19 Outubro 2024
Hoje, estamos obcecados pelo cérebro, tanto que este precioso órgão é assediado por todos os lados. No entanto, se as descobertas sobre o seu funcionamento se multiplicam, os subterrâneos da sua mecânica ainda nos escapam em grande parte. Assim, enquanto aguardamos para ver com mais clareza, o dossiê FUTU&R, a nova revista de Usbek & Rica, sugere proteger nosso precioso órgão dos diversos ataques a que está sujeito, especialmente através da expertise do médico em neurociências e psicólogo clínico Albert Moukheiber que neste outono dedica um livro, Neuromania (Allary, 2024), a esta era de ouro da neurociência e das ciências cognitivas invocadas pela política, pelo marketing e pelo desenvolvimento pessoal.
A entrevista é de Julien Descalles, publicada por Usbek & Rica, 17-10-2024. A tradução é do Cepat.
No seu livro, você desafia especialmente um certo número de “neuromitos” que estão muito cristalizados em nossas mentes. Como podemos explicar esta persistência?
Isto é ainda mais surpreendente porque se trata frequentemente de extrapolações, atalhos ou hipóteses de investigação científica que a ciência há muito tempo desmentiu! Mas, na verdade, entre o público em geral, persistem certas ideias preconcebidas. Talvez devido ao fascínio sedutor da ciência cognitiva, para usar a expressão de um artigo que se tornou célebre. A conclusão é clara: se a explicação de um comportamento se baseia em informações neurocientíficas, mesmo errôneas, ela convence mais pessoas. Ela parece mais séria.
Entre os muitos mitos mencionados sobre o cérebro, há especialmente aqueles transmitidos pela frenologia...
Esta teoria pseudocientífica, que afirma, especialmente, que a forma do crânio pode refletir o caráter ou a inteligência humana, pode muito bem ter dado origem às doutrinas mais racistas de todas, mas há muito tempo tem o vento a seu favor. Basta ler Balzac, Twain ou mesmo Sherlock Holmes. Mas também aqui, se os cientistas há muito tempo provaram a sua vacuidade, as suas imprecisões, as suas hipóteses perigosas e os seus problemas metodológicos, as crenças que inspirou subsistem até hoje.
Vejamos o sucesso de pressupostos como “cada qualidade corresponderia a áreas do cérebro” – a famosa habilidade matemática! –, ou “a inteligência seria quantificável” – basta olhar para o sucesso dos testes de QI. Isso é preocupante, porque essas crenças são performativas: se um teste de personalidade considera seu hemisfério esquerdo mais desenvolvido, você é tachado de criativo e faz suas escolhas profissionais com base nesse viés.
Da mesma forma, devemos nos preocupar com o “sucesso” do modelo trino do cérebro desenvolvido por Paul Mac Lean, médico e neurocientista estadunidense, na década de 1960 e que, fortemente influenciado pela teoria da evolução de Darwin, faz o postulado de um órgão que teria se desenvolvido em “estágios” cerebrais ao longo do tempo – os complexos neomamíferos, paleomamíferos e reptilianos, do mais recente ao mais antigo. Este último, o reptiliano, seria responsável pelo nosso comportamento instintivo, pelos nossos impulsos primitivos. Isso é falso! E, no entanto, rapidamente refutado pela pesquisa, o conceito permanece sendo especialmente popular. E vários atores do “neuromarketing” aproveitaram esta teoria, com vistas a se dirigir ao “cérebro reptiliano” dos consumidores para induzi-los a um frenesi de compras irreprimível.
Por que deveríamos nos preocupar com isso?
Porque é uma impressionante inversão de responsabilidade! Se seguirmos esta lógica, o consumidor, ou o seu cérebro, é o único responsável. Nem anúncios, nem nossas sociedades mercantis, nem nossos estilos de vida são responsáveis. O mesmo se aplica à nossa incapacidade de sermos felizes; aqui, mais uma vez, a culpa seria exclusivamente do nosso cérebro e da sua incapacidade de regular o nosso nível de serotonina...
Se acreditamos que podemos resolver todos os nossos problemas brincando com o nosso cérebro, estamos nos iludindo. A meu ver, esta “neuromania” insere-se sobretudo num contexto ideológico e político favorável. Uma época em que o individualismo tem precedência, onde os valores, as responsabilidades e até a capacidade de progredir caberiam exclusivamente ao indivíduo.
Em seu livro, você fornece uma visão geral do conhecimento sobre o cérebro. No entanto, embora os pesquisadores compreendam cada vez melhor o seu funcionamento, ainda estamos muito longe de consegui-lo explicar com precisão...
Observe que houve um progresso incrível na ciência cognitiva ou na neurociência, especialmente nos últimos trinta anos. Graças à ressonância magnética funcional, para citar este único exemplo, foi recolhida uma quantidade de dados sem precedentes desde 1991, e já não apenas sobre cérebros afetados por tumores ou pessoas falecidas. Por outro lado, é preciso lembrar que a tecnologia tem seus limites, está longe de ter resolvido tudo, ainda há muitos mistérios a serem resolvidos.
