20 Mai 2025
"Cabe fundamentalmente aos setores organizados da cidadania a tarefa de enfrentar o mercado e o consumismo como condições de mudança de tal quadro. Não bastam ações pontuais em situações de calamidade, mas que são, sem dúvida, necessárias. Temos que olhar e nos engajar numa estratégia livre da ditadura do mercado e seu consumismo", escreve Cândido Grzybowski, doutor em Sociologia pela Sorbonne e ex-diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase, em artigo publicado por seu blog Sentidos e Rumos, 18-05-2025.
Normalmente avaliamos as democracias de uma perspectiva quase exclusiva da política e do poder estatal vigente, incluindo aí o Congresso. Pessoalmente, tenho destacado a economia que aprisiona o poder estatal e o papel estratégico que pode ter a sociedade civil e as cidadanias ativas em disputa de hegemonia, como nos lembra Gramsci. Mas precisamos considerar a questão cultural cujo papel decisivo cabe fundamentalmente à sociedade civil, pois tem a ver com solidariedade, valores éticos de cuidado, convivência e compartilhamento, entre todas e todos e a natureza.[1]
Estou me referindo à cultura consumista, fundamental para o capitalismo. Foi o José (Pepe) Mujica que me fez pensar nisto num artigo recente, a que tive acesso agora, depois de sua morte. Sua reflexão me parece fundamental. Ele foi guerrilheiro Tupamaro quando jovem e lutou contra a ditadura militar no Uruguai, com aquela inspiração foquista da revolução em Cuba e a instalação de um regime socialista. Pagou 12 anos de prisão por isto, grande parte trancafiado em cela solitária. Mas mudou muito e virou uma referência fundamental com seu modo simples de viver com sua companheira numa chácara nos arredores de Montevidéu. Mesmo no período que foi eleito senador e presidente do Uruguai, nunca deixou a chácara e seu fusca, com um modo de viver simples e sóbrio.
No artigo que li, Pepe Mujica afirma claramente o seguinte: “Um sistema social capitalista não se resume apenas a relações de propriedade; é também um conjunto de valores comuns à sociedade. Estes valores são mais fortes do que qualquer exército e são a principal força que mantém o capitalismo vivo hoje.” Um pouco mais abaixo contin:“ A luta é por uma sociedade autogerida, para aprendermos a ser nossos próprios chefes e a liderar nossos projetos comuns. (...) Queríamos fazer o mesmo que o capitalismo, mas com mais igualdade.” E conclui que precisamos de uma nova cultura, uma nova ética.[2]
Em outro artigo, de César G.Galero, em memória do Pepe Mujica, o autor mostra a volta ao tema da luta cultural. Segundo ele, Mujica queria dar sentido à vida, quando defendeu um modo de viver não governado pelo mercado e pelo consumismo, que é fundamental para o capitalismo. Por isto Mujica afirmava que “só é derrotado quem desiste”. Nas suas próprias palavras, ele teria afirmado que “Quando fica evidente que erramos, simplesmente digo: errei, fiz cagada. Não devemos ficar mentindo. Porque é necessário cultivar confiança.”[3]
Tudo isto remete a nossas análises e visões aqui no Brasil, até dominantes na própria esquerda. A pergunta que devemos fazer é quanto nosso modo de ver está contaminado pelo desenvolvimento capitalista como condição de combate à desigualdade e pobreza vergonhosas que temos. Será que este caminho poderá transformar nossa economia, nossa política e nossa sociedade para uma democracia ecossocial mais potente?
Tenho postado uma série sobre o mantra do desenvolvimento. Também sobre o encurralamento da democracia, pelo sujeito “mercado” da Faria Lima, agronegócio, Petrobras e as grandes obras como se não tivéssemos alternativas. Até a política praticada pelo Ministério da Fazenda e Banco Central se rende ao mercado neste governo Lula III. Sem dúvida cria empregos precários e estimula o tal “empreendedorismo” e, em parte, distribui a renda e acesso ao consumo. Mas de que qualidade e, sobretudo, com que impacto na integridade da natureza e mudança climática? Como afirmou o Pepe Mujica, não estamos mudando as condições para um democracia transformadora, de direitos iguais na diversidade.
Reconheço que temos movimentos e redes de cidadania ativa virtuosos. Mas não são hegemônicos e nem são prioridade para o governo ou Congresso. A existência de Conselhos de representantes de organizações em volta de algumas políticas não indicam que estamos em uma democracia participativa. Além disto, temos uma onda de extrema direita com raízes fortes e ameaçadoras, em quase todos os países democráticos. Até onde e quando? Temos que diagnosticar tudo isto como limites para uma democracia transformadora. Cabe fundamentalmente aos setores organizados da cidadania a tarefa de enfrentar o mercado e o consumismo como condições de mudança de tal quadro. Não bastam ações pontuais em situações de calamidade, mas que são, sem dúvida, necessárias. Temos que olhar e nos engajar numa estratégia livre da ditadura do mercado e seu consumismo.
[1] Demorei para voltar às minhas postagens no meu blog Sentidos e Rumos, pois sofri um acidente doméstico com fogo, que afetou minhas mãos e o braço direito. Fui bem cuidado pelo SUS daqui de Rio Bonito, o que me permitiu permanecer no sítio. O fato real é que minha capacidade de escrever no computador ficou totalmente comprometida. Agora estou voltando, mas ainda com limitações.
[2] MUJICA, José. “Minha geração cometeu um erro ingênuo’. Acesso na edição do de 15-05-2025, do Combate Racismo Ambiental.
[3] GALERO, César G. (Público.es). “Mujica, el Guerrillero Sereno”. Acesso no Others News desta semana.