16 Dezembro 2024
Dossiê da Fiocruz revela: mito de “vigor” e “potência empreendedora” da juventude oculta uma epidemia de doenças físicas e psíquicas. Causa essencial: trabalho exaustivo e rebaixado, que bloqueia o desfrute da vida. Agora, o VAT dá às vítimas a chance de lutar.
A opinião é de Helena Wendel Abramo e André Sobrinho, em artigo publicado por Outras Palavras, 13-12-2024.
Helena Wendel Abraqmo é socióloga, autora de livros e artigos sobre juventude.
André Sobrinho é sociólogo, tecnologista em Saúde Pública na Fundação Oswaldo Cruz e coordenador da Agenda Jovem Fiocruz.
Rick Azevedo, vereador recém-eleito no Rio e um dos líderes nacionais do Vida Além do Trabalho (VAT), sempre acentua como sua saúde foi afetada pela escala de trabalho 6×1. Arrola as consequências do sofrimento mental e emocional que atingem os trabalhadores submetidos anos a fio a ela, como esgotamento, depressão e burnout, o que também ecoa nas respostas de seus seguidores e nos cartazes de mobilização do movimento.
Um relato publicado em seu Instagram sobre uma panfletagem realizada em setembro de 2024 dá uma pista de como se processa a identificação e adesão de trabalhadores vivendo a mesma situação (ou, como assinala Rick, a mesma dor):
“Renan, um cara tímido, trabalhador de supermercado na madrugada por anos, saiu do seu trabalho de manhã e foi diretamente nos encontrar. A gente não se conhecia, mas a nossa dor automaticamente se ligou uma à outra no mesmo momento. Ele estava tão cansado, cheio de sono… eu falei: ‘meu amigo, vai pra casa, não é justo você perder seu descanso’. E ele disse: ‘não Rick, essa luta é uma dor nossa e eu quero ajudar.”
Esse impacto do trabalho intensivo sobre a saúde dos jovens já vem se anunciando também em outros espaços de escuta. Em uma pesquisa do Conselho Nacional de Juventude sobre as percepções dos jovens na pandemia da Covid19, descortinou-se a sobrecarga e a exaustão dos jovens diante da sobreposição de diferentes tarefas e responsabilidades assumidas por eles, incluindo as do trabalho: mais de metade dos 68 mil respondentes disseram que se sentem sobrecarregados e exaustos (sobretudo as jovens mulheres, entre as quais cerca de 2/3 manifestam tais queixas), além de altas parcelas dos que disseram passar por situações de ansiedade, insônia, depressão e pensamento suicida.
Os materiais de comunicação do VAT expressam situações como cansaço e esgotamento, ansiedade e frustração, estresse, irritabilidade e perda de apetite, provocadas pela escala exaustiva. As queixas apresentadas reforçam o entendimento de que o trabalho é um determinante social da saúde. Ou seja, as condições em que ele é exercido impactam na saúde mental e física dos trabalhadores.
Constata-se que a contundência da manifestação do movimento conflita diretamente com a representação comum que circula na sociedade de que, por estarem em sua plena capacidade vital, os jovens têm energia suficiente para ser dispendida com a intensidade e a velocidade exigidas pelas determinações de produtividade do mercado. Além de atender a essa exigência, devem assumir múltiplas funções. A flexibilidade, a disposição e a potência juvenil são aspectos romantizados que ocultam a realidade de que parcela significativa dos jovens atuam nos piores empregos, inclusive os assalariados, com jornadas exaustivas e em condições insalubres, sujeitos a acidentes e com salários rebaixados, sem uma política ativa de proteção, de fiscalização e de trabalho decente, comprometendo a sua condição de saúde.
Com a atenção voltada para esse tema, a Agenda Jovem da Fiocruz, em parceria com a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, preparou um estudo que resultou na construção de um Dossiê sobre a Saúde dos Jovens Trabalhadores. Neste documento, podemos encontrar a revelação de que os jovens são o segmento etário mais afetado pelos agravos na saúde provocadas pelo trabalho. Cerca de um terço de todos os acidentes de trabalho registrados no SUS entre 2016 e 2022 atingiram jovens. Dos acidentes de trânsito ocorridos com pessoas entre 25 e 29 anos, notoriamente uma das principais causas de mortalidade e lesões incapacitantes nessa faixa etária, 43% estão relacionados com o trabalho exercido pelas vítimas. Metade dos jovens ocupados encontram pelo menos um elemento nocivo à saúde em seu ambiente de trabalho.
As queixas do VAT sobre esgotamento e frustração corroboram os dados sobre os transtornos mentais relacionados ao trabalho notificados no Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN). No período de 2016 a 2022, foram notificados 10.350 casos de transtornos mentais relacionados ao trabalho, sendo 1.908 em pessoas na faixa etária dos 15 aos 29 anos (18,43% do total das notificações). Mais de metade (53,4%) das notificações foi de pessoas registradas com carteira assinada. Os jovens trabalhadores de serviços administrativos compõem o grupo com as maiores notificações e, na sequência, os jovens trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio em lojas e mercados.
Esses dados nos dão uma pista para entender por que e como o tema da saúde mental tornou-se em poucos anos crucial para pessoas jovens. Ao lado dos sempre alegados problemas de isolamento e de desengajamento como fonte de sofrimento emocional, encontramos problemas de exaustão, assédios, tensões produzidas pelas exigências de desempenho, que resultam também em agravamentos da saúde mental.
Essas informações, estratificadas para a faixa de 15 a 29 anos retiradas dos Sistemas de Informação em Saúde, são ilustrativas e indicativas do tamanho do problema, que deve ser ainda maior, pois uma constatação importante do dossiê é a subnotificação de casos ocorridos e não registrados. Um exemplo é o fato de que, no Sistema de Informação Hospitalar (SIH), em 99,99% dos casos de internação de jovens, a informação sobre sua ocupação não foi preenchida, o que nos impede de compreender o quanto tais internações podem ser relacionadas a sua condição de trabalhadores. A falta de registros adequados dificulta a correta avaliação dos impactos das jornadas e condições de trabalho dos jovens sobre sua saúde física e mental, e é preciso encontrar caminhos para superar essa deficiência nos mecanismos da importante base de dados do sistema de saúde.
Os jovens adoecem, mas não param: a última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), de 2019, nos dá a informação de que apenas 4,9% dos jovens adultos (18 a 29 anos) interrompem atividades em função de problemas de saúde, bem menos do que acontece com as pessoas das demais faixas etárias (8,1% na população total). E poucos obtêm cuidados: apenas 10,8% dos jovens fazem reabilitação em caso de diagnóstico elegível. Pode-se concluir pela existência de diferentes tipos de obstáculos de acesso aos serviços de saúde: 25% dos jovens que responderam à pesquisa afirmaram ter dificuldades em conseguir atendimento médico no serviço de saúde; a faixa etária de 18 a 29 anos é a que menos consulta médicos.
A realidade da condição juvenil no mundo do trabalho parece não encontrar resposta em redes de cuidado integral, de assistência, proteção e promoção da saúde. A despeito da existência do Estatuto da Juventude, sancionado em 2013 e que trata dos direitos da população jovem entre 15 e 29 anos, a orientação para políticas de saúde no Brasil relativas à população jovem utiliza os parâmetros internacionais da Organização Mundial da Saúde (OMS) e se concentra na categoria adolescente. Em decorrência, há insuficiente apreensão das necessidades em saúde dos segmentos jovens maiores de 18 anos, que já estão inseridos no trabalho.
O último documento oficial de caráter nacional orientador para a saúde da população jovem foi publicado em 2010 (Diretrizes Nacionais de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens) e não trata da dimensão do trabalho como constitutiva da realidade juvenil. Quando cita explicitamente a faixa etária dos jovens para além dos adolescentes é pelo viés da produtividade, perspectiva comum a toda a produção dos organismos multilaterais naquele período, preocupados em aproveitar a existência de um bônus demográfico para impulsionar o crescimento do país, “utilizando como força motriz a maior população de jovens da sua história”, como ecoa ainda hoje o documento que pretende reunir os diagnósticos e proposições “atualizadas” sobre os jovens do Brasil (Atlas das Juventudes, 2022, p. 10).
É a mesma perspectiva que, tomando os jovens como um dos “principais ativos” da sociedade, propõe uma agenda de “programas eficientes e eficazes de capacitação para o mercado de trabalho, com ênfase na produtividade futura dos trabalhadores” e com “políticas complementares relativas a empreendedorismo tanto em aspectos de capacitação quanto de financiamento”, como afirma documento do Banco Mundial de 2018. O documento também afirma que é preciso avançar nas “reformas” que diminuam a regulação do mercado de trabalho, “introduzindo ajustes referenciados a mudanças na produtividade dos trabalhadores, maior flexibilidade e um salário-mínimo legal mais baixo para os jovens.”
Tais diretrizes acabaram se impondo como referências principais de muitos atores do atual campo das políticas públicas de juventude e estão reproduzidas em diferentes planos de políticas governamentais desde o golpe de 2016, como fica mais explícito no Plano Nacional de Empreendedorismo e Start Up lançado pela Secretaria Nacional de Juventude em 2017, assim como em vários programas oferecidos por institutos e fundações empresariais para serem desenvolvidos através de parcerias público-privadas com governos estaduais e municipais.
