30 Mai 2025
Relatório lançado nesta quarta-feira (28) mostra que populações vulneráveis sofreram impactos desproporcionais do desastre.
A informação é de Bettina Behm, publicada por Sul21, 29-05-2025.
Enquanto diversos municípios do Rio Grande do Sul registravam alagamentos e deslizamentos de terra devido à chuva desta quarta-feira (28), a Anistia Internacional lançava o relatório de um ano após as enchentes históricas no estado. O documento traz uma mensagem clara: muito pouco foi feito até agora, e as populações vulneráveis continuam enfrentando as consequências daquele desastre climático.
O relatório mostra que a reconstrução do estado se limitou, até o momento, a restaurar condições anteriores, sem promover o aumento da resiliência das comunidades. Embora o governo tenha anunciado medidas como ampliação de rede de estações hidrometeorológicas e mapeamentos topográficos, “quase nada avançou”. Fora a instalação de um radar meteorológico em Porto Alegre, ressalta o documento, os projetos seguem paralisados.
Do Fundo Financeiro do Plano Rio Grande (FUNRIGS), foram investidos R$ 346 milhões em programas de apoio empresarial/comercial e R$ 288 milhões em programas sociais de assistência financeira; R$ 518 milhões em políticas habitacionais; R$1,3 bilhão em dragagem e desassoreamento de rios; R$ 328 milhões repassados aos fundos da Defesa Civil.
Enquanto isso, as principais políticas de mitigação, prevenção e monitoramento do clima ainda não possuem recursos específicos ou cronograma de implementação.
Diretora executiva da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck afirmou que a organização tentou entregar o relatório, com recomendações, diretamente ao governador Eduardo Leite (PSD). “Mas parece que a frase dele é: há outras agendas”, disse, citando a resposta do líder do executivo quando questionado sobre os alertas climáticos.
O material foi entregue à equipe do governador. “São recomendações para reparar o que precisa ser reparado, consertar o que precisa ser consertado, e garantir que isso não se repita. Não é possível fazer mais do mesmo, é preciso fazer diferente, porque a mudança climática veio para ficar”, ressaltou Jurema.
Maurício Paixão, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS, explicou que a má gestão territorial e dos recursos hídricos conduz ao aumento de desastres.
“No final de abril [de 2024] já tinha gente morrendo no Vale do Taquari. Em Porto Alegre, tivemos dias para nos preparar. A gente teve tempo de planejar as coisas, ainda que fosse planejar a resposta, e não a prevenção”, argumentou. “Não adianta negar, jogar a culpa nas mudanças climáticas. A má gestão dos recursos hídricos vem nos trazendo para essa situação”.
Para Lucas Konzen, professor de direito da UFRGS, a organização do processo de urbanização poderia evitar consequências desastrosas, como as vivenciadas no ano passado, através de normas.
“Precisamos pensar nos nossos sistema de proteção como algo que depende de estruturas como o muro da Mauá, mas também de normas. Esse conjunto de normas, por um tempo, moldou o desenvolvimento urbano da cidade, permeado por uma norma quase ideológica de que ninguém deveria ocupar áreas sujeitas a inundações. Essas normas, aos poucos, foram sendo esvaziadas”, pontuou.
Como exemplo, Lucas citou o projeto de revitalização do Cais Mauá, pautado na ideia de que era possível construir edificações do lado de lá do muro. “Uma cidade que produz esse tipo de projeto perdeu totalmente a consciência em relação às normas básicas que deveriam guiar o seu processo de urbanização”, disse. “Normas também precisam de instituições capazes de fazer com que elas sejam cumpridas. E Porto Alegre, ao longo do tempo – assim como muitos municípios da Região Metropolitana –, começou a esvaziar as instituições que tinham esse papel”.
“Quando começou a chover, a gente sabia que aquela chuva era diferente. E até hoje, quando começa a chover, o coração da gente bate mais forte”. A memória é de Baba Diba, presidente do Conselho Estadual dos Povos de Terreiro e morador da Vila São José, em Porto Alegre. Em maio de 2024, a enchente não atingiu aquele local específico, mas atingiu demais povos de terreiro. “A primeira coisa que a gente começou a pensar é: meu deus, e o nosso povo, que não é pauta prioritária para governo nenhum?”.
O relato ilustra aquilo que o relatório da Anistia Internacional mostra com dados: a desatenção das políticas públicas em todos os níveis para aqueles grupos que já estão vulnerabilizados e enfrentam desigualdades sociais, raciais e de gênero. Essas populações foram expostas a danos desproporcionais durante os eventos extremos do clima no RS. O desastre climático se soma a políticas que não enfrentaram as desigualdades, expondo os grupos às consequências mais danosas e destrutivas antes e depois das enchentes.
Os impactos mais severos recaíram sobre os grupos racializados, moradores de áreas com baixa infraestrutura e alto risco de alagamentos, de acordo com o relatório. Segundo o Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles, as regiões mais afetadas da região metropolitana de Porto Alegre – como os bairros Humaitá e Rubem Berta (Porto Alegre), Mathias Velho (Canoas), Santo Afonso (Novo Hamburgo) e Santos Dumont (São Leopoldo) – concentram população negra e de baixa renda.
Como está o Rio Grande do Sul um ano depois das enchentes? pic.twitter.com/FfA2B8FXJd
— Guilherme Cortez (@cortezpsol) May 28, 2025
“Esses territórios, historicamente negligenciados pelo planejamento urbano, localizam-se próximo a rios e em áreas vulneráveis devido ao baixo nível de infraestrutura e ocupação em regiões de iminente risco. A análise das enchentes demonstra que essa segregação persiste, com os bairros mais atingidos pelas enchentes apresentando uma concentração expressiva de população negra, acima da média dos municípios”, diz o relatório.