07 Setembro 2024
Falhamos em mostrar que o capitalismo não tem processos de enriquecimento replicáveis, e estamos falhando em mostrar que o mundo digital não é uma cópia da e nem uma receita para a vida analógica.
Escreve Fernando Horta, doutor em história das relações internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e consultor ONU/PNUD para transformações digitais, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 04-09-2024.
É comum o diagnóstico de que “estamos melhorando nas redes”, quando se trata de conversar com os brasileiros sobre política. De pessoas comuns abordadas nos ônibus ou nas filas de caixas de supermercado a líderes políticos a posição é a mesma. Existe uma percepção de que, se comparamos com o desempenho da esquerda e mesmo do Brasil todo, desde o junho de 2013 até agora, estamos mais aptos a lidar com os efeitos das questões digitais[i] sobre a política. Essa conclusão se baseia numa meia verdade, numa mentira e encerra um enorme perigo.
Quando Paulo Freire, em 1975, afirmava que “não bastava saber ler mecanicamente que ‘Eva viu a uva’”[ii] ele descortinava todo o mecanismo de letramento como algo muito além da capacidade de decodificar símbolos e sons em ideias e pensamentos. Ainda dentro do paradigma analógico, Paulo Freire já descrevia o letramento como um processo político de compreensão da realidade que não se encerrava na codificação e decodificação da linguagem escrita, mas atuava também na formação do pensamento crítico.
Letramento digital tem sentido análogo, agora voltado para um mundo em que a existência humana se dá também e concomitante em um mundo de informações codificadas por meio de máquinas que não são neutras, nem indiferentes. Compreender os processos, fluxos, partes, atores e sentidos dentro da política, sociedade e economia do século XXI é esbarrar sempre nos efeitos do processo de transformação digital cuja principal característica é sua assimetria ao longo do planeta e mesmo dentro das sociedades.
O digital não é um rebate do material, como uma cópia falsa de um original valioso. E, portanto, não basta rebater mecanicamente os processos e sentidos do mundo material analógico para o mundo digital e esperar que ele gere efeitos semelhantes. Paulo Freire, lá, dizia que era necessário “compreender a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir as uvas e quem lucra com esse trabalho” e hoje já é possível dizer que nem isso mais é suficiente.
É preciso explicar também por que os algoritmos e as redes apresentam para Eva uma uva e para João um tomate. Por que convencem a João que um abacaxi é igual a uma cebola e porque escondem da Eva, por exemplo, quem produz e quem consome os dados e os fluxos de informação?
Letramento digital não é, assim, fazer um pacto comercial com uma das big techs para oferecer a trabalhadores conhecimentos técnicos para “enviar emails” ou mesmo “usar códigos de PhP, python e etc.”. Letramento digital é falar sobre história, política, economia e sociedade a partir do ponto de vista da tecnologia e da informação. Significa discutir desinformação, o binômio mentira-verdade digital, os direitos e a liberdades no mundo digital, bem como compreender seus abusos e perceber as formas de produzir e se proteger nesse novo mundo.
O Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) afirma que cerca de 24% da população brasileira possui “competências digitais básicas”. O estudo é de 2020 ainda e, por “competência digital básica” se entende[iii]: (a) copiar ou mover arquivo ou pasta; (b) usar ferramenta de copiar e colar para duplicar ou mover informações dentro de um documento; (c) enviar e-mails com arquivos anexados; (d) transferir arquivos entre um computador e outros dispositivos.
Não é preciso ser nenhum expert em educação ou em ciência política para se perceber que nenhuma das “competências digitais” aqui listadas – e que fazem presença constante neste tipo de relatório – tem qualquer possibilidade de atingir os problemas que ameaçam nossa sociedade como a pandemia de desinformação, o deslocamento do regime de verdade das pessoas por efeitos digitais, ou mesmo as novidades sobre Inteligência artificial. De fato, nossos relatórios – balizados por um conhecimento ‘para o mercado’ ignoram totalmente os maiores problemas que pairam sobre as sociedades no século XXI.
É verdade que estamos tendo um “letramento digital à fórceps” na medida em que o mundo vai se transformando e nós vamos – aos solavancos – aprendendo a evitar os problemas que nos assombravam nos anos de 2013 ou 2018? É. O gráfico abaixo mostra uma certa “evolução” nas capacidades digitais medidas entre 2020 e 2023.
O gráfico valida inteiramente a percepção de que “estamos melhorando” na questão digital, embora a percepção seja uma meia verdade. Estamos melhorando naquilo que o “mercado” julga que são competências necessárias e suficientes para o uso acrítico das tecnologias. De preferência mantendo intactas tanto a fetichização da tecnologia[v] como o processo de colonialidade do saber.[vi] No fundo, não temos um letramento digital, mas uma adaptação à condição de subalternos no mundo das tecnologias digitais o que serve aos interesses do capitalismo que vende os produtos digitais e que lucra com o uso e a manutenção do clientelismo digital.
A impressão de que “estamos melhorando” nas redes, quando analisada mais a fundo, se mostra tributária de uma mentira. Primeiro, porque todo o processo de adaptação (quase uma busca pela sobrevivência) que estamos fazendo às transformações digitais apenas nos leva a perigos ainda maiores e para os quais estamos despreparados. Em recente pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) 4,5 pessoas são alvo de tentativas de golpes financeiras a cada hora no Brasil.[vii]
Isso equivale a dizer que oferecer “conectividade” sem um vigoroso trabalho de letramento digital pode tornar o Estado num cúmplice do crime digital já que ofereceu o meio para o criminoso chegasse à vítima sem a ela avisar ou prevenir. Conectividade sem letramento digital significa perda de soberania, quando se trata de país, ou aumento de exposição ao perigo, quando se trata de indivíduos. O mundo inteiro está restringindo o acesso digital aos grupos sociais que são menos capacitados no enfrentamento dos perigos digitais. E, não se trata só do movimento nas escolas,[viii] há analfabetos digitais entre as pessoas mais velhas e mais ricas das nossas sociedades.[ix]
Em segundo lugar, porque todas as iniciativas brasileiras estão ou fora de foco do problema ou fora da escala necessária para o que precisamos efetivamente fazer. Basta uma análise dos programas de “Estratégia Nacional de Governo Digital”, do programa de “Escolas conectadas” ou da “Estratégia Brasileira para transformação digital”[x] para se perceber que nenhuma fala e propõe seriamente um processo de letramento digital aos moldes críticos e se restringem, quando muito, a falar em “competência digitais básicas” e amplificam o problema em vez de resolvê-lo. Na prática, a população brasileira, em todas as faixas etárias, está sozinha enfrentando os perigos desse mundo digital. Exatamente como o “mercado” e as “big techs” efetivamente querem.[xi]
Essa falta de percepção sobre a amplitude da necessidade de letramento digital, bem como sobre a abrangência dos efeitos negativos do iletramento tem colocado o governo Lula praticamente incapaz de oferecer qualquer melhoria eficaz para a sociedade nestas questões.
O tempo perdido com programas ineficazes ou mesmo com a inatividade político-pedagógica vai cobrar um preço tremendamente alto em 2026. Não adianta tentar resolver a questão da desinformação apenas com normas, regras e punições às big techs. A judicialização de um problema social deve vir sempre como medida complementar (se bem que necessária) ao processo de adequação informacional e educacional. Em suma, é preciso letramento digital.
Circulou nessa semana um vídeo que deixou parte da população impressionada. A vice-presidente dos EUA (atual candidata pelo partido democrata) surge dando um beijo nos lábios de seu rival à presidência, Donald Trump. É um vídeo, com movimento, mudanças de feição e tudo mais – e não apenas uma foto. O atual pânico que as diversas aplicações que podem ter o conjunto de técnicas de manipulação de dados que hoje chamamos de “Inteligência artificial” se deve muito mais à nossa falta de letramento digital do que um perigo real.
A manipulação da imagem e de vídeos existe desde, pelo menos, os anos 50 e Hollywood se tornou uma indústria milionária fazendo isso. O que as pessoas não sabem é que o custo (preço) para se fazer essas manipulações hoje não estão mais disponíveis só para os grandes estúdios de filmes nos EUA, mas já disponíveis a qualquer jovem ao redor do mundo. Entender que hoje a informação verdadeira é paga, e a mentira (desinformação) nos chega de graça[xii] é parte deste letramento.
O enorme problema é que esse letramento forçado a que estamos sendo submetidos nos prepara a entendermos os golpes e perigos que já passamos, mas em nada nos prepara para os que estão por vir. Na prática, a experiência digital adquirida por meio diverso de um letramento conduzido por educadores e cientistas funciona como um carro com os faróis voltados para trás. Aquilo que ela consegue iluminar não nos habilita a compreender o que está por vir à frente.
Sem entender as raízes sociais, políticas, econômicas e culturais das transformações digitais e dos processos de colonialidade e desinformação, é impossível que estejamos preparados para resistir à mais tênue mudança no uso das ferramentas digitais mais ali na frente. O estrago que Pablo Marçal está fazendo, em 2024, na campanha eleitoral para a prefeitura de São Paulo mostra isso.
Falhamos em mostrar que o capitalismo não tem processos de enriquecimento replicáveis, e estamos falhando em mostrar que o mundo digital não é uma cópia da e nem uma receita para a vida analógica. Aprendemos sobre o que já passou e em nada há de preparo para o que está por vir.
[i] Uso um termo propositalmente aberto aqui. “Questões digitais” envolvem tanto o desenvolvimento das Tecnologias de Informação é Comunicação (TICs), quando os diversos usos e mal usos delas dentro dos espaços sócio-políticos que compartilhamos.
[ii] https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/dicionario-jornalistico/pedagogia-do-oprimido
[iii] https://sei.anatel.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?8-74Kn1tDR89f1Q7RjX8EYU46IzCFD26Q9Xx5QNDbqbIGuBQvTrV78dFpuB7IKQqoNrnZCOZ3jtE5kL3VAa5556cOPI5SUdQPc8loctKVzQanQNRvcIh1XFEKYys8Yfr, p. 6
[iv] https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202406/estudo-mostra-que-apenas-30-da-populacao-tem-habilidades-digitais-basicas
[v] Fetichização da tecnologia é a crença de que a tecnologia tem condição, por si só, de resolver problemas sociais, políticos e econômicos. Isso faz, por exemplo, com que juízes achem que uma determinada ferramenta digital poderá “melhorar a prestação jurisdicional” sem necessariamente se dar conta do rapto de soberania que isso implica. https://www.migalhas.com.br/quentes/395504/barroso-pede-a-big-techs-criacao-de-chatgpt-para-uso-juridico
[vi] Colonialidade do saber é a percepção de que uma determinada tecnologia é inacessível a determinados extratos sociais ou mesmo países e que a eles resta apenas operar a tecnologia sem compreender como funciona ou quem com ela se beneficia. É o equivalente aos cursos de formação para operação de máquinas que se dava no Brasil nos anos 60 e 70 e que hoje se sabe são insuficientes para que o país saia da condição de consumidor das tecnologias para se transformar em produtor das tecnologias. https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/servicos/trabalhador/qualificacao-profissional/caminho-digital.
[vii] https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/datafolha-pais-tem-mais-de-45-mil-tentativas-de-golpe-financeiro-por-hora/
[viii] https://revistaeducacao.com.br/2023/07/18/uso-de-celulares-nas-escolas/
[ix] O Uruguai é o país da América Latina com maiores avanços no reconhecimento que o iletramento digital não guarda correlação com renda ou tempo de estudo e, portanto, desenvolveu programas para letramento para pessoas com mais de 60 anos que inclusive se tornam produtivas economicamente a partir destas novas tecnologias, criando o termo “economia prateada”. https://seniortechventures.com/economia-prateada-na-america-latina/
[x] https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/transformacaodigital/estrategia-digital; https://www.gov.br/governodigital/pt-br/estrategias-e-governanca-digital/estrategianacional/estrategia-nacional-de-governo-digital/; https://www.gov.br/mec/pt-br/escolas-conectadas
[xi] Um dos exemplos mais dramáticos da falta de letramento digital e de como esse assunto impacta a sociedade como um todo é o efeito deletério que as “bets” e empresas de apostas têm hoje na vida das classes mais baixas e médias. Enquanto o governo tem uma postura pragmática e olha apenas para a regulação (deixando o letramento de lado), a sociedade perde efetivamente dinheiro e qualidade de vida. https://einvestidor.estadao.com.br/comportamento/vicio-em-apostas-online-dividas-depressao/
[xii] Basta que se veja que as boas empresas de comunicação do Brasil todas mantém “paywall” que evita mesmo que você tente checar uma informação, enquanto que, ao mesmo tempo, as grandes operadoras de celular e internet oferecem “acesso ao facebook, twitter, whatsapp e assemelhados de forma gratuita” sem que o usuário gaste seu plano de dados. Na prática, o mercado empurra as pessoas sem condições financeiras para as fontes de desinformação, e as bigtechs agradecem.
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Letramento digital a fórceps. Artigo de Fernando Horta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU