30 Agosto 2024
"Apesar da regressão social, econômica e ambiental, podemos vislumbrar um caminho de esperança ao trazer de volta a memória de uma experiência vivida num passado recente: o ciclo das Prefeituras Democráticas e Populares. Esse ciclo aconteceu principalmente entre 1978 e o final dos anos 1990, mas alguns governos municipais extravasaram esse período", escreve Erminia Maricato, em artigo publicado por Folha de S.Paulo e enviado pela assessoria de comunicação do BrCidades para o Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Erminia Maricato é arquiteta e urbanista, professora emérita da FAU-USP, foi Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo, coordenou a criação do Ministério das Cidades e é membro da Rede BrCidades.
Vivemos num mundo em profunda mudança. Há um aumento da desigualdade e da concentração de riqueza em grande parte do globo acompanhados da hegemonia do capital financeiro improdutivo. Os ataques à democracia, ao Estado do bem-estar social, às políticas públicas, à ciência, aos direitos trabalhistas e aos direitos humanos, se somam a uma revolução nas comunicações que afeta a subjetividade, fortalece o individualismo e dissemina a desinformação. Como se isso não bastasse, o aquecimento do planeta nos coloca diante de uma crise ambiental sem precedentes.
Nesse contexto, o Brasil carrega suas especificidades: as marcas de mais de 300 anos de domínio colonial e mais de 350 anos de trabalho escravizado de africanos. Foi o país das Américas que mais recebeu africanos escravizados. Esse passado ainda se reflete nas profundas desigualdades social, econômica e territorial, que está entre as maiores do mundo. Ela é especialmente extravagante nas cidades, onde vivem mais de 85% da população, sendo que 30% do total em apenas dez Regiões Metropolitanas. É nelas onde as questões do cotidiano são mais sentidas: falta de saneamento básico, mobilidade que impõe custo alto e tempo excessivo nos transportes, violência decorrente da ausência do Estado e presença de grupos armados nas periferias, entre muitos outros problemas. Mas é na falta de acesso à moradia legal, adequada e bem localizada que reside o maior dos problemas.
A informalidade ou ilegalidade na produção das periferias, especialmente nas metrópoles, é mais regra do que exceção. Leis e planos avançados convivem com uma realidade atrasada, favorecendo um mercado imobiliário restrito à minoria da população e altamente especulativo. Expulsa das áreas valorizadas pelo mercado formal, sem acesso a uma política regular de moradia social, essa população ocupa áreas ambientalmente inadequadas ou lotes irregulares e constrói sua própria moradia. Essa forma de produção da habitação para as camadas de baixa renda é causa das frequentes tragédias ambientais relacionadas a enchentes e desmoronamentos.
Apesar da regressão social, econômica e ambiental, podemos vislumbrar um caminho de esperança ao trazer de volta a memória de uma experiência vivida num passado recente: o ciclo das Prefeituras Democráticas e Populares. Esse ciclo aconteceu principalmente entre 1978 e o final dos anos 1990, mas alguns governos municipais extravasaram esse período. Ele foi marcado por muita participação social nos bairros e propostas governamentais inovadoras, originais e adequadas à nossa realidade de país periférico do capitalismo.
Algumas das políticas públicas municipais desenvolvidas nesse período ganharam visibilidade mundial: Orçamento Participativo; mutirões habitacionais urbanização de favelas e regularização fundiária; corredores de ônibus, tarifas sociais e tarifa zero nos transportes públicos; centros de educação em tempo integral (CEUs, CIEPS); segurança alimentar e restaurantes populares; centros de cultura... O SUS começou a ser implementado nesse período. Foi quando se deu também a redemocratização do país e a conquista da Constituição Federal de 1988. Dentre os governos municipais do ciclo que ficaram conhecidos mundialmente podemos citar Luíza Erundina em São Paulo (1989), Olívio Dutra em Porto Alegre (1989), Patrus Ananias em Belo Horizonte (1993). A lista é longa e cobre todas as regiões do país.
Trata-se de recuperar a memória dessa experiência histórica fomentando a participação capilarizada nos bairros, escolas, praças e igrejas, em torno das dificuldades vividas no cotidiano e que nos são comuns. Nessa proximidade, tece-se o pertencimento, afirma-se a cultura, constrói-se a memória coletiva e luta-se contra as desigualdades sociais em suas múltiplas dimensões. A construção de um novo futuro para a infância e juventude, para a população negra, para as mulheres e para a sustentabilidade do ambiente construído ou natural passa pela organização local, cooperativa, solidária e popular.
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A democracia no Brasil e as eleições municipais. Artigo de Erminia Maricato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU