04 Dezembro 2024
"Erdogan é um criador inesgotável de tramas, que acabam se tornando tão intrincadas que ele mesmo não consegue mais se desvencilhar, tornando-se seu passivo prisioneiro", escreve Domenico Quirico, jornalista italiano, em artigo publicado por La Stampa, 02-12-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Escrever sobre a Síria, decifrá-la, impõe uma disciplina prudente, uma espécie de modalidade permanente de “stand by”. A realidade das alianças e traições obriga a uma vigilância que você aprende a se desenvolver pouco a pouco, é preciso escrever e reescrever muitas vezes antes que os fatos façam sentido. Aqui, a História não é vivida como um livro, mas como um corpo, paixões, feridas, ódio, memórias, torturas, arcaísmos em nome de Alá... Você parece segurar o fio certo na mão, islamitas, Erdogan, Estados Unidos, Irã, o regime de Bashar, Israel, e percebe que precisa farejar os arredores, as margens de interesses e sutilezas invisíveis, um permanente mito de Sísifo. Não há nada que lhe faça cair em erro tanto quanto um lugar onde quinhentas mil pessoas foram massacradas, um país dividido entre um regime morto-vivo e islamistas em armas, uma terra incógnita que se tornou a tela na qual as grandes e micropotências projetam suas ansiedades e interesses, onde as oposições globais e locais desencadeadas por duas datas fatídicas, 24 de fevereiro de 2022 e 7 de outubro de um ano atrás, cristalizam-se com uma brutal aceleração. No final, surge a dúvida: e se a explicação estiver em uma situação hobbesiana de cada um por si e todos contra todos? Sugestões de resposta, as alianças e as cumplicidades sempre dependem do que se quer.
Então, com quem devemos começar, se não por Erdogan, o turco? Aquele que se declara e depois recua, que se aproxima e depois dá um passo para trás, que grita ou se eclipsa, que é vago ou categórico. Nos últimos três dias, todos o têm apontado como o titereiro, o incendiário que, espera-se, se tornará, quando lhe for conveniente, bombeiro. O inferno sírio fervilhando de ódios míopes e em perpétuo tumulto há muito tempo lhe convém. As legiões islâmicas que em três dias tomaram Aleppo e, em breve, Homs e Hama, os antigos bastiões do fundamentalismo rebelde contra os Assad (e talvez também Damasco e o Palácio), não são justamente sua criatura? Não foi ele que os construiu, com uma visão astuta, retirando do caos sírio a al-Qaeda, fragmentos explodidos de guerra civil, acrônimos falsos, mercenários alistados no indecifrável caldeirão fervente do Cáucaso, forçando-os a se camuflar de moderados, de fundamentalistas razoáveis? Ele garantiu a reprodução em pequena escala da futura Síria modelo sharia em Idlib, uma ilha islamista de três mil quilômetros quadrados e quatro milhões de habitantes com um conveniente posto de fronteira em Baba-al-Hawa, que produz oportunos subornos em cima das ajudas internacionais. Uma legião estrangeira para os antigos sonhos de Erdogan: eliminar o detestado Assad com um pouco de atraso e, como na época das primaveras árabes, tornar-se o senhor de um segundo domínio otomano. Ou Aleppo poderia ser o verdadeiro despojo, a capital de um enclave turco, uma Donbass síria a partir do qual manter sob controle o antigo problema curdo.
Provável, realista? Erdogan é um criador inesgotável de tramas, que acabam se tornando tão intrincadas que ele mesmo não consegue mais se desvencilhar, tornando-se seu passivo prisioneiro. Uma pequena dúvida para o sultão: e se seus legionários da “al-Sham” estivessem fazendo um jogo duplo de enganação com ele, e não tivessem renunciado ao rigoroso “Lebensraum” (espaço vital) islâmico para servir de trapo para a grandeza turca? Afinal de contas, eles só obedecem a Deus, ou seja, a si mesmos, já que se consideram deus. E então alguém se esquece, na confusão da atualidade, do Estado Islâmico: ele não desapareceu, está à espreita no deserto de Badiya, o caos é, como sempre, uma oportunidade perfeita.
A Rússia ajudou Assad a sobreviver, não por simpatia autárquica pelo ex-oculista londrino. Devido à longa guerra na Ucrânia, reduziu seus contingentes, mas não pode abrir mão da miríade de bases aéreas e navais com as quais ameaça e controla o flanco sudeste da OTAN. Isso é importante demais para sua pretensa potência global para trocá-la com Erdogan. Deve, se ainda for possível, salvar Bashar al-Assad pela enésima vez com a ajuda de um Irã enfraquecido.
Sim, os aiatolás de Teerã: será que eles realmente podem abrir mão da Síria alauíta, perder o controle da rodovia que é a veia que pulsa oxigênio e armas para os fidelíssimos do Hezbollah que tentam sobreviver aos castigos israelenses e aproveitar o cessar-fogo para se reorganizar? Moscou e Teerã, dois aliados que não têm cúmplices de reserva, que não podem deixar as coisas como estão, não se misturar, doutrinários obrigados a um fatalismo violento e meticuloso. E incerto.
Até mesmo o todo-poderoso Israel tem dificuldade em adaptar suas doutrinas à realidade síria de hoje. Há uma tentação de renunciar à coexistência, basicamente consolidada rotina com os Assad e assistir com satisfação ao desmoronamento de outro pedaço do maldito império xiita, até mesmo facilitá-lo, no espírito do novo Oriente Médio do pós-Hamas.
Israel ocupa uma parte da Síria desde 1967, o Golã, anexado como uma zona de segurança contra as tentações iranianas. Se os jihadistas conquistarem a Síria, eles não poderiam ser um vizinho mais perigoso do que Bashar al-Assad? Depois de Gaza, quem garante que Erdogan manterá seus ímpetos sob controle? Os Estados Unidos, que têm tropas na Síria em zonas curdas nominalmente para ficar de olho no Estado Islâmico, na época de Obama deixaram morrer por omissão a primeira revolução síria, aquela laica e civil, em 2011. Que erro cometerão desta vez na preguiça do interminável interregno entre Biden e Trump?
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Aqueles Estados titereiros e incendiários no inferno dos jihadistas sem senhores. Artigo de Domenico Quirico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU