11 Outubro 2024
"Enfim, em um olhar crítico sobre os resultados do 1º Turno das Eleições/2024 mostramos a fragilidade da Democracia, em uma disputa desigual que fere a Democracia", escreve Frei Gilvander Moreira.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em filosofia pela UFPR; bacharel em teologia pelo ITESP/SP; mestre em exegese bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de teologia bíblica no Serviço de Animação Bíblica – SAB, em Belo Horizonte.
Respire fundo. Passado o 1º turno das Eleições Municipais no Brasil dia 06 de outubro de 2024, já eleitos/as 5.417 prefeitos/as e os/as vereadores/as de 5.568 Câmaras Municipais, restando apenas em 50 municípios com mais de 200 mil eleitores – 15 capitais – onde terão 2º turno dia 27 de outubro, é hora de fazermos avaliação crítica, autocrítica e tirarmos todas as lições da campanha eleitoral e dos seus resultados. Alegramo-nos com as vitórias de lideranças populares eleitas em partidos de esquerda, mas que serão minoria nas Câmaras Municipais ou minoria entre os/as prefeitos/as.
No geral, o centrão, a direita e a extrema direita venceram as eleições de 2024, pois controlarão mais de 80% das prefeituras e das Câmaras Municipais dos municípios. Esta base de poder é será a referência para a disputa de 2026 e pode alavancar a retomada do Poder Executivo Federal em 2026 e desde já pressionar mais ainda o Governo Lula para mais concessões além do muito já concedido em Governo de conciliação de classes, o que aniquila a efetivação de políticas de transformação estrutural, pois o centrão só tolera políticas compensatórias. A esquerda saiu vitoriosa em menos de 20% dos municípios brasileiros, sem vitória nas capitais, pelo menos até agora, e conquistando cidades do interior. Sabemos que o poder local nem sempre está de acordo com as orientações partidárias. As honrosas vitórias da esquerda não podem ocultar a realidade ampla e profunda do coronelismo político que segue se reproduzindo a todo vapor. O sol não pode ser tapado com a peneira.
Atualmente, no Brasil, há dois tipos de esquerda: a institucional neoliberal – “os moderados” -, que fica voltada para as eleições como centro de sua prática política, e a Esquerda Social, a que participa do processo eleitoral como um espaço de fazer a discussão com o povo e divulgar as propostas políticas socialistas. Esta Esquerda Social não abandona as lutas sociais – greves, ocupações, solidariedade internacional, lutas socioambientais e lutas por direito à terra, à moradia, entre outros direitos constitucionais.
A cada dois anos um semestre está sendo dedicado a campanha para eleições, seja municipal ou para governadores, Assembleia Legislativa, Congresso Nacional e Executivo Federal. Ou seja, em 25% do tempo as atenções e as preocupações da maior parte das lideranças se voltam para as eleições.
Para cada liderança de esquerda neoliberal eleita mais de 20 lideranças de lutas populares passam a integrar a assessoria do mandato. Isto causa um desfalque grande no meio da militância nas lutas por direitos, pois a orientação de “esquerda” da maioria dos mandatos é de reproduzir a conciliação de classes e a linha da pequena burguesia (sempre com medo de perder o pouco que tem) acabam inibindo muitas lutas sociais. No entanto, se os mandatos tidos como esquerda fossem efetivamente em maioria de esquerda, isso serviria para impulsionar as lutas, pois toda liderança da assessoria teria um pé na institucionalidade e outro pé cravado no meio do povo animando e fomentando lutas concretas por direitos. Somente os/as eleitos/as da Esquerda Social poderão implementar isso.
O atual sistema eleitoral está organizado em uma lógica e estrutura que privilegiam a reeleição de quem está no cargo, seja de prefeito/a ou vereador/a, ou governador/a, presidente e deputados/as ou senadores/as. Os parlamentares passaram a ter o direito de distribuir muito dinheiro público por meio de emendas parlamentares, do absurdo “orçamento secreto”, ou seja, administram parte do orçamento que deveria ser exclusividade do Poder Executivo. As emendas parlamentares e o grande Fundo Eleitoral que vão principalmente para os maiores partidos, os que reproduzem o status quo capitalista e opressor, atualizam o clientelismo político em currais eleitorais contemporâneos. Os novos candidatos enfrentam uma disputa em grande desigualdade de condições.
A história do Brasil mostra que, via de regra, quem vence as eleições é quem tem o maior poder econômico e/ou midiático, pois ao investir muitos recursos nas eleições acabam por “comprar” votos de muitas formas. Há grande distorção dos recursos para os partidos e também internamente nos partidos, brutal desigualdade. As melhores lideranças populares são, salvo exceções, os mais pobres e sem recursos econômicos. Assim, o poder econômico acaba determinando mais de 80% do resultado das eleições. Inclusive, medidas que na aparência limitaram o poder do capital, como o financiamento público de campanha, se tornou um fundo bilionário com distribuição capitaneada pelo centrão de dois em dois anos via Congresso Nacional e que impõe ainda maiores dificuldades à esquerda e em especial aos partidos que não contam com representação no Congresso Nacional.
Partidos revolucionários com programa popular não têm direito ao horário eleitoral gratuito na TV e rádio, não têm acesso ao fundo partidário e têm apenas uma ínfima migalha do fundo eleitoral. Ao invés de diminuir o número de partidos fisiológicos, está aumentando a força do centrão e da extrema-direita. Um exemplo: o PL, partido golpista e de orientação fascista, contou com quase 900 milhões de reais apenas de fundo eleitoral; de outro lado, a UP (Unidade Popular pelo Socialismo), partido mais novo do Brasil, que tem um programa e prática efetivamente de esquerda, contou com apenas 0,06% do fundo para ser usado nas eleições em todo o Brasil. Desta forma, a disputa que já era desigual, se tornou uma enorme injustiça que quebra com os princípios constitucionais de isonomia e de liberdade de organização partidária.
Para piorar a disputa, atualmente a predominância de igrejas fundamentalistas e moralistas tem se transformado em currais eleitorais, onde pastores, por interesses escusos, usando indevidamente o nome de Deus, abusando da fé das pessoas, acabam determinando o voto do seu rebanho.
As eleições criam a ideia de que estamos em uma democracia plena, pois há eleições de dois em dois anos. Ledo engano! A história demonstra que é mais fácil ganhar na loteria do que conseguir eleger uma maioria de candidatos éticos, justos e comprometidos com as reivindicações populares, o que viabilizaria fazer transformações reais na política brasileira. Mas o sistema é organizado para se criar a ilusão de que “na próxima eleição, mudaremos e será melhor!”, porém na realidade, parodiando a música Espinheira, de Duduca e Dalvan, “entra eleição e sai eleição e a vida do povo só vai piorando” e as mudanças estruturais para se superar o capitalismo com a brutal desigualdade social que ele fomenta vão sendo adiadas até o infinito.
As eleições criam a falsa ideia de que o poder político estaria separado do poder econômico. Falsa porque o poder econômico domina a produção, a vida social e as eleições. É necessário ampliar a democracia para além das eleições como previsto na Constituição Federal, realizando Plebiscitos Populares sobre questões que dizem respeito à vida do povo brasileiro, como: reestatização da mineradora Vale S/A, controle das multinacionais no nosso país, sobre onde e como se deve minerar, sobre medidas que garantam um ambiente saudável e sustentável...
Da forma como se estruturam os poderes políticos no país, a força e a vontade popular são na maior parte facilmente "conduzidas e induzidas" por marketing, por inteligência artificial, por fake news, havendo uma poderosa indústria midiática que direciona o voto popular com estratégias cada vez mais sedutoras. Como não há no país uma cultura de discussão política sobre os reais problemas sociais, como o domínio das mineradoras e a devastação ambiental, política agrária, população de rua e política habitacional, política de juros e endividamento da população, saúde, educação, assistência social, a população acaba iludida de que através da eleição de pessoas éticas e compromissadas, esses dilemas passarão a fazer parte da pauta de discussões.
É ilusória a crença segundo a qual será via eleições que conquistaremos a superação do capitalismo, esta brutal máquina de moer vidas. Com esta crença se foca na luta institucional, o que gera dependência no eleitorado que joga nas eleições a solução dos problemas gerados pela lógica do capitalismo. E, o/a eleitor/a cruza os braços após as eleições esperando que as pessoas eleitas possam representá-lo/la. Ledo engano!
Outra questão que contamina as eleições é o analfabetismo político, ou melhor, a falta de educação política do povo. O altíssimo índice de abstenção, votos em branco ou nulo apontam várias coisas: a alienação dos/as eleitores/as que não se sentem corresponsáveis na definição dos destinos da vida em sociedade e o repúdio ao atual tipo de política partidária existente no nosso país.
Para que as eleições não sejam de forma predominante um jogo de cartas marcadas, para termos eleições idôneas e éticas é necessário uma democrática e popular Reforma Política com regras justas e igualdade de poder econômico entre os/as candidatos/as e a realização de um intenso processo de educação política e de superação do analfabetismo político. Sem isso, as eleições, de fato, se configuram como uma grande ilusão que emperra as lutas populares e, pior, constitui-se em uma capa de legitimidade da democracia forma, representativa e burguesa.
Para que seja diferente, o centro das nossas ações deve ser as lutas populares e a participação nas eleições somente deve ser aceita se ajudar a fortalecê-las e impulsioná-las. A participação da verdadeira esquerda nas eleições deve ser pautada, portanto, pelo crescimento de impulsionamento das lutas por direitos, na propaganda permanente que outro mundo é possível e que este mundo é o Socialismo e isto tudo deve desembocar no crescimento do partido, das lideranças dos/as militantes e na sua formação política, caso contrário significará enxugar gelo e fortalecer a influência da burguesia sob a classe trabalhadora e o povo.
A história do Brasil demonstra que todos os direitos conquistados pelo povo não foram a partir de eleições e consequentemente pela institucionalidade da democracia formal, burguesa e representativa, mas foram conquistados com muita luta, suor e sangue, por meio de lutas coletivas concretas cada vez mais massivas. Tanto é que construímos nas lutas populares o lema “Só com lutas concretas e coletivas se conquistam direitos!”. Direito não se pede de joelho, mas se exige de pé, de cabeça erguida e nas lutas populares.
Uma liderança popular convivendo no meio do povo, organizando e animando lutas coletivas por direitos tem muito mais poder que um/a parlamentar que, sendo minoria, sempre perde nas votações no Poder Legislativo. Frei Betto aponta o caminho: “se requer um intenso e sistemático trabalho de educação política, já que toda a população sofre uma deseducação política profunda, capilar, seja pela cultura que se respira, seja pela família, escola, religião e, sobretudo, redes digitais.”
Enfim, em um olhar crítico sobre os resultados do 1º Turno das Eleições/2024 mostramos a fragilidade da Democracia, em uma disputa desigual que fere a Democracia. As mazelas da democracia burguesa vieram à tona. Não só no Brasil, mas, salvo exceções, em todos os países tidos como democráticos, nos quais o compromisso das eleições é garantir a reprodução do sistema capitalista com verniz de democracia. Quando se tem alguma ameaça ao sistema, as eleições são uma forma de superá-las trazendo de novo a ilusão para o povo de que vai resolver as injustiças históricas. O exemplo do Chile, do presidente socialista Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973: resolve-se com o assassinato do presidente que pretendia fazer mudanças estruturais. Ou no Brasil em 2016, derruba-se a presidenta Dilma Rousseff com um golpe parlamentar sem fundamentação jurídica para impor a destruição das políticas sociais vigentes.
“E agora, José?” Após a eleição é hora de voltar às bases, conviver no meio do povo, cativar o povo com compromisso de vida doada às causas dos injustiçados/as e em todos os cantos e recantos gestar organização do povo para as lutas populares necessárias e urgentes por direitos, que o que mais educa politicamente o povo.
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Eleições 2024: E agora, José? Artigo de Frei Gilvander Moreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU