30 Abril 2025
Após 10 feminicídios em um feriadão, representantes de entidades de defesa dos direitos das mulheres alertam sobre falhas na proteção.
A reportagem é de Marihá Maria, publicada por Sul21, 29-04-2025.
O feriadão de Páscoa no Rio Grande do Sul foi marcado por uma onda de feminicídios, foram dez assassinatos de mulheres em apenas cinco dias. A sexta-feira (18) já havia registrado seis casos em um único dia, e a violência se prolongou ao longo do final de semana, com mais quatro feminicídios até a segunda-feira (21). Para representantes de entidades de defesa dos direitos das mulheres, a escalada de casos evidencia a gravidade da violência contra a mulher e alerta para uma insuficiência do Estado em garantir políticas efetivas de proteção.
“Uma tragédia anunciada”, é como descreve Fabiane Dutra, presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDM), a série de feminicídios registrados no estado. Segundo ela, o feriado seria um momento de descanso ao lado dos filhos, mas acabou sendo dedicado ao atendimento dos casos, junto a outras voluntárias do conselho. Para Fabiane, a situação reflete o avanço do ódio contra as mulheres e a negligência do Estado em implementar políticas eficazes de prevenção à violência de gênero.
Como ela explica, os dez casos chamam a atenção, mas retratam situações que ocorrem diariamente. Para a presidente do Conselho, a sequência de medidas adotadas pelo Estado para limitar ou encerrar serviços de apoio no enfrentamento à violência contra a mulher ajuda a entender a escalada no registro desses crimes.
Entre os principais marcos desse desmonte, Fabiane destaca a extinção da Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres, em 2015, que foi transformada em um departamento, agora vinculado à Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos. Ela relata que, desde então, diversos serviços foram encerrados ou esvaziados. O próprio CEDM chegou a ser desarticulado em 2019 e só retomou as atividades em 2023, após mobilização junto ao Ministério Público.
“Por isso que a gente tem a campanha pela volta da Secretaria de Política para as Mulheres. Porque uma secretaria consegue trabalhar nessa transversalidade, dialogando com outros secretários. Uma secretaria tem recursos humanos e financeiros que geralmente são suficientes ou pelo menos bem maiores do que de um departamento”, explica.
Fabiane também relembra o caso da Rede Lilás, encerrada em 2019 e reativada apenas em novembro de 2024. O espaço é voltado à articulação entre instituições e serviços públicos, com foco na organização do fluxo de atendimento às vítimas de violência e no desenvolvimento de ações e políticas de prevenção à violência doméstica.
A atuação da Polícia Civil também é apontada por Fabiane como ineficiente. Segundo ela, delegacias especializadas no atendimento à mulher vêm sendo fechadas em diversos municípios, e muitas das Salas Margaridas, espaços dedicados ao acolhimento de vítimas dentro das delegacias comuns, estão fechadas ou sem funcionamento profissional adequado.
Para Fabiane, o problema se manifesta em todas as esferas do poder público, municipal, estadual e federal. “Porque quem deveria nos garantir condições, recursos humanos e financeiros para enfrentar, que é a União, Estado, Município, por vezes vira as costas para a gente”, diz.
Márcia Soares, diretora executiva da Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, também denuncia o desmantelamento da rede de atenção às mulheres em situação de violência no Rio Grande do Sul. “A rede foi praticamente destruída nos últimos anos, pelo governo federal que passou e por este governo estadual que infelizmente não está dando prioridade à vida das mulheres”, pontua.
Diante da repercussão da sequência de feminicídios, a Secretaria de Segurança Pública do Estado e a Polícia Civil anunciaram, em 24 de abril, novas medidas para proteção das vítimas. Entre as ações anunciadas está a solicitação de medida protetiva de urgência online, a realização de visitas domiciliares a agressores de mulheres, desenvolvimento de grupos de reflexão com os agressores e operações permanentes de capturas a partir de denúncias.
Na coletiva realizada para o anúncio das ações, o Chefe da Polícia Civil do RS, Delegado Fernando Sodré, classificou a situação dos casos de feminicídio no feriado como “um dia fora da curva” e afirmou que o estado apresenta queda nos registros desse tipo de crime.
No entanto, para Márcia, a declaração do delegado não retrata a veracidade da situação enfrentada no estado. “Não é ‘fora da curva’, esta é a curva e ela é ascendente. A gente percebe isso no país inteiro e inclusive no Rio Grande do Sul”, diz.
Na avaliação de Márcia, a perspectiva adotada pela Polícia Civil e pelo Estado se reflete nas medidas anunciadas, que são restritas e tratam o feminicídio apenas como um problema de segurança pública, desconsiderando as dimensões estruturais que envolvem a violência contra a mulher. “As medidas protetivas de urgência on-line é uma ação bastante importante, que a gente espera que atinja as mulheres, mas lembrando que isso depende de uma senha no Gov.br. Para algumas mulheres de classe média isso é possível, mas se a gente trata com mulheres de periferia, nós sabemos que esse acesso é muito restrito”, avalia.
Sobre a proposta de grupos de reflexão com os agressores, Márcia afirma ser uma estratégia interessante, mas que não é novidade. “Esses grupos, eles dizem que isso vai depender de ter disponibilidade de recursos humanos e materiais, não se pode anunciar uma questão como essa e dizer: ‘olha, ok, mas só vai acontecer se tiver disponibilidade’. A disponibilidade depende da priorização da questão para o governo”, pontua.
“Outra proposta interessante é a visita à casa dos agressores, acho que é uma estratégia bastante interessante. Mas a outra estratégia, de cumprir os mandados de busca e captura, os mandados em aberto, isso é obrigação da polícia para todos, isso não é uma questão só dos feminicídios, não é uma inovação, isso é obrigação da polícia”, complementa Márcia sobre as medidas anunciadas.
A deputada estadual Stela Farias (PT), coordenadora da Força-Tarefa de Combate aos Feminicídios no RS, também avalia que as medidas anunciadas são importantes, mas insuficientes diante da gravidade da situação. Ela afirma que, ao percorrer o estado, constatou o desmonte da rede de proteção às mulheres e a inércia do governo estadual frente à necessidade de ações urgentes de prevenção e enfrentamento aos feminicídios.
A deputada também aponta negligência do governo estadual em não adotar medidas urgentes de proteção às mulheres. Segundo ela, apesar de ter a responsabilidade de estruturar os órgãos de segurança e proteção, o governo Leite não realiza investimentos reais em políticas públicas voltadas à proteção da vida das mulheres.
Na última semana, as deputadas federais gaúchas Maria do Rosário (PT), Denise Pessoa (PT), Fernanda Melchionna (PSOL) e Daiana Santos (PCdoB) se reuniram com o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, para discutir propostas de enfrentamento ao feminicídio no Rio Grande do Sul. De acordo com Lewandowski, o Ministério da Justiça destinou R$ 4 milhões ao estado em 2024, por meio do Fundo Nacional de Segurança Pública, para o combate à violência contra as mulheres, mas os recursos ainda não foram utilizados.
No dia 24 de abril, em resposta a questionamento da reportagem do Sul21, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) negou que os recursos não foram utilizados, mas, sim, que 73% dos recursos foram empenhados.
Após a divulgação da informação do ministro Lewandowski, a deputada estadual Luciana Genro (PSOL) oficiou o governador Eduardo Leite, questionando os motivos que impediram a aplicação integral e imediata dos recursos federais. Ela também pediu esclarecimentos sobre como o montante será utilizado e se há um plano de ação específico para o enfrentamento da violência de gênero.