Guerra “imaginária”: as tecnologias militares no imaginário global. Artigo de Mônica Lima

Vídeos: Artlist/Pixabay/Olivier Bourgeois/Canva | Edição: Mônica Lima

17 Julho 2025

O desenvolvimento tecnológico tem alterado significativamente as formas de se viver, perceber e representar o mundo. Dentre os campos mais impactados por essa transformação encontra-se o setor militar, onde inovações em inteligência artificial, sistemas automatizados e robótica vêm reconfigurando não apenas as estratégias de guerra, mas também o próprio imaginário bélico.

O artigo é de Mônica Lima, graduanda em Jornalismo pela Unisinos e membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

O artigo a seguir propõe uma reflexão referente ao Ted Talk “Robôs militares e o futuro da guerra” de 2009, no qual o cientista político americano PW Singer disserta sobre as implicações da crescente utilização de tecnologias e inteligências artificiais (IAs) no campo militar. Ele discute como os avanços em robótica e IA estão redefinindo o conceito e a imagem tradicional da guerra, enfatizando questões éticas, legais e sociais que distanciam-se da normalidade.

Eis o artigo.

Diante do cenário atual, observa-se que as inovações tecnológicas têm impactado significativamente diversas esferas da sociedade, incluindo o setor militar. Os avanços tecnológicos nessa área evidenciam-se por meio do desenvolvimento de drones, veículos aéreos não tripulados (VANTs) e, mais recentemente, por sistemas robóticos automatizados baseados em inteligência artificial (IA).

O avanço das tecnologias bélicas transformou a guerra no mundo contemporâneo.

Antes marcada por conflitos de longa duração e ataques previsíveis, a guerra passou a assumir novas configurações, com investidas rápidas e, na maioria das vezes, sem aviso prévio, ocorrendo em espaços distantes ou não físicos. Um exemplo dessa transformação pode ser observado no conflito travado entre a Rússia e a Ucrânia, em que o uso de drones tem se mostrado frequente. Esses dispositivos, operando em altitudes elevadas e dotados de grande mobilidade, frequentemente não são detectados, tornando-se instrumentos eficazes de ataque à distância e revelando uma nova lógica de combate, menos territorial.

Ademais, essas tecnologias ultrapassaram fronteiras e barreiras físicas, permitindo que os confrontos ocorram em qualquer lugar, sem a necessidade de presença física no campo de batalha. Essas tecnologias militares contemporâneas têm contribuído para a dissolução do conceito tradicional de espaço-tempo nas guerras, uma vez que estas passam a ser travadas em uma rede global, na qual as decisões militares podem ser tomadas em tempo real, independente da localização.

Em sua palestra no TED Talk, P. W. Singer observa: “Não há verdadeiras questões sociais, éticas ou morais quando se trata de robôs. A menos que a máquina mate pessoas erradas repetidas vezes. Aí, então, é só uma questão de mandar o produto de volta” (SINGER, 2009).

Na realidade fluida, conforme descrita por Arantes (2007, p. 505), dilui-se a segurança quanto ao que é certo ou errado no contexto da guerra. A autonomia das máquinas de combate, aliada ao controle remoto sobre elas, estabelece um cenário em que a distinção entre ação humana e ação automatizada torna-se cada vez menos nítida, enfraquecendo os limites entre o ético e o não ético. As certezas relativas ao controle da guerra e a identificação do agressor tornam-se difusas à medida que as máquinas assumem funções anteriormente desempenhadas por seres humanos.

Diante do exposto, os robôs são mediados através de controles remotos, ou seja, os 'soldados' experienciam a guerra por intermédio de telas. Tal mediação contribui para uma maior desumanização do conflito, pois é quase irreal, como se eles estivessem jogando um videogame e não tirando a vida de milhares de pessoas.

O uso massivo de robôs e drones armados distancia a experiência da guerra daquela vivenciada pelos soldados tradicionais, reforçando uma dinâmica em que o campo de batalha não apenas é mediado, mas também estetizado pelas telas. Esse cenário tende a insensibilizar os operadores, transformando o conflito em uma mera representação visual.

A frase dita por Singer: “Essa capacidade de ver mais, mas sentir menos cria um empecilho na relação entre o público e a guerra” (SINGER, 2009), conecta-se diretamente com o conceito de “banalização do mal”, estruturado por Hannah Arendt (1963) em sua obra Eichmann em Jerusalém. Nela, Arendt argumenta que o mal pode ser praticado por indivíduos comuns, sem traços violentos ou de psicopatia, que agem obedecendo às regras, sem refletir criticamente sobre suas ações.

Ao eliminar a presença humana do campo de batalha, a distância emocional e física entre o agente e a vítima intensifica a dessensibilização em relação à violência. Nesse contexto, o mal torna-se comum: automatizado e eficiente, desfazendo a responsabilidade moral em uma cadeia de comando cada vez mais desumanizada.

Além dos soldados, a própria sociedade, que já vivenciava a guerra por meio das telas, passa a ser exposta às imagens captadas por drones e transmitidas pelas mídias, o que gera uma distância ainda maior entre o público e o conflito - quase como se a guerra se transformasse em um espetáculo.

Assim, as imagens técnicas - produzidas por aparelhos, como as concebidas por drones e robôs - podem ser interpretadas como janelas da realidade. O telespectador acredita estar vendo a verdade, sem considerar que essas imagens são mediadas pelas próprias tecnologias que as produzem, pelos operadores e, posteriormente, pela mídia. Os indivíduos acabam aceitando-as como verdades universais, embora estejam fora de um contexto geral do conflito, influenciadas também pelas ideologias mascaradas dos meios de comunicação aos quais são expostas.

Nesse contexto, o uso de robôs transmite a imagem de um “protetor humanitário”, uma vez que os soldados não precisam se expor ao risco de morte. Contudo, essa percepção maquia a violência e reforça um imaginário de uma “guerra limpa”. Entretanto, é apenas um imaginal, dado que as máquinas - principalmente as automatizadas por inteligência artificial - não distinguem um ‘soldado inimigo’ de uma criança. Elas atacam o que estiver em sua mira - qualquer indivíduo pode ser o alvo. Ainda que em conflitos bélicos a morte de inocentes não seja incomum, o risco torna-se ainda maior diante da eficiência dessas máquinas. Como alerta Singer (2009): “quando você remove o fator humano, a decisão de matar pode se tornar mais fácil”.

A configuração de perceber a guerra por meio das telas interfere na interpretação do público e transforma as formas pelas quais os conflitos são apresentados.

As imagens expostas ao público, geralmente por meio de notícias, constroem uma percepção de guerra que parece menos destrutiva ou ‘mais controlada’. Essa forma de “publicidade” influencia diretamente as opiniões e percepções dos indivíduos em relação às forças militares na era tecnológica, buscando criar um consenso social sobre o futuro dos conflitos armados, uma vez que essas representações são consumidas como narrativas óticas.

As guerras mediadas pela automação aproximam-se, nesse sentido, da estetização presente em filmes e videogames, o que pode contribuir para uma maior naturalização da violência dessas máquinas.

Na ficção, os robôs estão presentes em ambos os lados da guerra; contudo, aqueles que estão “do lado bom da força” são retratados como heróis, criando uma “semelhança” com os seres humanos. No filme Star Wars, do cineasta americano George Lucas, por exemplo, exércitos inteiros de robôs automatizados são criados para lutarem em conflitos intergalácticos. Os “robôs do bem” tornam-se aliados dos ‘soldados’ humanos, o que alimenta a construção de uma imagem positiva dessas máquinas. Ainda que também existam os “robôs do mal”, o conjunto dessas representações acaba moldando as percepções do público perante tais tecnologias. No final, as tecnologias expostas na ficção acabam sendo normalizadas e, consequentemente, sua aceitação no mundo real torna-se mais natural.

Desse modo, o uso de robôs e inteligência artificial na linha de frente representa inovações sem precedentes históricos. Não há um referencial anterior no qual possa basear a compreensão de como esses sistemas autônomos afetarão, efetivamente, as futuras guerras e a segurança global.

Atualmente, com os conflitos entre Rússia-Ucrânia e entre Israel-Palestina, é possível perceber o quanto esses sistemas tornam os conflitos bélicos mais desumanizantes e violentos. No Ted Talk, Singer (2009) alerta para a necessidade de uma nova regulação e ética em torno do uso das tecnologias militares, pois estamos adentrando um território desconhecido e imprevisível, sem precedentes históricos claros.

Conforme expõe Flusser (1985, p. 7-8), pode-se compreender que essas tecnologias militares funcionam como uma extensão dos sentidos humanos. Quando operadores utilizam drones para observar o terreno antes do ataque, estão, de certa forma, expandindo sua percepção visual, as imagens captadas por esses dispositivos deixam de ser registros passivos e passam a ser informações ativas que alimentam diretamente as decisões militares.

Segundo Sibilia (2002, p. 13), está ocorrendo uma transformação na relação entre o corpo humano e a tecnologia. O corpo humano, em sua antiga configuração biológica, está tornando-se obsoleto. No contexto da palestra de Singer (2009), observa-se que o campo de batalha moderno não necessita mais a presença de seres humanos, de forma que os soldados estão sendo substituídos por máquinas cibernéticas mais eficientes.

O upgrade constante mencionado por Sibilia (2002, p. 13) manifesta-se também nos sistemas militares, que vêm aprimorando seus métodos operacionais com o objetivo de manter a eficiência tecnológica em um cenário global cada vez mais dependente das inovações tecnológicas.

A busca incessante por melhorias e pela constante atualização das tecnologias militares está levando o mundo a uma nova corrida armamentista – desta vez digital –, no qual o corpo humano se torna cada vez mais substituível.

A introdução de novas tecnologias também revitalizou formas de comunicação e controle. O uso das redes sociais, ciberataques e até a manipulação de dados se tornam tão ou mais importantes quanto as armas físicas. A informação, portanto, volta a ser uma arma crucial, mas agora com um alcance muito maior, impulsionado por essas tecnologias. Logo, a obsolescência do corpo humano afeta todo o contexto do conflito, dado que afeta os processos das guerras.

A guerra está sendo reformulada e, com ela, reconfiguram-se modos de exercer poder, de preservar (ou violar) direitos e de definir o inimigo.

Assim, o avanço das tecnologias militares inaugura uma nova era dos conflitos armados, marcada não apenas por inovações estratégicas, mas, sobretudo, por implicações éticas e sociais. As tecnologias evoluem de forma cada vez mais rápida e só refletimos sobre suas consequências quando já estamos vivenciando-as.

Portanto, diante da crescente automatização dos conflitos, a sociedade não deve somente olhar pelas telas, mas também refletir criticamente sobre o que essas imagens escondem: a desumanização silenciosa da guerra.

Referências

ARANTES, Priscila. Estéticas tecnológicas: paradigmas contemporâneos. Anpap, 2007.

BRAGA, Adriana. McLuhan entre conceitos e aforismos. Alceu, 2019.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Editora Hucitec, 1985.

FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.

MATEUS, Samuel. O imaginal público: prolegómenos a uma abordagem comunicacional do imaginário. Dossiê, 2013.

RAHDE, Maria Beatriz Furtado. Considerações sobre uma estética contemporânea. E-Compós, 2007.

SANTAELLA, Lucia. Pós-humano, por quê? Revista USP, 2007.

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