Santa Maria Mãe de Deus – Ano C – Mulher de discernimento, modelo de discipulado

26 Dezembro 2024

 

Leituras do dia
1ª leitura: Nm 6,22-27
Salmo: Sl 66(67),2-3.5.6.8 (R. 2a)
2ª leitura: Gl 4,4-7
Evangelho: Lc 2,16-21

Hoje celebramos a “Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus”. O dogma da Maternidade divina data do século IV. Foi definido no III Concílio ecumênico, o de Éfeso, em 431 (DH 551-552), e é fruto de reflexão patrística a respeito da grande novidade cristã: a revelação que Jesus é Deus e homem verdadeiro. Maria é, segundo a teologia dos Padres da Igreja, Theotókos, isto é, “aquela que deu à luz a Deus” (PELIKAN, 2000, p.83). Ela é, como ensinam os antigos, a garantia da verdadeira humanidade de Jesus Cristo, ícone do “Mistério da Encarnação”.

A tradição iconográfica cristã representou a Mãe de Deus de várias maneiras, uma delas é por meio do belo ícone de Vladimir (século XII). Nele vemos os rostos da Mãe e do menino Jesus muito próximos um do outro. O menino – um detalhe interessante - envolve com a mãozinha o pescoço da mãe. Conhecido como “ícone da Virgem da Ternura”, ele mostra-nos, comenta o teólogo ortodoxo Evidokmov, (2024, p.241) “a ternura recíproca, a proximidade da presença, a imanência do divino em Cristo”, representa, podemos afirmar, a inter-relação do criador com sua criatura expressos no amor infinito pela humanidade para a qual deu sua vida.

Figura 1: Ícone da Theotókos de Vladimir. Galeria Tretiakov, Moscou, século XII

Mas não podemos esquecer, no entanto, que a Mãe de Deus é Maria de Nazaré, daquele lugar “de onde não poderia vir nada de bom”, segundo Natanael (Jo 1,46). A pequena Nazaré, como nos informa o evangelho e esclarecem os estudos bíblicos atuais, era um lugarejo desconhecido, uma vila camponesa habitada por famílias simples voltadas ao cultivo da terra.

A mãe de Jesus, caracterizada por Lucas, é uma mulher simples, mas conectada à história de seu povo. No Magnífica, cântico atribuído a Maria, a Mãe de Jesus é apresentada como uma mulher que tem consciência de pertencer a um povo que testemunhou a força libertadora de Deus, principalmente nos momentos de grande opressão. Ela é identificada com as matriarcas de Israel, com mulheres que foram agraciadas por Deus em situações de grande desesperança: Míriam (Ex 15, 19-21), Débora (JZ 5, 1-31), Judite (Jt 16, 1-17) e especialmente Ana (1 Sm 2, 1-10). Mulheres para quem a família não era célula isolada, mas parte de um povo portador de uma promessa salvífica, um povo responsável por anunciar que Deus é aquele que, em sua grande misericórdia, faz maravilhas: dispersa os planos dos soberbos, derruba os poderosos e eleva dos humildes cumula de bens os famintos e despede os ricos de mãos vazias... (Lc 1, 51-53).

Maria é, a partir do Evangelho de Lucas, também uma mulher de discernimento. O silêncio de Maria, mostra-nos o evangelista, não é sinal de passividade. Ela está sempre em busca de compreender os acontecimentos. Em várias passagens evangélicas, como a que narra a visita dos pastores ao menino recém-nascido deitado na manjedoura, se diz que Maria conservava essas coisas em seu coração (Lc 2, 16-21). De certo, meditava em tudo o que lhe acontecia para entender a participação de sua família na história da salvação conduzida por Deus.

Mãe oferente, esteve sempre junto ao Filho. Aos poucos foi percebendo o que significavam os “assuntos do Pai” (Lc 2, 50) dos quais ele deveria se ocupar, assuntos que implicaram em sua morte na cruz. Maria foi chamada a oferecer o seu Filho ao mundo. Teve, com certeza, aos pés da cruz, a dor como a de uma espada traspassando sua alma, conforme anunciara o profeta Simeão (Lc 2,35). Ela é, neste sentido, modelo de maternidade aberta. Não é uma mãe que quis o filho para si. Acompanhou o filho em seu compromisso com o mundo, por isso é considerada “modelo de discipulado”.

Papa Francisco em Catequese 27, intitulada "Rezar em comunhão com Maria", proferida em 24 de março de 2021, faz referência ao Ícone da Virgem “Odigitria”, conhecida como a virgem que “indica o caminho”. Na iconografia cristã, afirma ele, Maria está em toda parte, mas sempre em relação ao Filho e em função d’Ele. Venerado na Catedral de Bari (Itália), neste ícone, o menino é, originalmente, representado nu. Isto para indicar, interpreta o pontífice, que o homem nascido de Maria, é o Mediador por excelência. Totalmente voltada para Jesus, Maria é mais discípula que Mãe. Ela é um “catecismo” vivo, afirma Francisco.

Figura 2: Ícone da Virgem “Odigitria” (Catedral de Bari, Itália).

Fr. Clodovis Boff destaca três aplicações sociais do dogma da Maternidade divina. Primeiramente, com base na devoção mariana que confia na intercessão de Maria, afirma que a Mãe de Deus contribui para “fazer história”. Na fé, o povo crê que a Mãe de Deus vem pessoalmente em seu socorro nos momentos de aflição. “Para o povo de Deus”, afirma o teólogo, “Maria é tomada como um ‘tu’, ao qual ele pode se dirigir para pedir socorro, e não simplesmente um ‘ela’, em quem se inspirar para enfrentar as lutas históricas” (BOFF, 2006, p.461). Ela é a mãe que se preocupa com o destino de seus filhos e filhas. Na fé, o povo invoca a Mãe de Deus porque crê que ela vive junto Dele e está sempre pronta para interceder pelos seus (ibidem, p.462).

Outra aplicação do dogma da Mãe de Deus, diz respeito à possibilidade humana, especialmente a dos mais frágeis, de “gerar Deus” no seio da história. Maria, representa a humanidade que, com seu sim livre e responsável, se dispõe a colaborar com o plano salvífico de Deus. Pode-se dizer, afirma Clodovis Boff (2006, p464-465), que à medida que ‘faz a vontade de Deus’, a humanidade se faz ‘mãe de Deus’, em breve, a humanidade ‘faz Deus’. Deste modo, como protótipo da humanidade geradora de Deus, Maria mostra o destino último do processo histórico: gerar Deus. Tal seria também a sua dignidade suprema e vocação insuperável.

Finalmente, uma terceira aplicação tem que ver com a recepção da Palavra. A Mãe de Deus é aquela que encarna a Palavra de Deus que gera a vida, é a mãe que escuta a Palavra e a põe e a pratica (Lc 11,28). Maria é, portanto, modelo para que agentes pastorais e sociais exerçam o ministério com materno afeto, pois a evangelização não é, afirma Clodovis, “em primeiro lugar, um trabalho de doutrinamento ou de organização, mas sim uma obra de criação de vida. É gerar nos corações a vida da graça” (BOFF, 2006, p.471). A “maternalidade” inspirada pela Mãe de Deus, esclarece o teólogo, não é condição exclusiva da mulher, mas diz respeito “a um princípio antropológico de fundo, presente em cada pessoa humana, que se poderia chamar de compaixão ou de cuidado” (BOFF, 2006, p.472-473). É o amor “entranhado” ou “visceral” que também está presente nas palavras e prática de Jesus.

A “maternalidade” inspirada pela Mãe de Deus, segundo Clodovis Boff diz respeito “a um princípio antropológico de fundo, presente em cada pessoa humana, que se poderia chamar de compaixão ou de cuidado” [1]. É o amor “entranhado” ou “visceral” que também está presente nas palavras e prática de Jesus.

Concluindo, podemos pedir à Mãe de Deus que continue a nos indicar como ser discípulos e discípulas de Jesus. Ela que é, por sua fé, obediência à vontade de Deus e constante meditação da Palavra e das ações de Jesus, como ensina o Documento de Aparecida (n. 266), a discípula mais perfeita do Senhor.

[1] BOFF. Clodovis M. Mariologia social: O significado da Virgem para a Sociedade. São Paulo: Paulus, 2006, p.472-473.

Referências

BOFF. Clodovis M. Mariologia social: O significado da Virgem para a Sociedade. São Paulo: Paulus, 2006.

EVIDOKIMOV, Paul. A arte do ícone: Teologia da beleza. Curitiba: Carpintaria, 2024.

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO - CELAM. Documento de Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Brasília: Edições CNBB; São Paulo: Paulus; São Paulo: Paulinas, 2007.

FRANCISCO, Papa. Catequese – 27: Rezar em comunhão com Maria (2021). Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2021/documents/papa-francesco_20210324_udienza-generale.html. Acesso em: 16/12/2024.

PELIKAN, Jaroslav. Maria através dos séculos: seu papel na história da cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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