Você pode modelar algumas funções, ajudar corpos deficientes a voltar a andar ou a ver (novamente), mas assim que você toca na fenomenologia, é outra questão. O que um primeiro encontro, uma amizade, um pôr do sol ou uma discussão no trabalho provoca na pessoa? Não existe hoje uma máquina capaz de medir seus sentimentos quando você encontra um amigo de longa data, então imagine poder controlá-los, isso me parece no mínimo um absurdo!
No dossiê da revista dedicamos um artigo à promessa transumanista segundo a qual um dia seremos capazes de transferir nossos cérebros para computadores para impedir a morte. Esta analogia entre o cérebro e a máquina capturou a nossa imaginação nos últimos anos. Como explicar isso?
Acredito que não ultrapassamos o dualismo induzido pelas religiões, esse entre o corpo e a mente. O Iluminismo passou por isso, o conceito de razão assumiu o controle, a religião caiu em desuso, mas a mente – ou a alma – foi substituída pelo cérebro. Um cérebro que seria um maestro, um marioneteiro que controla o nosso corpo, as nossas emoções, o nosso comportamento.
Mas é ele quem está na origem das nossas ações?
O cérebro não é um superprocessador que recebe e processa dados vindos de fora e fornecidos pelos nossos sentidos, para nos dizer em troca o que fazer ou como reagir. Não está isolado em um frasco. As informações funcionam juntas e influenciam umas às outras.
Durante uma conversa, por exemplo, o cérebro gera muitas previsões. Na verdade, a audição lhe dá menos informações do que pensamos; o cérebro corrige algumas “vibrações ligeiramente difusas”, reconstrói, “embaralha” uma paisagem fragmentada. Pode antecipar certas palavras com base no nosso conhecimento e no ambiente em que opera.
Veja esta entrevista: se ela fosse realizada num café, por telefone ou por videoconferência, se fosse realizada depois de um mês de férias ou um semestre de trabalho intensivo, depois das Olimpíadas ou num contexto midiático inócuo, demoraria um tempo diferente. E ainda assim suas perguntas seriam as mesmas. Ao contrário de outros órgãos, o cérebro depende do contexto.
Outra lição a tirar disto: se “a cognição não é um caminho de mão única, mas uma via de mão dupla”, para retomar o filósofo e biólogo chileno Francisco Varela, então o cérebro não pode ser este general que governa nossas vidas. Pelo contrário, é um mediador entre os nossos corpos e as nossas relações com o mundo; é todo o meu ser que sente, reflete e age.
Por que, segundo você, essa analogia parece perigosa?
Porque ela não presta um tributo à complexidade do cérebro, mas tende a reduzi-lo a mecanismos simples. Corre-se então o risco de entrar numa lógica reducionista em que um efeito se deve a uma causa – encontrada apenas no cérebro. Mesmo estando longe de ter resolvido todos os mistérios. Por que não agir com base no que sabemos e no que dominamos?
Um exemplo simples: sabemos que a socialização é um ingrediente essencial para uma boa saúde do cérebro. Relacionamentos profundos e intercâmbios são essenciais, somos animais fundamentalmente sociais, nós nos construímos e alimentamos relações com os outros. Mas hoje é muito difícil fazer amigos nas nossas sociedades.
Assim, diante da explosão de patologias subclínicas, em vez de fornecer sistematicamente uma resposta orgânica – medicinal ou terapêutica –, por que não questionar a responsabilidade dos nossos estilos de vida, das nossas organizações humanas, dos nossos valores contemporâneos cada vez mais individualistas? E por que não prescrever encontros, intercâmbios, sociabilidades?
A ficção científica, como você destaca no livro, influenciou muito a nossa forma de perceber e até de estudar o cérebro. A nível pessoal, algumas obras alimentaram o seu fascínio e a sua vocação pelas ciências cognitivas?
Eu mergulhei profundamente na ficção científica de Isaac Asimov ou de Stanislas Lem. Um mangá como Evangelion em particular alimentou enormemente as questões filosóficas que ainda estão no cerne dos meus trabalhos: o que é ser eu, o que é ser o outro? O meu vermelho é o seu vermelho, a minha dor é igual à sua, etc.? O que é, afinal, a consciência? Porque mesmo que eu mapeasse perfeitamente o seu cérebro, não saberia mais sobre quem você realmente é.
Esta questão sobre as fontes de inspiração artística também me faz pensar na separação que existe na França nos estudos universitários entre disciplinas científicas e literárias. Contudo, as ciências cognitivas requerem tanto conhecimento em filosofia como em estatística, em engenharia como em psicologia ou biologia. Ao separar as formações, o prejuízo para a pesquisa é enorme. Se quisermos escapar da lógica reducionista, sem dúvida devemos começar por aí.
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“Nos iludimos achando que podemos resolver todos os nossos problemas brincando com o nosso cérebro”. Entrevista com Albert Moukheiber - Instituto Humanitas Unisinos - IHU