25 Novembro 2024
É importante notar como Balneário Camboriú se desenvolve aproveitando-se de instrumentos importantes do planejamento urbano, que deveriam ser participativos, como os planos diretores, e a partir disso produz uma cidade segregada, distante da sua própria população. E a cidade também se vale de instrumentos tidos como desenvolvimentistas, como bancos públicos (BB e BNDES) financiando grandes obras, ao passo em que a direita mais bolsonarista acusa estas instituições de promoverem apenas obras em outros países…
O artigo é de Carolina Schleder e Jefferson Maier, publicado por Outras Palavras, 22-11-2024.
Carolina Schleder é mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina, nascida em Balneário Camboriú. Atualmente integra o Observatório de Comunidades e Periferias de Santa Catarina (OcupaSC).
Jefferson Adriano Maier é pesquisador visitante na Università degli Studi di Urbino 'Carlo Bo', doutorando em Geografia (UFSC) e mestre em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental (UDESC). É coordenador do Observatório de Comunidades e Periferias de Santa Catarina (OcupaSC) e colaborador da Rede BrCidades.
História e gráficos de uma tragédia. Em 1964, elites fizeram a cisão. De um lado, o Balneário: fausto, brega, torres gigantes, influência crescente do agro e… dinheiro público! De outro, as maiorias que constroem a riqueza e são expulsas por ela.
Você já deve ter lido alguma notícia com os dizeres: “o maior arranha-céu residencial do mundo será construído em Balneário Camboriú”. Se essa notícia parece repetida, é porque de certa forma ela é. Passados dez anos da inauguração do Millennium Palace, o então prédio mais alto do país, a bolha imobiliária de Balneário Camboriú não mostra sinais de enfraquecimento – e seguimos sendo bombardeados com as mesmas manchetes. Neste breve ensaio[1], tentamos mostrar como a verticalização recente da cidade catarinense é um produto histórico fortalecido por leis municipais e por diversos fluxos de capital, que vão se atualizando enquanto assistimos atônitos novas torres sendo construídas todos os dias, ao mesmo tempo em que Balneário Camboriú se torna modelo para todo o litoral catarinense.
Em linhas gerais, a cidade que se notabilizou recentemente por eleger como vereador mais votado o filho 04 de Jair Bolsonaro (e também elegeu o vereador de esquerda com a melhor votação proporcional de Santa Catarina [2]), deve-se muito mais à velha captura dos aparelhos de Estado – sejam eles instrumentos legais ou econômicos municipais, estaduais ou federais – pelas classes dominantes do que a algum tipo de projeto digno de outro país, como a ideia de uma “Dubai brasileira”, que a propaganda do setor turístico divulga.
Poucos sabem, mas o município foi criado a partir da separação da cidade de Camboriú de seu balneário, em 1964. Naquele momento já existia uma segregação dentro do próprio município, causada pela construção da BR-101, que dividiu Camboriú praticamente ao meio, e deixou apenas a nova cidade com a orla. A partir da separação definitiva, o município de Camboriú sofreu economicamente e a segregação entre as duas cidades se acentuou – ambas possuem enormes desigualdades até hoje. Atualmente Camboriú possui um dos piores índices de desenvolvimento humano, não só da região, mas do estado de Santa Catarina, enquanto Balneário Camboriú sempre figura entre as melhores cidades para se morar em diversos rankings.
Com foco na região da Praia Central de Balneário Camboriú, que é a área de maior interesse pelo mercado imobiliário, fizemos uma linha do tempo com o “gabarito” (o termo técnico para a altura dos edifícios) médio das edificações e o tamanho médio dos apartamentos. Isso nos levou a estabelecer três períodos de crescimento na Praia Central, que foram denominados de: Crescimento Inicial, Multiplicação do padrão e Crescimento exponencial. A periodização – ou datificação – em três tempos é um recurso importante que nos ajuda a entender como a cidade se desenvolveu, aparentemente, sem crises internas ou com poucas oscilações ao longo do tempo — diferentemente do restante do mercado imobiliário do país, que foi duramente afetado pela crise de 2008, por exemplo. E que, a despeito de ter jogado fora diversos planos diretores e outros instrumentos tradicionais de planejamento, como foi o caso do plano contratado início da década de 1970 – realizados por arquitetos de renome, como Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvre, com a participação de Gabriel Bolaffi [3] – a cidade se desenvolveu milimetricamente planejada pelos setores aliados do capital, que seguem transformando cada metro quadrado no maior lucro possível.
Figura 1 – Esquema dos diferentes períodos de verticalização em Balneário Camboriú
Fonte: Scleder, C.S.L.S. “Capital e lei no processo de verticalização em Balneário Camboriú, 2024.”
Figura 2 – Esquema dos diferentes períodos de verticalização em Balneário Camboriú
Fonte: Schleder, C.S.L.S. “Capital e lei no processo de verticalização em Balneário Camboriú, 2024”
O período de crescimento inicial se estendeu de 1964 até 1990 e acompanhou anos de prosperidade da indústria catarinense, em especial no Vale do Itajaí. Com a crise na década de 1980, a construção civil em Balneário Camboriú mantém-se com aportes financeiros de outros países, notadamente da Argentina, devido à política de paridade do dólar com o peso argentino, aliada ainda à isenção de impostos para não residentes que fazia parte do receituário neoliberal do governo Collor. Morfologicamente esse período é marcado pelo crescimento dos gabaritos e área dos apartamentos.
O período de Multiplicação do padrão vai de 1990 até 2006. Fisicamente, temos a manutenção do gabarito médio e do tamanho dos apartamentos. Ainda é um período de muita produtividade da construção civil local, marcado pela manutenção do fluxo de capital internacional que começou na década de 1980 e uma retomada da indústria catarinense. As movimentações da indústria são ressaltadas aqui porque, devido a alguns fatores como a volatilidade da economia brasileira, o investimento imobiliário é visto como mais lucrativo e mais seguro.
Figura 3- Evolução de gabarito médio e tamanho médio da unidade habitacional
Fonte: Elaboração própria com base nos dados Schleder, C.S.L.S. “Capital e lei no processo de verticalização em Balneário Camboriú, 2024.”
No início do período de Crescimento exponencial, a partir de 2006, Balneário Camboriú já tem relevância como polo turístico e investimento imobiliário lucrativo. O que vemos nessa etapa é a produção de edifícios extremamente altos e apartamentos cada vez maiores. Esse padrão construtivo, inclusive, deu origem ao termo “mansão suspensa”.
As leis de Balneário Camboriú, especialmente na região da Praia Central, vêm sendo feitas para privilegiar exatamente este tipo de construção. O plano diretor de 2006 impede a construção de unidades habitacionais na Praia Central com menos de 100m² – comparativamente, as residências do Programa Minha Casa Minha Vida têm em torno 45-50m2. O gabarito na Praia Central é livre em termos de andares, a sua limitação vem do chamado “coeficiente de aproveitamento”[4]. Por conta dessa limitação, as leis de acesso ao solo criado são muito importantes no processo de verticalização. O solo criado é toda a área construída acima de um coeficiente básico. Em Balneário Camboriú, as formas regulamentadas de acesso ao solo criado são as Operações Urbanas Consorciadas (OUCs) e o Icon e Icad. As OUCs são operações urbanas coordenadas pelo poder público e financiadas por entes privados, que adquirem potencial construtivo adicional.
No caso da última OUC anunciada, a Orla BC, o poder público realizou uma série de investimentos “âncora”, como o alargamento da faixa de areia. A construção civil doou o plano e o projeto, de valor estimado em 600 mil reais. Essa doação ocorreu por meio do Instituto +BC, que reúne empresários da construção civil[5]. A execução do projeto, entretanto, foi custeada pelo município, que adquiriu um empréstimo de 85 milhões de reais com o Banco do Brasil [6] — 141 vezes mais, portanto, que a “doação” privada…
O Icon e Icad, por sua vez, surgiram como uma forma de arrecadação para pagar uma dívida contraída pela cidade na década de 1980. Entretanto a lei foi judicializada e os fundos arrecadados foram utilizados para outros fins. Tanto as OUCs quanto as leis de Icon e Icad são tratadas de maneira similar pela Câmara de Vereadores, como diferentes modalidades da aquisição de Transferência de Potencial Construtivo (TPC), e não como diferentes instrumentos urbanísticos. Além disso, o interesse dos construtores é sublinhado no processo de votação pelo vereador Fábio Flor, na sessão ordinária de 13 de maio de 2014, “[…] procura dos construtores, já manifestado em audiências públicas, procura, é, pra adquirir esse novo TPC para adquirir o ICON, ICAD e muito mais o ICAD, que está num outro projeto de lei sendo avaliado nesta casa […]”.
De acordo com o vereador Eduardo Zanatta, em entrevista cedida para a pesquisa de mestrado realizada, a falta de restrição do gabarito, aliada com a possibilidade de compra de metragem adicional, é responsável pelo padrão construtivo que existe na cidade. Atualmente a lei de Icon e Icad foi recriada, e inclui uma limitação ao número de unidades que pode ser construída em um lote, com o objetivo de verticalização sem adensamento.
Depois da crise de 2008, devido às atrativas taxas de juros do Brasil para capital estrangeiro, vemos um processo ainda mais intenso de desindustrialização e reprimarização da pauta exportadora do país. A indústria do norte de Santa Catarina e do Vale do Itajaí sofre nessa transição e as tradicionais parceiras de verticalização de Balneário Camboriú são substituídas pelo agronegócio. Nesse processo, tanto o poder público quanto grandes incorporadoras passam a buscar investidores e parcerias com expoentes desse setor.
Figura 4 – Imobiliária Balneário Camboriuense especializada em investimentos do agronegócio
Fonte: Acervo pessoal
O poder público de Balneário Camboriú não oferece obstáculo à intensa valorização e verticalização na cidade. Ao contrário: esse processo é altamente incentivado. Resultado: a grande parte da população trabalhadora de Balneário Camboriú é incapaz de arcar com os custos de vida da cidade e é forçada a migrar para as cidades vizinhas, em especial para Camboriú. Novamente, de acordo com o vereador entrevistado, o processo de valorização de Balneário Camboriú é excludente, e a valorização do metro quadrado também é responsável por afastar as pessoas da cidade. Prova disso é que o crescimento populacional de Camboriú excedeu as expectativas do IBGE, em contraste com o crescimento abaixo do esperado para Balneário Camboriú, o que indica um processo de expulsão da população da classe média e das maiorias empobrecidas.
O resultado final do processo de segregação socioespacial aqui observado é que o trabalhador que gera riqueza em Balneário Camboriú não consegue morar dentro da cidade. Portanto, a demanda por infraestrutura desses trabalhadores tem que ser absorvida por outras cidades. Não é surpreendente, portanto, que Camboriú tenha alguns dos piores indicadores da região, como o menor PIB e a maior mortalidade infantil [7]. Para o poder público a presença, em Balneário Camboriú, de uma população que não exige nenhuma benfeitoria pública por grande parte do ano e ainda paga impostos territoriais é excelente. Porém, esse crescimento não se sustenta sem a população trabalhadora de cidades vizinhas.
É importante notar como Balneário Camboriú se desenvolve aproveitando-se de instrumentos importantes do planejamento urbano, que deveriam ser participativos, como os planos diretores, e a partir disso produz uma cidade segregada, distante da sua própria população. E a cidade também se vale de instrumentos tidos como desenvolvimentistas, como bancos públicos (BB e BNDES) financiando grandes obras, ao passo em que a direita mais bolsonarista acusa estas instituições de promoverem apenas obras em outros países… Soma-se a isso uma série de instrumentos que poderiam ser usados para a garantia do bem-estar geral, ou de obras compensatórias para aliviar o impacto das altas torres sobre todos os habitantes – especialmente as famílias mais pobres – mas nada disso é feito. Balneário repete, ou melhor, dá continuidade à urbanização sedimentada na super exploração e espoliação urbana tão presentes em nossas cidades.
[1] O texto aqui apresentado é baseado na dissertação da primeira autora, intitulada “Capital e lei no processo de verticalização em Balneário Camboriú”, apresentada ao Programa de Pós-graduação de Arquitetura e Urbanismo da FAU/USP em 2024.
[2] Disponível aqui.
[3] Sobre essa história, um artigo recente foi publicado na revista PósFAUUSP. Disponível aqui.
[4] O coeficiente de aproveitamento é um instrumento que nos informa a área que pode ser construída a partir de um cálculo que se faz partindo da área do terreno. Por exemplo, quando falamos que o coeficiente é 4 [vezes], estamos falando da possibilidade de construir uma edificação que ocupe 4 vezes o valor do terreno. Geralmente são os planos diretores que definem os coeficientes a partir do zoneamento, além de definirem critérios para a ampliação desse valor, como térreos comerciais, pagamento de outorgas onerosas, ou mesmo a realização das OUCs e outras políticas de solo criado.
[5] Instituto + BC faz entrega oficial de projeto de reestruturação da Praia Central, disponível aqui.
[6] Autoriza o Poder Executivo Municipal, a contratar operação de crédito com o Banco Do Brasil S/A, com a garantia da União, e dá outras providências. Disponível aqui.
[7] IBGE Cidades: Panorama, Camboriú. Disponível aqui.
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Camboriú, cúmulo da segregação brasileira. Artigo de Carolina Schleder e Jefferson Maier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU