solidariedade, mas sem uma grande articulação em torno de um projeto comum. Setores da esquerda não têm conseguido dar tração ampla aos seus projetos e têm se dedicado mais a criticar o atual governo. Ou seja, essa energia poderia ser usada também para pautar a sociedade com um projeto, do que ser pautada pelo próprio governo, concentrando maior parte da sua força denunciando as suas contradições. Ao mesmo tempo, o que se vê é o campo progressista cada vez mais refém de uma racionalidade gerencial pouco eficiente e de aspiração neoliberal, bem como a extrema-direita investindo em fake news por meio de emoções políticas, no ressentimento de desigualdade social e na guerra cultural.

No entanto, mesmo assim, deve-se considerar que ocorre anualmente o Abril Vermelho com as mobilizações do MST por reforma agrária e as manifestações recentes na Avenida Paulista, convocadas por forças progressistas e de esquerda. Também há manifestações em diferentes estados e municípios por mais segurança, contra o aumento do transporte público, greves etc. Só que não recebem a divulgação na mesma proporção que as manifestações chamadas pelo bolsonarismo e a direita.

Ou seja, compreendo que a sociedade está cansada (de tanto ser explorada), mas não indiferente. Está coletivamente desmobilizada, mas não despolitizada. O desafio para a construção de um projeto popular não é apenas convocar protestos, mas formar um espaço coletivo de criação compartilhada de futuro. Para se mobilizar é preciso ter vida digna, escuta, diálogo, organização de base e determinação para construir o que ainda parece impossível. Acredito que as forças de esquerda vão ter que construir isso, pois isso, atualmente, não virá de um governo progressista lulopetista. É tipo aquele ditado: “não se pode colher laranjas em um coqueiro”.

IHU – Parece que novamente chegamos a um ponto em que se reconhece a falta de alternativas políticas para as próximas eleições presidenciais. O que vislumbra para o Brasil em termos políticos?

Sérgio Botton Barcellos – O Brasil entra na segunda metade da década de 2020 com alternativas concretas, mas sem novidades em relação à alternativas que estejam comprometidas cum um projeto de país soberano e com justiça social e ambiental para o conjunto da sociedade. As alternativas concretas nos últimos ciclos eleitorais, especialmente entre lulismo e bolsonarismo, seguem estruturando o debate público, mas com sinais de algum grau de fadiga de ambos. Ao mesmo tempo, nomes alternativos à esquerda não conseguem se consolidar com densidade popular nem apresentar um projeto nacional popular e soberano viável.

No campo da direita, o nome de Tarcísio de Freitas estava ganhando projeção como uma candidatura tecnocrática, conservadora e moderada no estilo, uma espécie de “bolsonarismo sem Bolsonaro”, capaz de unir o agronegócio, o empresariado paulista e setores da elite econômica que desejam estabilidade com manutenção dos privilégios. Mas as suas posições pró-Trump deram uma atrapalhada, mesmo que momentânea, nisso. Outros nomes como Romeu Zema e Ronaldo Caiado circulam, mas sem força nacional. A aposta do campo liberal-conservador é encontrar uma figura com o perfil do “bom gestor”, que agrade ao mercado, mantenha as pautas morais conservadoras e não ameace o status quo econômico.

Mas, não se pode ficar desatento, o bolsonarismo e o que está se derivando disso, embora fora da presidência, permanece como força cultural e política, mesmo com a proeminente condenação de Bolsonaro. A extrema-direita está no Congresso, nas igrejas, nas forças de segurança e nas redes sociais, pautando o debate público e tem suas lideranças. O risco, portanto, pode ser o enraizamento gradual de um autoritarismo cotidiano, técnico e moralista de aspiração neofascista sendo propalado como a solução para problemas sociais complexos no Brasil.

Reconfiguração mundial

Não há dúvidas que há também projetos de austeridade e autocracia em gestação, pois o mundo está em reconfiguração com o conflito protagonizado entre EUA x China. Mais recentemente, sem falar do colonialismo, há de se lembrar que em momentos de crise do capitalismo as soluções (botões de pânico) acionados foram o fascismo e o nazismo na primeira metade do século XX e, na segunda metade, a imposição de ditaduras em diversos países no mundo, inclusive no Brasil. E faz-se necessário mobilização social para combater a onda neofascista hoje no mundo, não apenas em volta de disputar eleições e hegemonia institucional.

Lulismo

O lulismo ainda é hegemônico entre progressistas e setores de esquerda que vão a reboque, mas com menos capacidade de mobilização social do que em ciclos anteriores. Lula permanece como a maior liderança popular do campo progressista, sendo favorito ainda para as eleições em 2026. Afinal, é o nome mais expressivo e viável eleitoralmente diante dos demais e somado ao fato dele desejar ser o único presidente eleito por quatro vezes. Lideranças do progressismo institucional, por exemplo, como Fernando Haddad, Camilo Santana e Rui Costa provavelmente terão que esperar e ainda não empolgam as bases populares em nível nacional.

O ataque dos EUA por meio do tarifaço de Trump, além de evocar uma reação nacionalista, trouxe para o governo Lula 3 uma chance de ter uma pauta que unifique o discurso e ganhe tração eleitoral em relação ao bolsonarismo. Oficialmente, por enquanto, a reação do Brasil ao tarifaço anunciado por Donald Trump foi a criação de um comitê interministerial, liderado por Geraldo Alckmin, para atuar na articulação diplomática, diálogo com o setor empresarial e ações junto à Organização Mundial do Comércio (OMC), sinalizando que o país não aceitará passivamente medidas protecionistas unilaterais. Mas, claro, não há um debate e participação popular sobre o tarifaço e seus efeitos, além da chamada para adesão aos atos do último dia 10 de julho, organizados por Guilherme Boulos (que está cotado como ministro da Secretaria Geral) e organizações vinculadas ao PT.

Enfim, na realidade que observo e onde tento atuar, estamos diante de uma crise de projeto de Brasil como país, que é diferente de grupos econômicos e financeiros nacionais e internacionais terem seus projetos para o Brasil. O que se vislumbra, portanto, é um cenário de disputa entre setores interessados em gestar desigualdades, injustiças e ter mais poder econômico e político, sem um projeto de transformação soberano, com justiça social e ambiental.

Ainda assim, o jogo está sendo jogado. A crise climática, o agravamento das desigualdades sociais, a precarização do trabalho, o crime organizado, o neofascismo e a disputa por recursos naturais vão continuar pressionando o campo político. A depender da capacidade de organização dos movimentos populares e da esquerda, novas alternativas de lideranças populares poderão surgir.

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