05 Abril 2025
Aos 85 anos, João Gomes de Azevedo lembra do tempo em que as águas corriam fartas pelo Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Havia peixes no rio, o gado pastava livre pelas veredas e a terra dava mandioca, milho e feijão em abundância.
A reportagem é de Daniel Camargos e Simone Fant, de Turmalina (MG), e Emmanuelle Picaud, de Paris, publicada por Repórter Brasil, 03-04-2025.
Hoje, ele olha para o chão seco ao redor de sua casa, na comunidade de Poço d’Água, em Turmalina (MG), e vê apenas poeira. “A água foi embora. E a gente foi ficando para trás”, lamenta. Diante da secura, o nome do povoado, distante 500 quilômetros de Belo Horizonte, tornou-se uma ironia.
Enquanto Seu João luta para encontrar água, na fazenda vizinha crescem florestas de eucalipto a perder de vista. A dona das terras é a Aperam, a maior produtora de aço inox da América Latina. A empresa ostenta certificados de boas práticas ambientais, ao produzir aço com carvão vegetal de “florestas renováveis”, como ela nomeia o cultivo.
Quem discorda chama de “deserto verde”, pois as fazendas de eucalipto estão secando o solo, conforme relatam moradores de comunidades tradicionais e quilombolas. As denúncias são respaldadas por pesquisas científicas e levaram a uma revisão do selo de sustentabilidade da Aperam – o que pode virar um problema para os negócios da gigante europeia.
“Os eucaliptos secaram as nascentes. O que antes dava para plantar, agora virou terra morta”, conta João Batista, agricultor de Veredinha, município vizinho a Turmalina. Ao redor da casa dele, estendem-se plantações com árvores de 20 metros de altura.
A Aperam tem 124 mil hectares no Vale do Jequitinhonha, sendo 76 mil de eucalipto, uma área plantada equivalente à soma dos territórios de Porto Alegre (RS) e Belo Horizonte (MG). A maior parte dessas terras foi repassada na década de 1970 durante a ditadura militar para uma estatal, a Acesita. Nos anos 1990, a companhia foi privatizada e comprada pelo grupo ArcelorMittal, maior acionista da Aperam.
Os militares consideravam as terras devolutas (sem uso) e desejavam desenvolver a região. Com isso, as chapadas que antes eram de uso comum, onde as comunidades criavam o gado solto, foram destinadas à monocultura de eucalipto.
A madeira obtida é queimada para produção de carvão vegetal, que abastece os altos-fornos da siderúrgica em Timóteo (MG), no Vale do Aço. A operação também possibilita a venda de créditos de carbono na Nasdaq (EUA), o segundo maior mercado de ações do mundo, a partir da produção do biochar – um subproduto do eucalipto capaz de sequestrar dióxido de carbono (CO2) da atmosfera.
A Aperam nega ser responsável pela escassez hídrica e diz que os eucaliptos consomem a mesma quantidade de água das árvores nativas. Porém, estudos demonstraram os impactos da floresta comercial.
Um grupo de pesquisadores da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e do IFNMG (Instituto Federal do Norte de Minas Gerais) estimou o balanço hídrico da chamada “Chapada das Veredas”, localizada no Alto Jequitinhonha.
A substituição da vegetação nativa pelo eucalipto reduziu a recarga dos lençóis freáticos em 31 milhões de metros cúbicos de água por ano, segundo o estudo. Notou-se ainda que o nível da água subterrânea baixou cerca de 4,5 metros em 45 anos, segundo o pesquisador Vico Mendez Pereira Lima, do IFNMG. “O problema não é a falta de chuva. O volume de precipitação na região praticamente não mudou nos últimos 70 anos. O que mudou foi o uso da terra”, explica.
Originário da Austrália, o eucalipto cresce rapidamente e, além de ser usado na produção de carvão vegetal e biochar, é matéria-prima para a indústria de papel e celulose. “As plantações podem parecer belas florestas verdes, mas, ecologicamente, são como desertos”, afirma Daniel Montesinos, pesquisador da Universidade James Cook, na Austrália. Ele classifica a espécie como “altamente prejudicial” à biodiversidade, pois grandes áreas plantadas criam um ambiente hostil para a fauna e a flora locais.
