12 Outubro 2024
Morte e superação nas telas, sem clichês. 'Até que a música pare' aborda o drama de um casal de idosos após a perda do filho. Com a luz outonal da serra gaúcha, equilibra os dilemas espirituais e o contexto sociopolítico de fake news, corrupção e uso oportunista da religião.
O artigo é de José Geraldo Couto, crítico de cinema, publicado por Blog do Cinema IMS e reproduzido por Outras Palavras, 10-10-2024.
Estão em cartaz nos cinemas dois filmes que, cada um à sua maneira, tratam do luto depois de uma perda dolorosa: o brasileiro 'Até que a música pare', de Cristiane Oliveira, e o francês 'Inverno em Paris', de Christophe Honoré. É preciso dizer desde logo que não se trata de obras depressivas, mas sim, com perdão do clichê, “de superação”.
Cotejar os dois, sem que isso implique hierarquia ou juízo de valor, pode ser instrutivo, pois são duas estratégias narrativas contrastantes, cada uma adequada à especificidade do seu objeto.
No caso brasileiro, um casal de idosos – a dona de casa Chiara (Cibele Tedesco) e o comerciante Alfredo (Hugo Lorensatti) – tenta lidar com a perda de um filho, Marco (Edu Seggabi), que era professor de filosofia e, ao que parece, não se entendia muito bem com o pai conservador.
No filme francês, é um garoto de 17 anos, Lucas (Paul Kircher), que busca aos trancos e barrancos se aprumar depois da morte repentina do pai (Christophe Honoré), com o qual mantinha um relacionamento marcado por reticências e não ditos.
Curiosamente, as duas mortes em questão foram causadas por acidentes automobilísticos. Mas vamos aos filmes.
Ambientado numa região da serra gaúcha em que descendentes de imigrantes falam o italiano, dialeto oriundo do norte da Itália, Até que a música pare é um filme feito em grande parte de silêncio e contemplação. Enquadramentos precisos e delicados, diálogos eivados de subentendidos, uma luz outonal que banha suavemente as cores em tom pastel (em especial o marrom da terra e da madeira, o verde das videiras, o azul claro de objetos domésticos) – tudo isso compõe uma atmosfera de melancolia, tristeza em surdina, busca de aceitação.
Nesse contexto, em que testemunhamos a relação de afeto áspero entre o casal de protagonistas, um dos subtemas mais importantes é o da religião. Numa região fortemente marcada pelo catolicismo, em que capelinhas de beira de estrada configuram quase uma via-crúcis, e um altarzinho de Nossa Senhora é transportado de casa em casa, um jovem italiano (Nicolas Vaporidis), noivo de uma moça local, vem trazer a dúvida, sob a forma de uma concepção budista do mundo.
Na cabeça e no coração de Chiara se debatem esses dois modos de consolação: a crença cristã na vida eterna no paraíso e a ideia de transmigração da alma (ou da consciência) a outras formas de vida, numa sucessão de existências marcada pelo karma.
Não é o caso aqui de detalhar o percurso (de resto silencioso) desse dilema da protagonista, mas de destacar o modo sutil como o filme equilibra o drama interior dos personagens e a notação da cultura viva da região (a lavoura, o vinho, o dialeto, a bocha, a escopa), sem descuidar de referências ao contexto sócio-político: a corrupção de cada dia, o uso da religião para fins políticos, as fake news, a apologia das armas, etc.
Uma pequena obra-prima, em suma, que se escora numa atuação sóbria e comovente de Cibele Tedesco, em sua estreia no cinema aos 64 anos.
Em contraste com a progressão cronológica e o ritmo compassado de 'Até que a música pare', o filme de Christophe Honoré espelha em sua própria forma a turbulência de uma alma adolescente atormentada. A par das angústias “naturais” diante das pulsões e transformações internas que não consegue compreender direito, Lucas tem que se confrontar com o vazio trazido pela morte do pai – e com tudo o que restou de não resolvido entre eles.
Daí provém a heterogeneidade da forma narrativa de 'Inverno em Paris': a descontinuidade cronológica, com os tempos se sobrepondo sem aviso prévio, as mudanças de tom e de gênero, o recurso frequente a uma instável câmera na mão, o discurso ocasional de personagens diretamente para a câmera.
No centro do tormento de Lucas está a ideia de que o pai nunca aceitou muito bem sua homossexualidade, embora não tenha jamais tocado no assunto. Entre o afeto incondicional da mãe (Juliette Binoche, excelente como sempre) e a lembrança excruciante do pai, entre a proteção da casa de província e a liberdade vertiginosa de Paris, o rapaz balança, cai, levanta, se aproxima do abismo.
Para um coração adolescente a vida está sempre perto do limite. É desse tumulto que o filme de Christophe Honoré busca dar conta, quase sempre com êxito. E a atuação do jovem Paul Kircher é não menos que fabulosa.
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A tristeza na surdina. Artigo de José Geraldo Couto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU