Jovem rico (Mc 10,17-30): ter ou ser? Que sabedoria é essa do ter para consumir? Artigo de Frei Jacir de Freitas Faria

Foto: Wikimedia Commons

12 Outubro 2024

O texto sobre o qual vamos refletir hoje é Mc 10,17-30. Trata-se da passagem de um homem rico, conservada, pela tradição da comunidade de Mateus, como jovem rico (Mt 19,16-22), que se ajoelha diante de Jesus e lhe pergunta: “Que devo fazer para herdar a vida eterna?”Jesus, o bom e sábio mestre, assim como Deus, propõe ao homem rico deixar sua riqueza para ganhar a vida eterna, isto é, deixar de ter para ser! Por que é difícil para o rico salvar-se? E o pobre? Ele deve sofrer na pobreza, por que não tem salvação par ele? Que relação existe entre o ter, o ser e a sabedoria? O que tem a ver o meio ambiente com o ter?

O artigo é de Frei Jacir de Freitas Faria, OFM.

Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (Belo Horizonte), mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, professor de Exegese Bíblica. É também membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB), sacerdote franciscano e autor de doze livros e coautor de quinze. Canal no YouTube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos.

Eis o artigo.

Contrapondo ao jovem rico, o livro da Sabedoria conserva a memória de Salomão (97-a 932 a.E.C.), rei poderoso e “sábio” do tempo do Primeiro Testamento. O jovem do evangelho seguia com sabedoria a sua religião, mas era incapaz de se entregar ao Reino, porque era muito rico. Salomão e o jovem, ambos sábios e ricos, mas apegados ao ter. Salomão construiu para Deus um grande e luxuoso Templo em Jerusalém, o qual se tornou por muitos séculos o centro religioso, político e econômico de Israel (1Rs 5—11).

O autor do livro da Sabedoria 7,1-11, muito tempo depois, fazendo memória de Salomão, afirma que ele era igual a todos os mortais, desde o nascimento, mas um homem diferente porque ele pediu e recebeu de Deus, como dom, a sabedoria. Salomão a preferiu aos cetros e tronos, considerados bens terrenos preciosos. “Amei-a mais que a saúde e a beleza e me propus tê-la como luz”, afirma Salomão, segundo a narração bíblica. E ele termina, afirmando que todos os seus bens materiais – uma riqueza incalculável -, provêm da sabedoria.

Na verdade, Salomão explorou os pobres para construir o templo e sua riqueza pessoal. No entanto, a tradição bíblica o celebrizou como o grande sábio de Israel. Diferentemente do jovem rico, ele não precisava perguntar a Deus o que deveria fazer para se salvar, pois sabia o caminho e o ensinava a todos, isto é, a busca da sabedoria e o seguimento da religião judaica. Ao chamar Jesus de Mestre, o homem rico reconhece que Jesus é um rabino judeu que tem autoridade para lhe ensinar. Tendo frequentado grandes sábios, ele quer ouvir mais. Isto era importante no seu caminho de santificação. Jesus lhe diz que somente Deus é bom e lhe recorda que o caminho para herdar a vida eterna é o seguimento dos mandamentos da Lei. O jovem diz que os conhece com clareza e que os guarda desde o seu tempo de juventude.

Jesus, então, lhe oferece outro critério importante para herdar a vida eterna: vender os seus bens e dar o montante arrecadado aos pobres. O pedido pareceu severo demais. No mundo antigo, o dinheiro não tinha o mesmo valor que para nós hoje. O trabalhador recebia o salário de um dia trabalho em mercadoria. O dinheiro era um bem de poucos. O problema do jovem rico é que ele queria a vida eterna, mas também ter.

O segredo da catequese de Jesus é que o ser tem relação com a vida eterna, e o ter com o poder. O ser tem relação com a nossa essência, o ser bom, justo nas relações, assim como Deus. Na verdade, a nossa condição humana, a nossa história é marcada pelo poder do ter. Por causa dele, estamos agredindo o meio ambiente e nos matando lentamente. Por isso, diz Jesus, é muito difícil para aquele que tem muito herdar a vida eterna. Em nossos dias, esse desejo de ter tem relação direta com a destruição do meio ambiente. Nesse sentido, é esclarecedora a explicação da relação do poder humano com o ter e o ser, ao longo de nossa história.

Os egípcios, preocupados com a imortalidade, gastaram mais tempo com a construção da tumba, por isso, contribuíram com a medicina, ao tentar chegar ao poder da imortalidade, o querer ter a vida eterna, como o jovem rico. Já os gregos, querendo ser livres, inventaram a democracia, o poder do povo ter e ser. Os romanos, querendo ser fortes e dominadores, contribuíram com o poder das leis, o direito. A Igreja e os cristãos da Baixa Idade Média (séc. XI-XV) queriam ser santos, mas pecavam muito, bem como abominavam o fato de ter que ir para o inferno. Eles contribuíram com o poder do ser santo. O ideal de vida era ser.

Já a sociedade mercantilista, a partir do século XVI, nos anos pós-cristandade, mudou o foco para o poder do ter. Surgiu o poder da Ciência, do saber para ter. Só seria feliz quem fosse capaz de ter. Nesse sentido, a partir do século XIX, muitos cristãos também mudaram o foco: ser santo mudou o foco para ter igreja, dízimo e fazer fiéis. O ter um bem material, um carro, por exemplo, é retribuição de Deus pelo dízimo ofertado. Já na revolução cultural da década de 1960, o poder passa a ser o do fazer amor.

Em nossos dias, predomina o ter em exagero, o consumismo. Fazer para consumir. Para o ter riquezas não há limites. Quem tem quer ter mais. O padrão de consumo está universal, sem limites. Somos mais de 8 bilhões de pessoas querendo ter e, para isso, exploramos o meio ambiente, na desmedida ambição que almeja simplesmente o lucro e o consumo sem limites. A natureza tem dado o seu grito de socorro.

Na outra ponta da linha, o ser não tem limites, mas como é difícil ser. O homem rico do evangelho sabia muito bem disso, por isso, saiu entristecido. Prefigurando a nossa era, ele sabia que não ia conseguir tal proeza. Um rico dificilmente entrará no Reino de Deus.

Preocupados com as exigências de Jesus, os discípulos tomam consciência de que a salvação é para poucos. O líder deles, Pedro, declara: “Nós deixamos tudo e te seguimos!” E Jesus lhe assegura que quem tudo deixar: casa, família e terras por sua causa, com certeza, receberá a vida eterna, o que motivou o surgimento da vida religiosa na Igreja. Por outro lado, conhecendo a tradição familiar no Judaísmo, Jesus não estaria solicitando abandonar pai, mãe e filhos para ser seu discípulo. Assim como Pedro, muitos dos seus seguidores próximos mantiveram a vida familiar. O pedido aqui é simbólico para dizer que, para herdar a vida eterna, não podemos ser apegados ao ter.

Com é difícil no mundo moderno herdar a vida eterna. Já não mais seguimos a proposta de Jesus. Somos apegados ao ter. Acreditamos que os pobres devam sofrer, pois a sua condição de vida é fruto da opção deles. Somos fruto de uma sociedade moderna, da era do mercado, que entende o sofrimento dos empobrecidos como antecipação do que viverão no imaginário Inferno, que insiste em não acabar. Nessa lógica, os pobres também jamais herdariam a salvação. Estamos destruindo a natureza, que sofre com a desertificação, o degelo exagerado, a diminuição das áreas úmidas e férteis etc. A terra está dando sinais de esgotamento. Que sabedoria é essa do ter para consumir? Quem ainda tem ouvidos, ouça!

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