10 Junho 2025
Após a divulgação do Relatório Anual do Desmatamento no Brasil 2024 pelo MapBiomas, que apontou uma queda de 42% no desmatamento do bioma Pampa, o governo do Rio Grande do Sul celebrou os dados como reflexo de suas políticas ambientais. A Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) destacou que o Pampa, bioma exclusivo do estado, teve a menor área de desmatamento entre todos os biomas brasileiros, representando apenas 0,1% do total.
A reportagem é de César Fraga, publicada por ExtraClasse, 06-06-2025.
A Coalizão pelo Pampa, formada por organizações da sociedade civil, pesquisadores e comunidades tradicionais, critica a interpretação otimista do governo. O grupo ressalta que o relatório não representa um atestado de sucesso das políticas estaduais e alerta que, entre 2012 e 2023, o estado perdeu cerca de 140 mil hectares de vegetação nativa campestre por ano — principalmente devido à conversão de pampa nativo em área destinada monoculturas como a soja. (veja nota no final desta matéria)
Reportagem do Extra Classe, publicada em dezembro de 2024 já denunciava que a porção brasileira do Pampa, localizada ao sul do Rio Grande do Sul, perdeu 28% da sua vegetação nativa entre 1985 e 2023, de acordo com os dados da Coleção 4 do MapBiomas Pampa Trinacional, que monitora o uso e a cobertura da terra na região Pampeana do Brasil, Argentina e Uruguai. Trata-se de uma espécie de raio-x do que está acontecendo com a natureza no sul do país.
Foi a maior taxa de perda de biodiversidade na comparação entre os três países nesse período. Proporcionalmente ao seu tamanho, o Pampa brasileiro também foi o que mais perdeu vegetação nativa entre todos os biomas brasileiros desde 1985. A conversão foi impulsionada principalmente pela expansão do cultivo de soja e também pelo crescimento da silvicultura.
Em números absolutos, o Pampa do Brasil perdeu 3,3 milhões de hectares de vegetação nativa, o equivalente a 66 vezes a área do município de Porto Alegre.
A vegetação mais afetada foram os campos, a vegetação típica do bioma, formada por centenas de espécies de gramíneas e ervas – também denominada de vegetação campestre. A conversão dos campos para usos antrópicos, quando em excesso, causa diversos prejuízos ambientais como a extinção local de espécies e o comprometimento de de importantes serviços ecossistêmicos, como o controle da erosão e a regulação do ciclo da água.
De acordo com Eduardo Velez, pesquisador do MapBiomas, por ocasião da divulgação do relatório, além do avanço da soja, destaca-se o crescimento exponencial das áreas de silvicultura no Brasil, que aumentaram 1600% em 39 anos, passando de 44 mil hectares em 1985 para 773 mil hectares em 2023. “Nos últimos dez anos, a perda da vegetação campestre no Brasil tem inclusive aumentado, configurando um cenário ambiental e uma tendência para os próximos anos muito preocupante”, diz.
Apesar de todos os anos os levantamentos mostrarem o avanço da monocultura de soja e das lavouras de árvores exóticas estas informações geradas pelos cientistas não se transformam em políticas efetivas para mitigar o problema, lamenta Velez.
“Todos os anos a gente expõe os dados. Há repercussão na imprensa. Mas os atores públicos e privados que podem fazer alguma coisa, infelizmente não incorpora essa temática na busca de soluções. Faltam políticas públicas dos âmbitos federal e estadual”, lamenta. Um dos principais empecilhos é que grande parte da área do Pampa é privada. E, se não há políticas de fomento para que as atividades sustentáveis sejam mantidas, caso da pecuária de extensão e turismo ecológico, os proprietários das terras acabam cedendo ás leis de mercado e optando por atividades de maior rentabilidade, mesmo que não sustentáveis.
De um lado, a secretária Marjorie Kauffmann (em nota) credita essa redução a ações como a inclusão do Pampa no novo Código Estadual do Meio Ambiente, a migração do Cadastro Ambiental Rural para a plataforma federal e um acordo judicial que buscou padronizar as tipologias do bioma. No entanto, o próprio relatório adverte que os sistemas de monitoramento ainda têm limitações em detectar a supressão da vegetação campestre, predominante no Pampa, o que pode distorcer a leitura dos dados.
Já do ponto de vista das 26 entidades que compõem a Coalizão, a queda nos alertas de desmatamento não pode ser confundida com preservação efetiva, já que os dados disponíveis priorizam a detecção de perda de áreas florestais, enquanto a vegetação de campo segue desprotegida. A entidade aponta ainda a fragilização das normas ambientais, especialmente com a descaracterização do Código Estadual do Meio Ambiente, a negligência na aplicação da Lei da Vegetação Nativa e o enfraquecimento da fiscalização como fatores que comprometem seriamente a conservação do bioma.
A Coalizão destaca ainda que o MapBiomas informa em seu relatório a perda de cerca de 140 mil hectares de vegetação nativa campestre a cada ano no RS, entre 2012 e 2023. “Em grande parte pela conversão em monoculturas agrícolas, sobretudo da soja, e não há nenhuma evidência de que isso tenha sido alterado significativamente em 2024.
Para o movimento, o cenário no estado aponta para a direção oposta, a exemplo da “descaracterização do Código Estadual de Meio Ambiente do RS”, promovida pelo governo de Eduardo Leite (ex-PSDB, hoje no PSD).
“A negligência na aplicação da Lei da Vegetação Nativa às formações campestres e as recorrentes investidas de setores econômicos visando fragilizar as normas e o licenciamento ambientais, bem como a fragilidade dos instrumentos de fiscalização e controle, têm aumentado a vulnerabilidade do campo nativo no estado”, diz a nota.
De acordo com Pablo Pereira, da Associação dos Servidores da SEMA (Assema/RS) e da Coalizão do Pampa, ao não mencionar que os dados de monitoramento apresentados para o Bioma Pampa se referiam apenas a ambientais florestais, que são uma pequena parte de sua área, e ocultando informações de alertas da imensa supressão da vegetação campestre que predomina no Pampa, o Governo do Estado transmitiu à sociedade a ideia de que o Bioma Pampa estaria em processo de recuperação ambiental, quando, na verdade, segue enfrentando riscos reais e persistentes de degradação, especialmente nas áreas de campo nativo que não são ainda monitoradas com precisão.
Um outro deste debate ponto diz respeito a falta de políticas públicas para compensar a debandada dos grandes investidores do cultivo da soja como commodity, que estão deixando de arrendar grandes quantidades de terra na região do Pampa e vão embora do estado com dinheiro e maquinário, abandonando proprietários a própria sorte. O motivo são os prejuízos e imprevisibilidade por conta das enchentes e estiagens, agravadas com crise climática. Que políticas federais e estaduais poderiam viabilizar o e ajudar os pequenos proprietários do pampa em termos de preservação e economicamente?
Pablo Pereira lembra que a Carta Aberta à Sociedade Gaúcha pela Proteção do Pampa, documento produzido pela Coalizão pelo Pampa, traz recomendações que devem ser consideradas para a implementação de políticas públicas para apoiar pequenos proprietários em termos de preservação e economicamente, principalmente quanto à valorização das cadeias produtivas sustentáveis do Pampa e promoção do turismo sustentável como ferramenta de valorização dos territórios tradicionais. Além disso, incentivos econômicos para a conservação dos campos nativos devem ser buscados, como o PSA – Pagamento por Serviços Ambientais.
“Eu entendo que as políticas que podem favorecer o pequeno e médio proprietário do Pampa são justamente as de fortalecimento da cadeia pecuária, algo que nunca foi feito pelos governos estaduais. Nunca se priorizou trabalhar a cadeia produtiva de carne, que é a grande vocação do Pampa, como uma política forte. Só que foi o contrário. Há muito muita política para soja e e não há para pecuária. Necessita a valorização também dos pequenos produtores dos pequenos pecuaristas em relação até mesmo a um papel que eles podem fazer e podem ser pagos para fazer que é a manutenção dos serviços ecossistema nas suas áreas e com isso então pode-se trabalhar também com sistemas de PSA (pagamentos por serviços ambientais)”, defende Ana Paula Rovedder, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Recuperação de Áreas Degradadas – Neprade/UFSM, da Rede Sul de Restauração Ecológica e Coalizão do Pampa.
Segundo ela, existe a necessidade de um pensamento em políticas estruturantes estaduais e federais. “Aí, entra a parte de certificação de origem na indústria carne com valorização de um terroir do Pampa. Entra também a parte de linhas de financiamento para conservação do campo, para restauração de pastagem. Mas realmente isso nunca teve. O caminho foi inverso. A pecuária foi sendo vista como cada vez mais como um indicador de atraso e a soja como progresso.
Sobre a polêmica entre Coalizão e Sema, Ana Paula afirma que a principal discrepância está no governo utilizar um dado de ecossistemas florestais para alegar uma melhoria da conservação do Pampa. Sendo que o Pampa é um bioma predominantemente campestre, e nesse sentido, as formações não estão contempladas neste dado do MapBiomas, pelo contrário, as formações campestres continuam com taxas altas e crescentes de degradação.
“Governo do RS ignora a perda anual de 140 mil hectares de vegetação campestre para comemorar a ilusão do Pampa conservado (Coalizão pelo Pampa)
O Relatório Anual do Desmatamento no Brasil 2024, coordenado pelo Projeto MapBiomas e divulgado em maio desse ano, aponta que, em 2024, o desmatamento no Brasil diminuiu em mais de 30% em comparação com 2023 e que, pela primeira vez, todos os biomas apresentaram redução na área desmatada, com exceção da Mata Atlântica.
O relatório chama a atenção, já nas suas primeiras páginas, que “As reduções observadas em biomas com ecossistemas campestres, principalmente o Pampa (redução de 42%), são atribuídas às áreas de florestas, pois sistemas de detecção de supressão de campos nativos ainda precisam ser aprimorados e integrados ao MapBiomas Alerta”. Tal advertência tem uma razão muito simples: o Bioma Pampa, restrito a uma área que corresponde a 69% do território do Rio Grande do Sul, possui vegetação predominantemente de campo, atualmente com 32% de cobertura campestre e apenas 12% de cobertura florestal.
Portanto, o que o MapBiomas nos avisa, em última análise, é que os dados precisam ser interpretados com a devida cautela e que a queda nos alertas de desmatamento que seu sistema consegue detectar no Pampa não pode ser confundida com evidência de diminuição nas taxas de perda da vegetação campestre que compõe a maior parte do Bioma.
Outro conjunto de dados fornecido pelo próprio MapBiomas, os mapas anuais de uso e cobertura do solo, mostram que, no RS, cerca de 140 mil hectares de vegetação nativa campestre foram perdidos a cada ano, entre 2012 e 2023, em grande parte pela conversão em monoculturas agrícolas, sobretudo da soja, e não há nenhuma evidência de que isso tenha sido alterado significativamente em 2024. Muito pelo contrário: a negligência na aplicação da Lei da Vegetação Nativa às formações campestres e as recorrentes investidas de setores econômicos visando fragilizar as normas e o licenciamento ambientais, bem como a fragilidade dos instrumentos de fiscalização e controle, têm aumentado a vulnerabilidade do campo nativo no estado. A descaracterização do Código Estadual de Meio Ambiente do RS, promovida pelo atual Governador de forma açodada e sem debate com a sociedade, é um exemplo claro disso.
Tal situação tem levado a uma rápida e notória degradação das paisagens naturais do Pampa, com perda da biodiversidade e do potencial de desenvolvimento sustentável da região, comprometendo os serviços ambientais proporcionados pela vegetação campestre, inclusive na sua função de atenuar as mudanças climáticas e os desastres meteorológicos.
Portanto, devagar com o andor: ao contrário do que foi alardeado na imprensa e demais mídias, os números divulgados pelo MapBiomas estão longe de atestar o sucesso das políticas públicas do Governo gaúcho, ou de demonstrar valorização de boas práticas ou de diálogo democrático e relação transparente com diferentes setores da sociedade.
Organizações não governamentais, redes de pesquisadores, povos e comunidades tradicionais, servidores públicos de órgãos ambientais, entre outros setores da sociedade preocupados com a conservação do Pampa, seguem reivindicando:
(*) Coalizão pelo Pampa é formada pelas seguintes entidades: