Vida, morte e a possibilidade do inaudito. Um diálogo entre a psicanálise e o Evangelho

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: Patricia Fachin | 02 Novembro 2024

“Desaparecer é uma forma radical de separação. Quando faltam as palavras, quando a dor é demais, quando tudo parece comprometido, quando tudo se tornou impossível de suportar, quando estamos no limite de nossas forças, quando o irremediável aconteceu, quando algo em que acreditamos profundamente morre, então a separação pode assumir a forma clara e gélida do desaparecimento. ‘Desapareço’ significa cortar para sempre os laços com o mundo como eu o conheci.

No caso da morte, esse desaparecimento não é — exceção dos suicidas, que decidem a própria morte — o resultado de uma escolha, mas de uma condenação, de uma imposição sofrida. Nunca sou ‘eu’ quem decide desaparecer, mas é a lei da morte que o exige. Não há mais tempo para mim, não há mais tempo para minha vida. A morte obriga-nos a desaparecer, a dissolver-nos, a retornar, como diria o bíblico Eclesiastes, ao pó de onde viemos."

Em artigos como este, Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pávia e de Verona, busca, no diálogo entre a psicanalise, a filosofia, a literatura e o texto bíblico, as respostas para as questões mais fundamentais da existência, como o que é a vida e o que é a morte, mas também como viver a própria vida e enfrentar a morte, relacionadas a outros temas que estão na ordem do dia, mas estritamente ligados aos problemas essenciais.   

No encontro promovido pela Sociedade Romana de Psicanálise há dois anos, Recalcati relembrou as origens da psicanalise: “Uma doutrina que nasceu de Freud, declaradamente ateu, filho da cultura iluminista e do cientificismo positivista, que não poupou críticas severas à religião, assim como fez Lacan apesar de sua formação católica". Dessa corrente, derivam-se as teses de que a religião decorre das superstições e neuroses humanas e de que “o homem religioso seria um homem que, como acontece em nossa infância, em vez de enfrentar abertamente o caráter finito da existência, inventa ilusões, das quais a religião seria a maior, porque imagina um mundo além do nosso capaz de redimir as penas, um mundo em que os pobres, os abandonados, os últimos, sejam compensados. Deus, segundo Freud, nada mais é do que a representação, a sombra imaginária do pai idealizado da nossa infância na qual encontrávamos abrigo quando crianças; segue-se que o sentimento religioso se basearia no medo da vida e da morte, no temor de Deus”.

A vida que gera vida e a vida que gera morte

No artigo “Quem não ama desaparece”, publicado no La Repubblica e reproduzido na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos — IHU, o psicanalista parte do juízo freudiano de que “o homem religioso confia-se a Deus como uma criança assustada confia a sua vida indefesa ao poder protetor de um pai idealizado” por causa do medo da morte e do desejo de salvar-se “do seu destino mortal”. Mas é no escrutínio do texto bíblico, mais precisamente no Evangelho e na relação de Jesus com a morte, que Recalcati busca respostas que transcendam as teses psicanalistas. Tanto é assim que reconhece: “Na relação de Jesus com a morte, o julgamento de Freud é, no entanto, obrigado a se afrouxar”. 

A postura de Jesus diante da morte, segundo o italiano, “não se parece em nada com aquela imperturbável de Sócrates”, aclamada pelos filósofos, mas destituída de testemunho: “Seu corpo treme, transpira sangue, cai no chão. A primeira oração que dirige a Deus é uma súplica: não quer morrer, quer continuar a viver, pede ao pai para ser poupado, para afastar dele o cálice amargo da morte”. Uma postura que revela-se diferente igualmente do juízo freudiano: “Não é, ao contrário do que Freud pensava, a negação infantil da morte, mas, no máximo, o resultado de tê-la atravessado”. 

A reflexão sobre a morte de Jesus conduz Recalcati ao exame do mistério: o vazio do sepulcro, diz, “abre a possibilidade de algo inaudito”. Isto é, “Jesus não pode ser encontrado entre os mortos. Ele, embora morto, ainda está vivo. O que isso pode significar?“

Na interpretação do psicanalista, “a ressurreição de Jesus é uma desativação radical do terrível poder da morte. Ela não pode, de fato, ser a última palavra sobre a vida. Na sua pregação ele mostrou que o medo da morte coincide com o medo da vida, propondo a si mesmo como o testemunho de uma vida viva, de uma vida com abundância de vida: ‘Eu sou a ressurreição e a vida’ (Jo 11, 25)”. 

Como Recalcati observa, Jesus também ensina e adverte sobre dois tipos de vida vivida aos discípulos e às multidões que dele se aproximam: a vida que gera mais vida e a vida que gera morte. “Ele se perguntou o que seria uma vida viva, uma vida generativa, uma vida capaz de vida. A mera conservação da vida limita a transcendência, como diria Paulo a respeito da Graça, a sua ‘abundância’. Estar vivo não significa por si só estar realmente vivo. Jesus coloca o problema da diferença entre uma vida morta e uma vida viva. Ele é encarnação do vivente, a ‘água viva’ que sacia a sede para todo o sempre, a vida como força geradora. Portanto, não se pode procurar Jesus entre os mortos. Porque os mortos são aqueles que renunciaram à vida”. 

A experiência da transcendência e do mistério

O psicanalista depara-se com outro mistério em A Páscoa derrota o nada”, publicado no La Stampa no ano passado, isto é, a ressurreição de Jesus Cristo. “Se tomarmos literalmente a narração evangélica da ressurreição, encontraremos no centro o mistério pascoal da descoberta do sepulcro vazio. Para Michel de Certeau, é a figura mais fundamental do cristianismo: a ausência do corpo de Cristo descreve uma forma radical da presença, uma espécie de imã que gera desejo, palavra, escrita, vida. O vazio do sepulcro obriga-nos a procurar Jesus entre os vivos e não entre os mortos”, afirma. 

A ressurreição cristã, conclui, “não é [...] a projeção de um desejo ilusório de imortalidade que reenviaria a uma felicidade após a morte, mas um evento que exige fidelidade. O nosso tempo, que decapitou a experiência da transcendência e do mistério, só pode pensar na ressurreição como uma história consoladora com um final feliz”. Isso porque, argumenta, “nosso tempo não concede mais espaço ao evento irrepetível do encontro que pode tornar a vida nova. O evento da ressurreição, por outro lado, nos convida a pensar que ainda é possível dizer, como nos lembrou Gabriel Marcel, a alguém que se ama profundamente: ‘Você não morrerá!’. É a lição mais profunda da Páscoa cristã: contra a impiedosa evidência do nada, o Ressuscitado nos lembra que algo pode permanecer, que nem tudo o que foi está destinado a se tornar nada”. 

Em agosto deste ano, em “Eu sou o caminho, a verdade, a vida e o desejo”, Massimo Recalcati dissertou sobre o que alguns pensaram de Jesus nos anos de sua vida pública, como registrado no Evangelho: “um fora de si, um falsário, um vigarista, um demônio chefiando outros demônios, um delirante, um narcisista, um falso profeta, um exaltado, um beberrão e glutão, um frequentador de prostitutas e ladrões, um malfeitor, um impostor”. Para ele, essas são palavras proferidas por aqueles cujo “ressentimento os envenena, sua impotência os intoxica, sua tristeza os torna áridos. Eles não têm a possibilidade de pensar sobre o evento do impossível que irrompe e subverte a ordem já estabelecida da existência, reconstituindo-a como nova. Sua hipocrisia cínica não lhes permite ter fé no milagre do desejo”. 

Mas para além de toda desqualificação, pontua, “no nome de Jesus há o segredo que o marca”. Ele explica: “Na língua hebraica, Yeshua significa, de fato, o Deus que salva. Sua palavra tem a força de um ímã irresistível, transporta, agita, erotiza, provoca o desejo, assemelha-se a um fogo sempre aceso, salva mostrando que a verdade não está toda escrita na Lei, mas espera para se tornar verdade a cada oportunidade, na dimensão encarnada do testemunho. São os atos realizados por Jesus que tornam a salvação possível nesta Terra”.

Mais recentemente, no mês passado, Recalcati refletiu sobre o que o ensino evangélico “Ame seu inimigo como a si mesmo” significa do ponto de vista da psicanálise. Encontrou a resposta no Evangelho — já que, diante do mandamento fundamental de Jesus, “Freud recua horrorizado” —, mais precisamente nas relações de fraternidade as quais Jesus nos convida: “O primeiro ato de fraternidade que encarna o amor ao próximo é, portanto, um ato que devo dirigir ao estrangeiro dentro de mim, ao fato de eu ser um estrangeiro para mim mesmo. Aquele que não sabe acolher essa intimidade desconhecida não está predisposto a amar o próximo. Esse é um esclarecimento que é radicalizado pelo ensinamento de Jesus, para quem o amor ao próximo não é de forma alguma um amor baseado no espelhamento mútuo, mas sim em uma dissimetria fundamental. De fato, o próximo não deve ser confundido com o semelhante, com o idêntico, com o igual. Mas o contrário disso”.

Embora a palavra amor possa ter diferentes significados e, para muitos, está diretamente relacionada a sentimentos e sentimentalismo, “a raiz mais escabrosa do amor”, constata o psicanalista, encontra-se no Evangelho. “Não amar quem está à nossa disposição, quem está ao nosso lado, quem está próximo de nós. Não amar sua presença empática, sua proximidade, sua segurança. Mas amar o próximo como a parte mais estranha de mim mesmo e do Outro, amar a sua alteridade, aquela mais profunda e insondável. Essa mesma alteridade que Jesus, em seu testemunho humano, foi capaz de encarnar quando, por exemplo, lembra aos seus que não veio para ficar, mas para partir, ou quando, no momento de sua ressurreição, dirige-se a Maria Madalena lembrando-lhe que ela não pode mais tocá-lo (Noli me tangere). Testemunho radical da impossibilidade de conceber o amor como apropriação, fusão, identificação narcísica ao semelhante. É isso que Freud não entende: o amor ao próximo não é amor por aquele que me é indiferente, mas pelo desconhecido que está em mim e para quem está ao meu redor, para o estrangeiro que sou para mim mesmo e pelo traço sempre inapropriável da liberdade absoluta do Outro.” 

Na catequese sobre “São José, padroeiro da boa morte”, em fevereiro de 2022, o Papa Francisco refletiu sobre nossa dificuldade com a morte. “Talvez algumas pessoas pensem que esta linguagem e este tema sejam apenas uma herança do passado, mas na realidade a nossa relação com a morte nunca se relaciona com o passado, mas sempre com o presente”, destaca. Ao contrário do que outras doutrinas ou teorias ensinam, esclarece, “a fé cristã não é uma forma de exorcizar o medo da morte, pelo contrário, nos ajuda a enfrentá-la. Antes ou depois todos nós passaremos por aquela porta". 

O medo da morte terrena que acomete também inúmeros cristãos só pode ser libertado pela ação do Espírito Santo, acrescentou o pontífice na catequese sobre a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade no mês passado: “Na nova criação, o Espírito Santo é Aquele que dá aos crentes a vida nova, a vida de Cristo, uma vida sobrenatural, a vida dos filhos de Deus. Onde está a grande e consoladora notícia para nós em tudo isto? É que a vida que nos foi dada pelo Espírito Santo é vida eterna! A fé liberta-nos do horror de ter de admitir que tudo termina aqui, que não há redenção para o sofrimento e a injustiça que reinam soberanos na terra”. 

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