12 Abril 2025
"Por enquanto, o Vale continua sendo uma síntese complexa entre memória histórica, fé religiosa e entidades opostas. Por enquanto, o Vale continua sendo um foco de divisão na Espanha. Para alguns setores conservadores e ultraconservadores, continua a representar um símbolo do catolicismo nacional e da 'Espanha eterna'", escreve o cientista político italiano Francesco Strazzari, professor de Relações Internacionais na Scuola Universitaria Superiore Sant’Anna, em Pisa, na Itália. O artigo foi publicado por Settimana News, 10-04-2025.
O Vale dos Caídos, hoje renomeado Vale de Cuelgamuros, continua sendo um símbolo cheio de história, dor e contradições. Encomendado por Francisco Franco como um monumento à sua vitória na Guerra Civil, este colossal complexo na Serra de Guadarrama, coroado pela maior cruz do mundo, personifica há décadas a divisão das duas Espanhas: a dos vencedores e a dos vencidos, a do ultracatolicismo e a da memória silenciada.
No decreto de sua criação em 1940, Franco destacou a necessidade de construir um lugar que revitalizasse os grandes monumentos históricos e perpetuasse a memória de sua “Cruzada” contra a Espanha.
Inaugurado em 1959, o monumento foi apresentado como uma "maravilha da civilização europeia" e um símbolo do regime de Franco. De fato, durante o governo de Franco, o Vale se identificou claramente com a ditadura e sua ideologia nacional-católica.
Agora, sob a bandeira da Lei da Memória Democrática, o governo do PSOE, liderado por Pedro Sánchez, implementou um plano ambicioso para dar-lhe um novo significado. O objetivo é transformar o Vale em um lugar que explique sua história e as circunstâncias de sua construção, afastando-o da homenagem ao franquismo. A exumação de Franco em 2019 foi um momento-chave neste processo, eliminando um dos elementos mais controversos do local. No entanto, esse processo exigiu um equilíbrio delicado entre diferentes demandas políticas e sensibilidades religiosas.
Em todo esse processo de luta entre conservação e ressignificação, a Igreja emergiu como a grande vencedora, conseguindo preservar o essencial: o culto, a basílica, a abadia, a comunidade monástica beneditina e esta cruz imponente que continua a dominar o horizonte.
O acordo alcançado entre o Executivo e o Vaticano, com a mediação do Cardeal. Pietro Parolin, Secretário de Estado da Santa Sé, o Cardeal José Cobo, Arcebispo de Madri, e o ex-núncio apostólico em Madri, Bernardito Auza, recentemente transferido para Bruxelas na União Europeia, foi um exercício de pragmatismo consumado, diálogo e aquela “finesse” diplomática que tantos resultados alcançou para a Igreja ao longo dos séculos.
O Governo, que inicialmente propôs opções mais radicais – como a dessacralização total da basílica ou a expulsão dos monges beneditinos – acabou cedendo às linhas vermelhas estabelecidas pela Igreja.
O resultado é um pacto que garante a permanência da comunidade beneditina, a manutenção do culto na basílica e o respeito aos elementos religiosos, incluindo a cruz de 152 metros, que os setores mais progressistas sonhavam em ver derrubada.
Em troca, o Executivo obteve a saída do polêmico prior Santiago Cantera, um saudoso do franquismo, que se tornara símbolo da resistência ultraconservadora, e dos espaços não litúrgicos, como o vestíbulo, o átrio e a cúpula, que serão objeto de um concurso internacional para dotá-los de caráter museológico e pedagógico.
Entretanto, esse equilíbrio não satisfez os setores mais extremistas do espectro político e religioso. Vox e Hazte Oir, sob a bandeira de uma visão imobilista do Vale, levantaram suas vozes contra o que consideram uma traição.
Num gesto carregado de simbolismo, eles se reuniram em frente à sede da Conferência Episcopal Espanhola (CEE), onde os bispos realizavam sua assembleia plenária, para gritar sua indignação. Entre cartazes e faixas, eles chamaram o cardeal de Cobo “Judas” e acusou os bispos de “traidores” e “fariseus satânicos”.
Para esses grupos nostálgicos do franquismo, qualquer mudança no Vale, por menor que seja, é um insulto à sua história de “vitória nacional”, sob a égide do catolicismo nacional. Eles ignoram, ou preferem ignorar, que a Igreja saiu claramente fortalecida dessa negociação, mantendo sua presença e sua influência em um lugar que, para eles, continua sendo sagrado. E, consequentemente, intocável.
O cardeal Cobo, perplexo com os protestos, defendeu sua posição claramente: "Esta é uma iniciativa do governo. Nós defendemos os espaços religiosos." E assim foi.
A Igreja, com o apoio do Cardeal Parolin, navegou pelas águas tempestuosas desse processo, garantindo que a basílica não perdesse seu caráter de culto e que os beneditinos, agora sob a liderança de Alfredo Maroto — um monge mais conciliador e talentoso — continuassem a ser os guardiões da abadia.
Os bispos apoiaram unanimemente a gestão do cardeal de Madri. Um apoio sem fissuras, que contrasta com o alarido da extrema direita, que há vários dias "ocupa" os arredores de Anastro (sede da Conferência Episcopal), chamando os bispos de profanadores e traidores. Chegando, em um caso, a insultos e quase a pancadas.
A enorme cruz do Vale, esse totem que para alguns representa a fé e para outros a opressão, permanece intocável, como um lembrete de que o passado não se apaga tão facilmente.
Mas além dos vencedores e perdedores dessa negociação, a grande questão permanece: o Vale de Cuelgamuros poderá um dia ser um lugar de reconciliação para as duas Espanhas?
A resposta não é simples. O novo significado proposto pelo Governo, inspirado em modelos como o Memorial do Holocausto em Berlim ou o Museu da Memória em Santiago do Chile, visa oferecer uma perspectiva plural e democrática, um espaço onde as vítimas de ambos os lados encontrem reconhecimento e onde a história se desenrole sem glorificação. No entanto, enquanto os ultras continuarem a ver cada mudança como uma profanação e enquanto a memória continuar a ser um campo de batalha ideológico, a fratura continuará.
O novo prior, Alfredo Maroto, expressou em sua primeira homilia o desejo de que a basílica seja "um verdadeiro monumento à reconciliação, um lugar de culto e oração, e um Vale de paz". Belas palavras, mas que chocam com a mentalidade de um país onde as feridas da Guerra Civil e da ditadura ainda não cicatrizaram.
A Igreja, com sua vitória estratégica neste acordo, agora tem a oportunidade de desempenhar um papel fundamental, não apenas como guardiã do sagrado, mas como uma ponte entre as duas almas da Espanha. No entanto, terá que ir além da defesa de seus espaços e estabelecer um diálogo corajoso que vá além das trincheiras.
O Vale dos Caídos, com sua cruz imponente e seu peso histórico, continuará sendo um espelho das contradições da Espanha. Talvez um dia, quando as paixões se acalmarem e a memória deixar de ser uma arma a ser lançada, ele possa se tornar um ponto de encontro que muitos esperam. Alcançá-lo dependerá não apenas do resultado do processo em andamento, mas também da vontade coletiva de superar as feridas do passado sem denegri-lo ou glorificá-lo.
Por enquanto, o Vale continua sendo uma síntese complexa entre memória histórica, fé religiosa e entidades opostas. Por enquanto, o Vale continua sendo um foco de divisão na Espanha. Para alguns setores conservadores e ultraconservadores, continua a representar um símbolo do catolicismo nacional e da “Espanha eterna”.
Por outro lado, para aqueles que sofreram com a ditadura ou simpatizaram com os valores republicanos, é um lembrete do autoritarismo de Franco.
As recentes reformas geraram críticas tanto da direita, que acusa o Governo de manipular seu significado histórico, quanto de setores progressistas, que consideram as mudanças feitas insuficientes.
Por enquanto, entre os gritos dos ultras e os passos cautelosos do Governo e da Igreja, o Vale dos Caídos ou Cuelgamuros, continua sendo o símbolo de uma Espanha dividida em duas, incapazes de se olhar nos olhos sem rancor e de superar aquele belo verso do poeta Antonio Machado:
"Pequeno espanhol que vem
ao mundo, que Deus te proteja.
Uma das duas Espanhas
congelará seu coração."