Em julho de 2024, abriu-se uma consulta pública para uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens. A minuta do documento avança ao incorporar a população até 29 anos com base no Estatuto da Juventude. Contudo, trata do trabalho na vida dos jovens pelo viés clássico da juventude como uma mera fase de transição, trazendo referências ao “projeto de vida”, reforçando uma sequência idealizada onde os jovens se deslocariam da conclusão de sua escolaridade básica para o mundo do trabalho. Não se constitui como foco de atenção a situação de saúde dos jovens que já trabalham, dos agravos ocorridos a partir da ocupação e quais as estratégias de promoção, vigilância, proteção, atenção e recuperação à saúde devem ser acionadas. É uma expectativa se algo mais profundo e conectado à realidade em relação à saúde de jovens trabalhadores estará incluído na publicação do texto final da política.
Cabe recordar que a possibilidade de conciliação das jornadas dos jovens nas diferentes dimensões da vida, de modo que uma não anule a outra, é um dos eixos estruturantes da Agenda do Trabalho Decente para Juventude, elaborada e lançada no segundo governo Lula, e desenvolvida durante o governo Dilma na forma de um Plano Nacional, interrompido pelo golpe de 2016. Nesse sentido, assim como existe a necessidade de que o setor da saúde compreenda a diversidade etária no interior da juventude, inclua em seus diagnósticos a identificação das necessidades de saúde dos jovens de todas as idades e encontre os jovens trabalhadores, também é fundamental retomar uma agenda de trabalho decente, de maneira a responder aos anseios da juventude trabalhadora, que o VAT conseguiu expressar de maneira tão cristalina.
A notável repercussão e mobilização alcançada por esse movimento demonstra que esses jovens souberam dar voz a uma queixa amplamente sentida, materializando uma demanda geral por uma outra relação com o trabalho, outras condições de exercício e outro equilíbrio do tempo do trabalho na vida. Como se surpreende o próprio Rick Azevedo: “Jamais imaginei que minha dor, meu sofrimento, de 12 anos na escala 6X1 iria se transformar em uma luta necessária e urgente que vai beneficiar toda a classe trabalhadora no país.”
Não é possível prever os desdobramentos desses acontecimentos, mas já é possível afirmar que novos personagens entraram em cena e que a pauta dos direitos do trabalho se recolocou no centro da disputa a partir dessa luta. Se a posição e perspectiva dos seus protagonistas prevalecer, o debate não poderá girar em torno dos custos para os empregadores ou do comprometimento da produtividade da economia. O que está em jogo, o que ecoa do grito lançado por eles, é o prejuízo desse modelo de trabalho sobre a vida e a saúde dos trabalhadores.
É o momento de reafirmar uma agenda de direitos com um eixo que possa pôr em relevo a necessidade de cuidar dos jovens na sua condição de trabalhadores, e de sua saúde, física e mental, em vez de apenas exortá-los como os responsáveis pelo aumento da produtividade e de crescimento econômico do país. Uma agenda que afirme a possibilidade de que todos possam “trabalhar para viver, e não viver para trabalhar”.
[1] Veja aqui.
[2] CONJUVE et al. Juventudes e a pandemia do coronavírus. Relatório nacional. 2ª ed. CONJUVE, 2021. Disponível em: Veja aqui. Acesso em: 25 jan. 2022. Para uma análise sobre os dados ver: ABRAMO, HW. Jovens na pandemia: muitas dores e o direito de dizer não. In: SILVA SOBRINHO, A.; ABRAMO, HW; VILLI, M.C; Jovens e saúde: revelações da pandemia no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2022. 290 p.
[3] LEANDRO, B.; SILVA SOBRINHO, A.; ABRAMO. HW. Panorama da Situação de Saúde de Jovens Brasileiros: intersecções sobre Juventude, Saúde e Trabalho. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2024. 288 p.
[4] Compreende-se como transtorno mental relacionado ao trabalho todo caso de sofrimento emocional em suas diversas formas de manifestação tais como: choro fácil, tristeza, medo excessivo, doenças psicossomáticas, agitação, irritação, nervosismo, ansiedade, taquicardia, sudorese, insegurança, entre outros sintomas que podem indicar o desenvolvimento ou agravo de transtornos mentais
[5] SOBRINHO, Andre. Juventudes e o direito à saúde: distinções etárias e temas para uma agenda de políticas públicas. In: Políticas Públicas de Juventude: reconstrução em Pauta. São Paulo, Ação Educativa, 2023. Disponível aqui.
[6] Banco Mundial (2018). Competências e Empregos: uma agenda para a juventude.
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Por que são os jovens que adoecem? Artigo de Helena Wendel Abramo e André Sobrinho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU