20 Dezembro 2024
A figura de Jeremias é particular porque todo o seu corpo e sua pessoa são chamados a se tornar "Palavra". A vida de Jeremias, em todas as suas dimensões, se torna lugar de revelação. Da boca, a palavra de Deus entra no corpo de Jeremias, nutrindo-o e transformando-o profundamente, tornando-o palavra viva.
O artigo é de Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, publicado por Settimana News, 13-12-2024.
O autor insere sua obra em uma coleção bem conhecida pelos leitores e apreciada pela documentação segura e confiável, unida à possibilidade de rápida consulta da exegese de passagens importantes dos livros bíblicos.
Massimo Scandroglio é um presbítero milanês, doutor em Ciências Bíblicas, docente permanente da Sagrada Escritura em importantes centros acadêmicos da Lombardia (Faculdade Teológica da Itália Setentrional, Seminário de Milão, ISSR de Milão, Seminário de Como).
Jeremias é um dos livros proféticos mais amados porque relata os oráculos e as ações de um profeta envolvido em juventude em um ministério profético que considera penoso e contestado até mesmo pelos próprios familiares. Um profeta muito “humano”, que enfrentará períodos de inquietação, rebelião, angústia, dúvidas e reconsiderações. Algumas seções mais biográficas permitem acompanhar seu percurso como homem, crente e profeta.
Jeremias testemunha o que significa se deixar completamente envolver pela missão recebida de Deus, com honestidade e fidelidade, confiando no Senhor. Muito famosas e tocantes, suas páginas foram definidas como as Confissões de Jeremias.
Ele chegará a aconselhar o rei a se entregar ao inimigo babilônico que estava prestes a conquistar Jerusalém, mesmo anunciando um futuro de salvação, comprando um campo em plena turbulência bélica. Por isso, é poupado do exílio, mas considerado um colaborador e, no final, forçado pelos rebeldes a governar o governador Godolias, deixado sob o domínio dos ocupantes babilônios, para descer ao Egito e morrer fora da terra de Israel.
O autor oferece, inicialmente, uma ampla introdução à figura e à obra de um dos profetas “maiores”. Em seguida, analisa a transmissão do livro e sua estrutura (segundo o texto hebraico massorético), apresentando sua origem e proposta de leitura e comentário.
Como os outros textos da coleção de referência, o autor estuda alguns dos trechos mais significativos do livro bíblico examinado. Além das principais linhas exegético-teológicas encontradas no texto, o autor acrescenta notas de atualização para a vida de fé do leitor.
Os passos dados são, portanto, três: leitura do texto bíblico, interpretação, e atualização. Neste caso, a atualização apresenta a fraqueza como um lugar de profecia.
Scandroglio examina inicialmente o relato da vocação de Jeremias (Jer 1,4-19). Ele compreende o chamado (v. 4-10), as duas visões (v. 11-16: o ramo de amendoeira e a panela inclinada do norte), a exortação e a promessa (v. 17-19: “não tenha medo, farei de você uma coluna de ferro e um muro de bronze contra todo o país”).
A disputa jurídica ou rib é um gênero literário bem conhecido. Não se trata de um julgamento forense, mas de uma disputa extrajudicial entre dois personagens, na qual não se busca tanto estabelecer a verdade ou condenar culpados, mas recuperar a relação de amizade e aliança quebrada (inclusive através de ameaças, castigos, etc.).
Jer 2,1-37 [2,1–4,4] apresenta o rib entre YHWH e Israel. Na interpretação, são examinadas a disputa entre YHWH e seu povo e suas razões (2,1-13), denunciando a malvadez de Israel e sua autoacusação (2,14-22). Acusa-se Israel de exaustão e de não reconhecer seu pecado (v. 23-37).
Na atualização, destacam-se as palavras (e ações) em vista da salvação de Israel.
Muito famoso também é o oráculo contra o templo (Jer 7,1–28 [7,1–28,3]).
Na interpretação, estuda-se o ataque do profeta contra o templo (v. 1-15), visto como um lugar de culto garantido por YHWH, apesar da conduta religiosa e moral corrupta. Ao profeta é proibida a intercessão (v. 16-20) diante de uma infidelidade arraigada (v. 21-28).
Na atualização, enfatiza-se que o culto deve ser uma expressão (esperada) de fé.
Scandroglio se aproxima das famosas Confissões de Jeremias examinando dois trechos específicos (Jer 15,10-21; 20,7-13).
Na interpretação, primeiro observa a lamentação desconsolada sobre o ministério profético (15,10-21), com o lamento por uma sofrida injustiça (v. 10-11). Seguem-se exemplos exemplares do chamado de Jeremias (v. 12-14), unindo-se a oração do profeta e a resposta de YHWH (v. 15-21).
Jer 20,7-13 reflete a lamentação e o agradecimento pelo perigo da morte. Destaca-se a situação crítica inicial (v. 7-9), a lamentação (v. 10-12) e o agradecimento (v. 11-13). Na atualização, sublinha-se o valor universal da experiência vivida por Jeremias.
No capítulo seguinte de sua obra, o exegeta examina a vida do profeta como sinal. Ele analisa Jer 16,1-13.
Na interpretação, observa-se que, nos v. 1-4, proíbe-se drástica e surpreendentemente ao profeta a vida conjugal. Ele também é alertado a não participar do luto ou qualquer outra celebração pública (v. 5-9). Apresenta-se uma justificativa sólida para o castigo de Israel.
Na atualização, destaca-se que a vida do profeta é uma provocação existencial viva.
Jer 18,1-12 apresenta o profeta Jeremias indo ao campo do oleiro. Na interpretação, é desanalisada a experiência simbólica vivida por Jeremias (v. 1-4). O oleiro pode destruir e refazer à sua vontade o vaso que está formando e cozendo, caso não lhe tenha saído bem. Ninguém pode dizer nada sobre a ação do sábio artesão. Os v. 5-10 expressam, positivamente, o sentido prometedor da experiência simbólica. O ministério profético é (apenas) potencialmente fecundo (v. 11-12). A atualização sublinha o peso da liberdade humana, em diálogo com a liberdade de Deus (aqui simbolicamente representado pelo oleiro).
Jer 23,9-32 contém uma severa reprimenda de Jeremias contra os falsos profetas. A interpretação destaca como os profetas (e os sacerdotes) estão no caminho da perdição (v. 9-12) e como Jerusalém se encontra em uma situação pior do que a de Samaria, tão odiada e hostilizada (v. 13-15).
Os falsos profetas anunciam uma falsa promessa de paz (v. 16-20), iludindo o povo. Eles proferem uma palavra ineficaz (v. 21-22). YHWH, por outro lado, possui uma onisciência julgadora (v. 23-24) e a palavra divina possui um poder intrínseco e incontrolável (v. 25-32). A atualização lembra como, até hoje, busca-se desesperadamente uma palavra capaz de verdade, em meio a mares tempestuosos, repletos de fake news e ideologias que apenas atiçam alguns sentidos dos homens, mas incapazes de saciar a sede de verdade e sentido último que persiste no homem (e, em particular, nos jovens).
Jer 30–31 é intitulado por muitos estudiosos como o Pequeno Livro da Consolação.
Na interpretação, o estudioso oferece inicialmente algumas notas sobre a introdução ao livro (v. 1-3). Os v. 5-7 ilustram um tempo de angústia sem precedentes. Israel é atingido por uma ferida incurável (v. 12-15). No entanto, é anunciado com alívio que o castigador será castigado e a ferida de Israel será sarada (v. 16-17).
Jer 31,2-6.9b lembra a primogenitura divina de Israel e a redenção de Israel, primeira entre as nações (v. 7-9a). Os v. 15-17 retratam o dramático lamento e arrependimento da matriarca Raquel, porque seus filhos não existem mais: são mortos ou levados em exílio. Após seu choro, segue o lamento e arrependimento do patriarca Efraim (v. 18-20). Os v. 29-30 anunciam a verdade libertadora da retribuição pessoal, e os v. 31-34 a nova aliança entre Deus e seu povo. Na atualização, anota-se que a consolação não se realiza sem custos.
No último capítulo de sua obra, o estudioso analisa Jer 36, que traz o Rolo de Baruc. Ele é o secretário de Jeremias.
Após trazer o texto, na interpretação, parte-se com o primeiro rolo: trata-se da redação escrita da profecia de Jeremias (v. 1-4). Segue a leitura pública do rolo por Baruc diante do povo e de todos os de Judá que vieram à cidade (v. 5-10).
Os v. 11-13 trazem as consequências da leitura pública do rolo: um tal Micaías reporta aos chefes de Judá as palavras ouvidas por Baruc. Este é convocado pelo “conselho dos ministros” (v. 14-20). Aqui ocorre a leitura do rolo diante do rei e sua destruição, realizada de forma desprezível: cortado em pedaços, foi queimado pelo rei Jeoaquim (v. 21-26).
YHWH então ordena a Jeremias que escreva uma segunda cópia do rolo, contendo ameaças contra o rei, sua descendência e todo o reino de Judá (v. 27-32). A atualização proposta por Scandroglio sublinha o fato de que se está diante de uma Palavra que não pode ser aprisionada.
Na conclusão, o estudioso oferece algumas notas sobre a visão de Deus.
Jeremias mostra possuir uma concepção bastante elevada e marcada da soberania de YHWH sobre a criação (cf. 27,5) – afirma Scandroglio – e, portanto, sobre a história (cf. cap. 46-51, oráculos contra as nações). Uma soberania que é poder de julgamento no sentido bíblico (revelação e derrota do mal), capaz de castigar (cf., por exemplo, 20,1-6, o julgamento do sacerdote-chefe Pasur; 22,10-12.13-19.20-30, oráculos contra os reis de Judá; 28,15-16[17], ameaça contra Ananias, chefe dos profetas de corte; 29,24-32, profecia contra Semaías, falso profeta) e, portanto, também de salvar (cf., por exemplo, 39,15-18, oráculo para o etíope Ebed-Mélec; 45,1-5, palavra de consolação para Baruque). O Senhor coloca todo o seu poder para condenar o pecado e redimir – se possível – o pecador; e, assim, para devolver o homem à sua dignidade original" (p. 183).
A soberania de YHWH se manifesta no tempo de Jeremias na escolha da Babilônia como instrumento de castigo para toda a terra e, em particular, para Israel.
A soberania de YHWH se baseia em sua onisciência, frequentemente lembrada. Assim, o mal é punido e a justiça restaurada.
O Deus de Jeremias é fortemente ciumento de seu povo, e isso explica a batalha feroz do profeta contra a idolatria. Jeremias prega que Israel deve abandonar os ídolos para se voltar novamente a YHWH, reconhecendo sua soberania. O reconhecimento não vem por meio de atos religiosos, mas de uma vivência fiel ao ensinamento de YHWH.
Numa perspectiva teológica de Jeremias – anota o estudioso –, Israel, enquanto povo da eleição, chamado à aliança com YHWH, se caracteriza como uma comunidade guiada, ou melhor, moldada pela sua mão (cf., em particular, 18,1-12, Jeremias na oficina do oleiro). A eleição, de fato, não se resume a um chamado em si mesmo, mas a uma verdadeira vocação voltada para uma missão, que implica a capacitação do destinatário, a sua transformação radical. O povo, em virtude da eleição recebida, é, a todos os efeitos, uma "criatura nova" (cf. também 2Cor 5,17) (p. 186).
Em momentos específicos, essa comunidade pode ser castigada, mas o castigo tem sempre um valor pedagógico: dura por um tempo determinado e visa à conversão do pecador. O tempo do exílio é claramente determinado também do ponto de vista cronológico (a profecia dos "setenta anos"). O caminho de conversão é complexo e a punição é severa, porque o pecado está profundamente enraizado no íntimo, na teimosia do coração.
Sede do discernimento e da liberdade, o coração, em sua dureza, mostra a incapacidade de escutar e de obedecer a Deus e à sua vontade. O coração será objeto privilegiado da futura ação salvadora de YHWH, com a instituição de uma nova aliança, baseada na inscrição da lei no coração de Israel. Dessa forma, ela não é percebida como uma imposição externa, mas como um dom que corresponde ao verdadeiro bem de quem o recebe. Trata-se de um "coração circuncidado" (cf. 4,4).
O tempo e as energias empregadas por YHWH têm como objetivo fazer com que Israel viva como comunidade a sua vocação particular, a de ser a noiva do seu Senhor. A esperança de YHWH não será frustrada e a sua vontade salvadora se realizará no retorno de Israel do exílio.
O capítulo 1 já ilustrou a autoconsciência do profeta, com o relato da sua vocação.
"Já no capítulo de abertura do livro, dedicado à apresentação da sua vocação – lembra Scandroglio – é possível encontrar os traços essenciais da identidade profética de Jeremias. O profeta se caracteriza como um sujeito que, apesar de todas as suas fragilidades e limites […], está intimamente unido a Deus […], pertence a Ele […], foi escolhido por graça […], em vista da missão profética ('… te constituí profeta das nações', v. 5b): ser, ou seja, mediador da palavra de Deus ('Eis que coloco as minhas palavras na tua boca', v.9b) e coparticipante da sua mesma soberania ('Vê, hoje te ponho sobre as nações e reinos…', v. 10a)" (p. 189).
"Com sua pregação, feita de palavras e ações – mais ainda: com sua própria vida –, o profeta está investido da missão de ser mediador da presença e da obra de Deus na história, por meio da custódia e da transmissão de sua Palavra eficaz ('… para arrancar e demolir, destruir e derrubar, edificar e plantar', v. 10b; cf. também v. 16; 23,28-29)" (p. 190).
O profeta tem uma dramática relação com Deus. Isso se evidencia em suas Confissões. O profeta vive uma crise no ministério, enfrentando o povo e as suas autoridades.
"Emblemáticos a esse respeito – escreve o estudioso – são os conflitos com os soberanos (em primeiro lugar, Jeoaquim e Zedequias) e com os funcionários da corte (cf. cap. 21-24; 34-38), com os falsos profetas (cf. por exemplo, 23,9-40, o Livreto contra os falsos profetas; cap. 28, altercação com o profeta Ananias; e também caps. 26-27.29), com o povo, até mesmo com seus próprios amigos e familiares (cf. por exemplo, 11,18-23, tentativa fracassada contra Jeremias; e também 15,10.15; 18,18; 20,7-8.10), frequentemente por causa de uma pregação feita apenas de condenação, sem aparente consistência histórica (pelo menos no início da carreira profética de Jeremias; cf. 17,15; contra 1,11-14)" (ibidem).
A Jeremias é até mesmo imposto que não interceda pelo povo, e a crise ministerial torna-se uma crise de fé em relação a Deus, visto como um riacho infiel, com águas incertas. Tudo isso leva Jeremias a amaldiçoar o dia de seu nascimento. Jeremias, no entanto, confia sua causa a Deus, sem desejar amaldiçoar pessoalmente seus inimigos. "Dessa forma – anota o autor – o caminho dramático de fé e ministério de Jeremias se torna motivo de consolação para todos aqueles que vivem a relação com Deus de maneira autêntica; e, portanto, por força de coisas, também um pouco tormentada (cf. também Mc 14,32-42, a "agonia" de Jesus no Getsêmani) (p. 191).
A figura de Jeremias é particular porque todo o seu corpo e sua pessoa são chamados a se tornar "Palavra". A vida de Jeremias, em todas as suas dimensões, se torna lugar de revelação. Da boca, a palavra de Deus entra no corpo de Jeremias, nutrindo-o e transformando-o profundamente, tornando-o palavra viva (pense-se no comando do celibato).
Para uma visão parcial e geral, reproduzimos as últimas palavras do comentário de Scandroglio ao livro e à figura do profeta Jeremias.
"No geral, a Palavra entregue a Jeremias se configura como uma mensagem de consolação (cf., em particular, caps. 30-31), capaz de superar o drama do fim (cf., em particular, caps. 32-33). No contexto dramático da invasão babilônica e do fim iminente, a figura de Jeremias se apresenta, em um primeiro momento, como apelo extremo (e não ouvido) à conversão, antes que o inevitável se cumpra; em um segundo momento, como convite (não desesperado, mas fundamentado na fé) a aceitar o julgamento de Deus sobre a nação e a renovar o abandono à sua potência salvadora (cf., em particular, cap. 32, a compra do campo à vigília da queda de Jerusalém). Dessa forma, a palavra e a pessoa de Jeremias tornam-se o instrumento vivo e inspirado para permitir a uma nação em agonia de morte reencontrar, de modo totalmente inesperado e imerecido, o caminho da redenção e da vida" (p. 192).
A bibliografia (p. 193-195: Introduções aos livros proféticos; 2. Introduções a Jeremias; 3. Comentários a Jeremias; 4. Estudos sobre Jeremias, 5. Meditações sobre Jeremias) conclui o volume de Scandroglio, que se oferece como uma guia preciosa à leitura de um profeta muito amado e próximo às cordas do coração do leitor. Sua vida, toda posta ao serviço da Palavra, também se oferece hoje como um vivo exemplo de quem quer ser discípulo de um Deus que se revelou em plenitude em Jesus, que ardentemente deseja estar sempre unido à sua noiva, mesmo após desbandamentos mortais perigosos.
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O profeta Jeremias. Artigo de Roberto Mela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU