25 Abril 2025
A teologia de Certeau e de Francisco compartilha a compreensão de que a fé católica precisa ser vivida na complexa relação entre unidade e diversidade e, no caso específico de Francisco, nos três pares polares: plenitude-limite, ideia-realidade, globalização-localização, bem como nos quatro princípios acima destacados (Idem, p. 24).
O artigo é de Angelo Ricordi, doutor em Teologia pela PUCPR, especialista em Identidade, Missão e Vocação da Província Marista Brasil Centro-Sul – PMBCS.
O objetivo deste ensaio é analisar alguns aspectos centrais do papado de Francisco sob a ótica da teologia do jesuíta Michel de Certeau. Em um encontro com os delegados do movimento Les Poissons Roses, em 2 de março de 2016, Francisco chegou a afirmar: “Certeau é, para mim, o maior teólogo para os dias de hoje” [1]. Também em seus primeiros dias no papado, em uma entrevista com o padre Antonio Spadaro [2], Francisco revelou que Henri de Lubac e Michel de Certeau eram seus dois pensadores prediletos.
De onde vem essa proximidade? Qual a influência de Michel de Certeau sobre Francisco? Como esse pensador nos ajuda a compreender o pontificado do papa? Para começarmos a responder a essas perguntas, podemos remontar a um dos primeiros companheiros de Inácio de Loyola: Pedro Fabro. Este personagem é o jesuíta preferido de Bergoglio. Na obra Memorial, o papa encontra a inspiração para seu modelo de reforma da Igreja.
Pedro Fabro foi definido por Francisco como o “padre reformado”, para quem a expressão dogmática e a reforma estrutural estão intimamente ligadas. De Fabro, o papa inspira-se no caráter conciliador e dialogal — “homem de grandes e fortes decisões e, ao mesmo tempo, capaz de ser assim doce, doce” [3]. A partir de Fabro, Francisco interpreta o legado de Inácio pela perspectiva de Lallemant e Surin, considerando-o um místico, mais do que um asceta.
Esse ponto de partida é fundamental para compreendermos a reforma proposta pelo pontífice. Trata-se, não de uma reforma centrada nas estruturas, mas de uma transformação que parte do coração, do centro. O principal aspecto da teologia certeauniana assumido por Francisco é a concepção do cristianismo como uma experiência de alteridade. Para Certeau, assim como para o papa, a alteridade é o lugar teológico do encontro com Deus — através do outro, dos outros e do Outro por excelência (L’Étranger, 1969).
A categoria “Igreja em saída” pode ser lida sob essa perspectiva exodal do pensamento certeauniano. A estrada ou a travessia, mais do que indicações geográficas nos textos de Certeau, representam um método epistemológico e teológico — um pensamento que se recusa a ser fixado ou dominado. Trata-se de uma abordagem que se traduz em uma variedade de vozes e construções narrativas, cujo objetivo é falar ou dar voz ao Outro. A obra do teólogo propõe, assim, um discurso sobre o outro: uma heterologia.
Para Certeau, os cristãos vivem em situação semelhante à dos discípulos de Emaús — em uma travessia na qual a experiência do Cristo como alteridade, como desconhecido e estrangeiro, se faz sempre necessária. Aqueles que o reconhecem na surpresa do caminho tornam-se partícipes de uma experiência radical de precariedade: “do vizinho irreconhecível ou do irmão separado, acotovelado na rua, trancado nas prisões, hospedado com os desprovidos, ou ignorado, quase mítico, numa região além de nossas fronteiras” (Certeau, 1969, p. 13).
Francisco, assim como Certeau, reconhece a importância de compreender a cultura como linguagem de uma experiência espiritual. Nesse sentido, afirma que toda espiritualidade possui um caráter essencialmente histórico (Certeau, 1966). Ao estabelecer um diálogo com Henri de Lubac, o papa resgata a história como o lugar da epifania de Deus na humanidade.
Lampedusa, as periferias existenciais, os pobres, os presos e os descartados de nossa sociedade são algumas das escolhas pastorais do pontífice. Em seus posicionamentos, ele adota um conceito fundamental que marcará profundamente seu pontificado: a parresia. Essa parresia tem sua fonte na oração. Somente por meio da dimensão contemplativa de Francisco é possível compreender a força de suas convicções e o desejo de reforma (Certeau, 1957).
Jesus, na percepção certeauniana — e, de certa forma, também nas posturas assumidas por Francisco —, é como um ladrão, um estrangeiro, alguém que rompe com nossas lógicas estabelecidas. Essa imagem nos ajuda a compreender o imobilismo que, já ao final do Concílio Vaticano II, impedia transformações: muitos, agarrados à tradição, recusavam a possibilidade de qualquer mudança.
Jesus rompe com as categorias estabelecidas:
Ele não entra pela porta na qual era esperado. Ele aparece desde o primeiro momento como alguém sem importância, uma noite, em Belém. Do começo ao fim — até naquela sala em que os Apóstolos se reúnem "com todas as portas fechadas" (Jo 20, 19) — ele está lá, inesperadamente. Ele sempre chega em nossa história apenas em acontecimentos dessa própria história [...] O acontecimento só é percebido quando penetra numa história pessoal; ele só revela seu significado quando é dada uma resposta que modifica a vida. Longe de se oferecer como espetáculo, ele "só fala" quando se compromete (Certeau, 1965, p. 28-29).
O trecho citado acima conecta-se, em vários aspectos, com o papado de Francisco: Jesus é compreendido como aquele que sempre nos surpreende — “Jesus Cristo pode romper com os esquemas enfadonhos em que pretendemos aprisioná-lo, e surpreende-nos com sua constante criatividade divina” (EG, n. 11). Essa ideia também dialoga com a pergunta feita por Certeau: “Quem é meu próximo? Foi perguntado a Jesus (Lc 10,29), com a intenção de identificar, entre os homens, aquele que deveria ser amado. Jesus responde: De quem você faz seu próximo?” (Certeau, 1965, p. 29).
Esse segundo aspecto manifesta-se no fato de Francisco tornar a fraternidade universal um lugar teológico do encontro com Deus na contemporaneidade — uma mensagem que ultrapassa os limites do próprio cristianismo: “Sozinho, corre-se o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe; é junto que se constroem sonhos. Sonhemos com uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, dessa mesma terra que nos abriga” (Francisco, 2020, p. 14).
Outro tema caro a Certeau e compartilhado por Francisco em seu pontificado é o da misericórdia. Ela transcende a compreensão rígida e fixista da lei. Ao analisar o episódio do cego de nascença curado por Jesus em um sábado, Certeau afirma: “o abismo de sua piedade só é proporcional ao abismo do sofrimento humano” (Certeau, 1965, p. 30). Contudo, os especialistas — aqueles que deveriam ser os primeiros a reconhecer a atualidade da Lei — se afastam, presos a uma visão fixista que tende a transformar a Palavra viva em letra morta.
O cego ignorante, ao contrário dos fariseus, aceita a aventura da verdade ao renovar sua mente. O encontro com o Mestre transforma sua vida pela capacidade de ler para além dos sinais imediatos do acontecimento (a cura milagrosa). No caso do cego, o maior milagre foi sua docilidade à ação de Deus, manifestada no improviso do acontecimento (Certeau, 1965, p. 30-33).
O acontecimento, entendido como um antídoto contra um cristianismo gnóstico, sem compromisso com a realidade, pode ser percebido como outro ponto de aproximação com o pontificado de Francisco.
Entre o primeiro passo que é o de se aproximar e de nos deixarmos impressionar pelo que vemos, e o terceiro passo, que é o de agir concretamente para curar e reparar, há um segundo passo intermediário essencial: o de discernir e escolher [...] Existe um princípio que, nestes tempos, é importante recordar: ideias são discutidas, mas a realidade é discernida (Francisco, 2020b, p. 60-62).
Certeau e Francisco compartilham um mesmo princípio com Romano Guardini: a noção de que a realidade é superior à ideia. Massimo Borghesi, ao recuperar o discurso do então cardeal Jorge Mario Bergoglio, proferido em 16 de setembro de 2010, na XIII Jornada da Pastoral Social de Buenos Aires, compilou os quatro princípios norteadores do pensamento de Francisco: o tempo é superior ao espaço, a unidade é superior ao conflito, a realidade é superior à ideia e, por fim, o todo é superior à parte (Borguesi, 2018, p. 126). Há, na formulação desses princípios, um realismo teológico e histórico fundamentado em uma compreensão dos desafios complexos da atualidade.
A teologia de Certeau e de Francisco compartilha a compreensão de que a fé católica precisa ser vivida na complexa relação entre unidade e diversidade e, no caso específico de Francisco, nos três pares polares: plenitude-limite, ideia-realidade, globalização-localização, bem como nos quatro princípios acima destacados (Idem, p. 24).
Talvez, uma obra que nos ajude a entender a reforma de Francisco seja Le christianisme éclaté. Essa obra quase resultou na expulsão de Certeau da Companhia de Jesus. Quando esse estrondoso livro, publicado em parceria com Jean-Marie Domenach, veio a público, muitos se perguntavam se Certeau ainda pertencia à instituição, se ainda se reconhecia como jesuíta e católico.
Nessa obra, Certeau faz uma análise de um cristianismo que abandona, cada vez mais, os lugares tradicionais da experiência religiosa e prolifera nos espaços profanos. Observa a queda vertiginosa da participação nas práticas religiosas e sacramentais, percebendo nesse processo a decomposição da Instituição em meio a um acelerado processo de secularização. Profundo conhecedor da crise iniciada nos séculos XVI e XVII entre o dizer e o fazer, lê, no momento atual da Igreja, a intensificação dessa ruptura, que, por sua vez, exige uma nova compreensão da Igreja e do próprio cristianismo (Dosse, 2003, p. 202).
Carlos Palácio define como tese central de sua obra a ideia de que o cristianismo, enquanto figura histórica, está desaparecendo. Os indícios são numerosos: perda de referência e pertencimento aos valores e à comunidade cristã, fragmentação do discurso religioso, desvinculação das referências institucionais e das práticas sociais, que se afastam do sentido normativo da Igreja. Qual seria, então, a grande questão para pensar o cristianismo nessa sociedade? Seria possível reconhecê-lo e identificá-lo historicamente? Ao cristão, restaria superar esse vazio com uma relação meramente formal com a tradição evangélica. Assim, ele buscaria, em suas práticas e decisões pessoais, ser fiel ao Evangelho por meio de ações significativas que se inscrevem na linguagem secular — social, política e científica (Palacio, 1989, p. 151-177).
Francisco compartilha com Certeau a percepção da ruptura entre o cristianismo e seu meio cultural. Ele identifica, na Igreja, o êxodo dos militantes dos grandes movimentos sociais católicos, sobretudo aqueles ligados à juventude e à questão operária. À medida que a constelação eclesial se dissemina, perde sua órbita, deixando de manter uma articulação firme entre o ato de crer e os sinais objetivos da fé. Parece que a experiência fundamental da fé já não se encontra nos mesmos lugares que a linguagem religiosa.
Francisco, assim como Certeau, percebe que, em uma sociedade onde o cristianismo já não corresponde mais entre o dizer e o fazer, o religioso se torna folclórico. Talvez isso explique a recusa de Francisco pela estetização das liturgias pomposas. A estetização do cristianismo, exemplificada pela contemplação de liturgias gregorianas, é percebida e empregada como um conjunto de belas artes, poéticas e sugestivas, nas quais igrejas, textos e liturgia oferecem matéria para a criação teatral, para poéticas secretas da leitura, para composições do novo imaginário social.
O fato é que a linguagem religiosa e a manifestação de seus símbolos já não são mais testemunhas de uma revelação, mas sim ruínas admiráveis de um simbolismo que oferece a todos a possibilidade de invenção e expressão. O retrocesso da percepção do discurso crente é notado pelo avanço da percepção estética (Certeau, 1976, p. 17-19).
Ao concluirmos este breve esboço de alguns traços que aproximam o pensamento de Francisco e Certeau, podemos afirmar que o aspecto central que ambos compartilham é o lugar da mística como elemento central de toda experiência fundante de alteridade. Francisco é um místico de olhos abertos, para utilizar uma expressão do teólogo Jean-Baptiste Metz. E uma das características fundamentais da mística é a ruptura.
Os místicos marcam a ruptura do pensamento teológico ao manifestarem, em sua própria existência, um incômodo e uma estranheza em relação à instituição perante sua própria experiência. De certo modo, essa é a experiência dos grandes movimentos espirituais e apostólicos. Diante desse cenário, o cristão é tentado a se tornar um inquisidor, como o personagem de Dostoiévski, que procura eliminar o estrangeiro.
Movimento contrário ao coração do Evangelho, que, segundo Certeau, manifesta a abertura a Jesus como o estrangeiro, que se revela na história, no ordinário da densidade da experiência humana de nossos relacionamentos. Ao final, "é sobre esse ponto que seremos julgados em última instância (Mt 24); este é o teste final da vida cristã autêntica: recebemos o estrangeiro, visitamos o prisioneiro, acolhemos o outro?" (Certeau, 1969, p. 14). Creio que, dessa forma, estamos no centro do pensamento teológico de Francisco.
BORGHESI, Massimo. Jorge Mario Bergoglio. Uma biografia intelectual. Trad. Ary E. Pintarelli. Petrópolis: Vozes, 2018.
CERTEAU, Michel de. Les Pèlerins D’Emmaüs. Christus, Paris, v. 4, n. 13, p. 56-63, jan. 1957.
CERTEAU, Michel de. Situations culturelles, vocation spirituelle. Christus, Paris v. 11, n. 43, p. 294-313, jul. 1964.
CERTEAU, Michel de. Comme un voleur. Christus, Paris, v. 12, n. 45, p. 25-41, jan. 1965.
CERTEAU, Michel de. Cultures et spiritualités. Concilium, Petrópolis, n. 19, 5-26, jan. 1966.
CERTEAU, Michel de. L’Etranger. Études, Paris, n. 330, p. 401-406, mar. 1969.
CERTEAU, Michel de; DOMENACH, Jean-Marie. El estallido del cristianismo. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1976.
CERTEAU, Michel de. L’Étranger ou l’union dans la différence. Desclée de Brouwer, 1991.
DOSSE, François. Michel de Certeau: El caminante herido. México, D.F: Universidad Iberoamericana, A.C, 2003.
FRANCISCO, Papa. Fratelli Tutti. Sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulus, 2020.
FRANCISCO, Papa. Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor. Trad. Austen Ivereigh. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2020b.
PALÁCIO, Carlos. O cristianismo na América Latina. Discernir o presente para preparar o futuro. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 36, p. 173-196, 2004.
[3] Idem.