Na Chapada das Veredas, os pesquisadores estimam que mais de 60% da área estejam cobertas por eucalipto. Eles destacam também grande impacto nas veredas – áreas úmidas das chapadas que recarregam os lençóis freáticos e estabilizam o fluxo dos rios. Com os ciclos naturais de água interrompidos, no entanto, várias nascentes da região secaram.
Os moradores defendem a retirada das plantações de eucalipto das encostas das veredas, onde as nascentes se formavam. “Se plantarmos árvores nativas lá, a água pode voltar. Esse é o único recurso que temos”, afirma Salete Cordeiro, presidente da Associação de Mulheres Agricultoras do Córrego da Lagoa e Beira do Fanado, comunidades reconhecidas como quilombolas.
Enquanto isso não acontece, Salete usa água de um poço artesiano que vem da casa da irmã. Muitas outras famílias, porém, tiveram de abandonar a agricultura e migraram para a cidade. As que permaneceram passaram a depender de cisternas comunitárias e caminhões-pipa.
Os impactos socioambientais colocaram a certificação da Aperam sob escrutínio. O selo FSC (Forest Stewardship Council), que atesta boas práticas florestais, está em revisão por uma auditoria internacional após denúncia do CAV (Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica), ONG que reúne agricultores da região desde 1994.
A partir do questionamento, a ASI (Assurance Services International) – responsável pela fiscalização do selo – identificou falhas no processo. Um relatório da entidade afirma que a Aperam não comprovou que suas plantações não afetam a disponibilidade de água. O documento também sustenta que comunidades quilombolas da região não foram consultadas.
Depois da publicação do relatório, a certificadora inicial da operação foi afastada e o Imaflora assumiu a reavaliação. O novo certificador deve apresentar um plano de ação corretivo, além de evidências de sua implementação antes do fim do segundo trimestre de 2025, explica a ASI.
Se a Aperam não comprovar a sustentabilidade, a companhia pode perder o selo FSC. Isso pode dificultar suas exportações de aço para a Europa, onde as exigências ambientais são cada vez mais rigorosas.
Em nota enviada à Repórter Brasil, a Aperam diz que a ligação entre escassez hídrica e plantações de eucalipto foi descartada por diferentes pesquisas, como estudos da Embrapa e de uma revista jurídica da UFMG. “O eucalipto, quando gerenciado de forma responsável, não esgota os recursos hídricos. Pelo contrário, ele pode contribuir para a manutenção do equilíbrio hidrológico e para a proteção do solo contra a erosão”, diz a nota.
Na resposta de 12 páginas, a Aperam enfatiza que tem compromisso com a sustentabilidade na produção de aço, destacando a utilização de energia renovável e a preservação de 50 mil hectares de vegetação nativa. A empresa ressalta seu engajamento com as comunidades por meio de diversos programas e alega adotar medidas de mitigação de impactos, como reservatórios de coleta de chuva, e priorizar o plantio em períodos chuvosos. Leia a íntegra da resposta da Aperam.
“Enquanto viola um direito humano fundamental, que é o acesso à água, a empresa continua se promovendo como modelo sustentável. Isso é um selo de fachada”, critica o coordenador do CAV, Valmir Soares de Macedo. Na avaliação dele, a movimentação da Aperam é um exemplo de greenwashing (ou “lavagem verde”, expressão usada para denunciar operações falsamente sustentáveis).
Macedo, contudo, tem pouca esperança de uma mudança significativa: “Mal fomos envolvidos nas discussões. Esses relacionamentos são, antes de tudo, comerciais. A empresa paga para obter as certificações que deseja e depois as usa para promover seus produtos”, opina.
A revisão do selo de sustentabilidade tem grande potencial de impactos nos negócios da companhia. Isso porque, além de buscar o selo para tornar seu aço “verde” e palatável ao mercado europeu, a filial da Aperam no Brasil vendeu créditos de carbono associados ao biochar.
De aparência semelhante à terra preta, esse subproduto do eucalipto sequestra dióxido de carbono (CO2) da atmosfera e melhora a qualidade do solo, segundo a Aperam. Chamado internamente de “ouro negro”, o biochar rendeu R$ 40 milhões à companhia em um ano.
A primeira venda de créditos de carbono foi para a canadense Invert Inc., seguida pela Nasdaq, que adquiriu mais de 7 mil toneladas em 2024 para compensar suas próprias emissões. Outras empresas também adquiriram esses créditos, como o grupo financeiro sueco Skandinaviska Enskilda Banken AB, a consultoria Bain & Company, e o banco suíço Banque Pictet também compraram os créditos. As negociações ocorreram no marketplace Puro.earth, controlado pela Nasdaq.
Em seu relatório de sustentabilidade, a Nasdaq destaca que o biochar ajuda a melhorar as propriedades do solo e a retenção de água, e que o projeto da Aperam apoia programas de desenvolvimento social para agricultores locais.
O selo de sustentabilidade é importante também para a Aperam se adequar à Regulação Europeia de Remoções de Carbono. Aprovada em fevereiro de 2024, ela exige que créditos de carbono sejam concedidos apenas a empresas que comprovem não prejudicar a biodiversidade nem os recursos hídricos.
A eventual perda de certificação pode afetar outros interesses na Europa. A Aperam solicitou isenção de um imposto que taxa produtos com base nas emissões de CO2. Se aceita, a isenção concedida pelo Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira reduziria as tarifas ambientais sobre seu aço na Europa, tornando-o mais competitivo.
A história da Aperam no Vale do Jequitinhonha remonta aos anos 1970, quando a siderúrgica Acesita, então estatal, recebeu terras da União e do governo mineiro para desenvolver a produção de aço com carvão vegetal. Com o tempo, a vegetação nativa do Cerrado, essencial para a regulação hídrica da região, foi gradativamente substituída por monoculturas de eucalipto.
Em 1992, a Acesita foi privatizada e, em 2002, comprada pela ArcelorMittal, a segunda maior produtora mundial de aço. Em 2011, a multinacional desmembrou sua divisão de aço inoxidável e criou a Aperam, hoje uma das maiores siderúrgicas da Europa, com cinco fábricas no continente e uma no Brasil, em Timóteo (MG).
Antes da chegada da empresa, as terras eram utilizadas comunitariamente por pequenos agricultores. “Originalmente, essa terra era para as pessoas, para alimentá-las, para permitir que vivessem com suas famílias. A natureza não é apenas um campo de produção”, recorda Valmir Macedo, diretor do CAV.
A empresa enfrenta há anos na Justiça diversos questionamentos sobre a posse das terras. Moradores afirmam que nunca assinaram documentos cedendo os territórios.
A Aperam nega as alegações de expropriação de terras, afirmando que a aquisição pela Acesita na década de 1970 foi legal e autorizada pelas leis da época. A empresa sustenta que as terras eram originalmente do estado de Minas Gerais e estavam ocupadas ilegalmente. A empresa contesta a existência de expropriações generalizadas, mencionando apenas disputas isoladas.
“Era tudo do povo. Dependíamos da chapada para criar gado, colher frutos como pequi e jaca, e buscar ervas medicinais”, recorda João Batista da Silva. “Hoje, tudo isso acabou”, lamenta.
Mais velho, João Gomes de Azevedo corrobora: “A água corria por valetas que fazíamos no chão, e assim chegava até as casas. Com o tempo, isso foi mudando. Quando a empresa chegou, a água ainda resistiu por um tempo, mas foi diminuindo até secar.”
A história inspirou João a compor uma música, espécie de trova, em que narra a saga de quem resistiu na região e convive com a natureza se esvaindo e a água rareando nas chapadas e veredas.
Essa é uma investigação conjunta publicada também pela revista francesa L’Humanité e pelo portal italiano Il Post, com apoio do Journalismfund Europe.