22 Abril 2022
Hoje, existe um terrível “pânico” em buscar a si mesmo. As pessoas vivem atordoadas e deixam cada vez menos espaço para a reflexão. Para superar essa “cultura excessiva da exterioridade, cujo símbolo mais perfeito é a Internet e sua expressão mais frequente é a necessidade irreprimível de se sentir conectado”, o padre e escritor espanhol Pablo d’Ors propõe descobrir a riqueza da interioridade. Em um mundo em xeque pela agitação e o barulho externo, defende o silêncio e revaloriza o caminho da meditação e contemplação.
“A meditação é uma escola para ser. Como ser é muito difícil para nós e causa medo, vivemos com sucedâneos, como ter, acumular, aparentar. Quanto mais você é, menos precisa ter e aparentar”, disse em entrevista ao jornal La Nación, durante sua visita a Buenos Aires, com o propósito de compartilhar a experiência dos Amigos do Deserto, uma rede que estabeleceu a missão de aprofundar e difundir a tradição contemplativa.
Nascido em Madri, em 1º de julho de 1963, em uma família de artistas, Pablo d’Ors estudou em Nova York, Roma, Praga e Viena, e foi ordenado sacerdote em 1991. Tem 58 anos e percorreu vários países, mas seu principal foco de interesse é o mundo interior e o silêncio, principalmente a partir de seu encontro com o teólogo jesuíta Franz Jalics (1927-2021), um de seus mestres na arte da meditação.
Nos últimos vinte anos, d’Ors desenvolveu uma carreira como romancista, com títulos que exploram o tema da contemplação, com um sucesso de vendas. Seus principais livros são Biografia do silêncio, que já superou trinta edições, O amigo do deserto, El olvido de sí e Sendino se muere, um testemunho sobre a dor humana.
Convencido de que “o excesso de conectividade gera seres que não conhecem a si mesmos”, a proposta de d’Ors não é “dinamitar a sociedade atual, mas criar recursos pessoais para que possamos conviver serena e harmoniosamente com a realidade”. Inclusive, reconhece que “a própria Igreja Católica e muitas comunidades cristãs relegaram o papel do silêncio e da contemplação”. Aponta isso como “o grande déficit da Igreja”.
A entrevista é de Mariano De Vedia, publicada por La Nación, 16-04-2022. A tradução é do Cepat.
Por que surgiu e em que consiste ‘Amigos do Deserto’?
Cada vez mais as pessoas estão conscientes da necessidade do silêncio e da meditação como forma de enfrentar a agitação do mundo. Amigos do Deserto é uma associação cujo objetivo é o aprofundamento e difusão da tradição contemplativa. Partimos do fato de que a necessidade contemporânea fundamental é o silêncio. Uma vez atendidas as necessidades básicas essenciais, o grande desafio é enfrentar o barulho.
Amigos do Deserto surge de forma semelhante à de Alcoólicos Anônimos, que nasceu para amenizar o problema do álcool. Nossa associação surge para amenizar o problema do barulho, da dispersão. Oferecemos retiros e seminários, períodos intensivos para aprender a prática da meditação e do silêncio interior, para que as pessoas tenham um apoio em seu exercício de meditação.
Com tanta agitação no mundo, as pessoas estão conscientes da necessidade do silêncio?
Cada vez mais. O silêncio é uma nostalgia, é um pânico e é uma revelação. Muitos de nós sentimos a necessidade de parar, de ouvir, de não viver num frenesi permanente. Quando adentramos no silêncio, sentimos nostalgia e pânico, porque o silêncio favorece o encontro com si mesmo e quando olhamos para o que há não gostamos. Se você permanece quieto, pouco a pouco vai descobrindo que nem tudo é barulho, dispersão e escuridão, mas que também somos pessoas iluminadas.
As pessoas têm medo de um encontro com elas mesmas?
Pânico. O que mais nos provoca medo de tudo somos nós mesmos. Por isso criamos uma cultura da exterioridade, permanentemente voltados para fora. O símbolo perfeito é a internet, que nos mantém conectados com o exterior. E é por isso que essa prática de meditação é tão importante hoje, porque é um contraponto que fomenta a interioridade, frente a essa cultura da exterioridade. Estamos bem quando harmonizamos o interior e o exterior. Se ficarmos apenas do lado de fora, viveremos na superfície.
No mundo moderno, permanecer conectado com todos, instantaneamente, é visto como um valor positivo. É prejudicial?
O excesso de conectividade gera seres que não conhecem a si mesmos e também não se conectam a si mesmos. O que proponho não é dinamitar esta sociedade, mas criar recursos pessoais para que possamos conviver serena e harmoniosamente com a realidade. Uma viagem de ida e volta, saindo e entrando. O silêncio é o som da escuta do mundo. Não defendo a fuga do mundo, mesmo que queiramos ser herdeiros modestos dos pais e mães do deserto, uma das primeiras correntes de espiritualidade do cristianismo.
Para isso, precisamos nos retirar para o deserto, isolando-nos daquilo que nos cerca?
O deserto é uma metáfora da interioridade. Quando você se senta para meditar, precisa se retirar de sua atividade cotidiana, mesmo que seja por vinte minutos, para se encontrar com si mesmo. E além desse “pequeno retiro” diário, também é bom se retirar uma ou duas vezes por ano, por dois ou três dias, para não viver sempre na ação. O problema é o ativismo. O grande desafio é a contemplação, aprender a olhar, a não ter essa mentalidade hiperprodutiva, esse afã de rendimento.
É bom saber descansar e saber contemplar. Se aprendermos a ficar quietos e atuar lentamente, trilharemos um caminho para a plenitude. Costumamos agir com pressa porque nossa atenção está focada no que vem na sequência. Assim, a vida se torna uma corrida de obstáculos. A lentidão nos convida a nos concentrar naquilo em que precisamos estar. Qualquer atividade feita com atenção constrói a vida interior.
A meditação precisa ser realizada sempre de forma individual?
Nós a concebemos primeiro como um exercício individual e, para reforçar essa prática, oferecemos seminários de silêncio, como grupos de apoio. A meditação é uma viagem ao centro de nós mesmos. A meditação, como a arte, nasce da entrega, não do esforço. Enquanto o esforço coloca em atividade a vontade e a razão, a entrega compreende a liberdade e a intuição. O interessante não é simplesmente meditar, mas fazer de sua vida uma meditação.
Que benefícios você percebe em pessoas que realizam de forma sistemática práticas de meditação?
Os benefícios são muito grandes e muito claros. O fundamental é uma “descentramento”, não se vê o mundo a partir de uma perspectiva própria, mas a partir da perspectiva dos outros. O principal fruto é que se vive de uma forma menos egocêntrica. Maior alegria e menos irascibilidade. Não sabemos lidar com as emoções porque somos muito reativos. O silêncio é o que dá qualidade humana às relações e à vida.
A ideia de se retirar e ficar sozinho não tem o propósito de satisfazer necessidades individuais?
Frequentemente, nós, meditadores, somos acusados de não pensar nos outros e pensar exclusivamente em nós. Claro, é uma acusação feita por aqueles que não meditam. Muitas vezes, estar com os outros é uma fuga de nós mesmos. Os meditadores procuram compartilhar o que vai descobrindo.
O cristianismo se constrói com o mandato “Ame o próximo como a ti mesmo”. Às vezes, ficamos com o “ame o próximo” e esquecemos do “como a ti mesmo”. Ninguém pode dar o que não tem. Não podemos amar o próximo, se não nos amamos. Por outro lado, a melhor escola para saber estar com os outros é aprender a estar sós.
As comunidades religiosas, inclusive a Igreja Católica, relegaram o papel da contemplação e do silêncio?
É evidente. É o grande déficit da Igreja e isso pode ser demonstrado empiricamente. Se alguém deseja ser padre, certamente dedicará mais tempo à preparação intelectual do que à oração. A Igreja se estruturou a partir do pensamento e da ação. A teologia e a missão, a catequese, a pastoral. Não sei até que ponto existe uma vida de oração intensa, profunda e organizada na maior parte das comunidades cristãs.
A Igreja perde espaço?
A Igreja no Ocidente está perdendo espaço de forma alarmante. Eu vejo isso como uma boa notícia, porque significa que um novo cristianismo está sendo gestado, uma maneira diferente, mais autêntica, mais profunda. É necessário purificar formas que foram equivocadas.
Como analisa a figura do Papa Francisco?
Ele insiste mais no necessitado, nos pobres. É um Papa com uma orientação mais social, o que não quer dizer que não seja uma pessoa com forte conexão espiritual. Tive a sorte de conhecer e conversar pessoalmente com ele e é um homem com uma poderosa irradiação espiritual. É um homem de oração.
Como o mundo recebe o convite de Francisco para rezar pela paz, conforme propôs ao consagrar a Rússia e a Ucrânia ao coração de Maria?
É uma boa pergunta... Seria necessário perguntar ao mundo, não a Pablo d’Ors. A comunidade católica recebe o convite muito bem, porque é um imperativo ético básico ser sensíveis às dores do mundo. A maior parte da humanidade o recebe com certa indiferença. Também é verdade que Francisco é mais um papa para os de fora do que para os de dentro. Ao menos na Espanha e na Europa, é uma figura que talvez caia bem no mundo agnóstico, não crente.
Como é possível viver da melhor forma possível nesta sociedade tão acelerada do século XXI, que apresenta tantas demandas e poucas certezas?
A proposta que viemos trazer à Argentina não é anedótica, mas muito substancial. Acredito firmemente que está nascendo um novo paradigma, uma chave para entender as coisas. Atualmente, estamos no paradigma da razão e da técnica e, embora por enquanto só aconteça em grupos minoritários, aos poucos nos abrimos para um paradigma que incluirá a razão, mas também a transcenderá, e que poderá ser construído a partir da palavra consciência. Ser consciente consiste em contemplar os pensamentos. Sem silêncio, sem contemplação, esse novo paradigma não pode nascer.
Em algumas décadas, a forma de educar e viver será muito diferente. Muitos grupos são pioneiros de uma nova forma de viver. O teólogo católico Karl Rahner dizia que “o século 21 será místico ou não será”. Não é apenas uma questão de higiene psicológica para resistir à ansiedade, depressão ou o frenesi da vida contemporânea, mas é uma abordagem global, uma forma de entender o ser humano.
Enxerga isso como uma prática crescente?
Há cada vez mais interesse pelo mundo da meditação e menos preconceitos sobre a espiritualidade. O prestígio da espiritualidade foi construído sobre o desprestígio da religião. Muitas pessoas estão se desprendendo de uma imagem muito mítica e infantil do religioso e se abrem a uma conexão com as coisas mais profundas.
A prática da espiritualidade é mais natural nas culturas orientais?
Eu acredito que não. Construímos um mito do Oriente. No mundo zen se diz que “se deseja encontrar um grupo de meditação ou um grande mestre, não vá ao Japão ou à Índia”. Estamos em um momento de síntese, bebendo da sabedoria das duas tradições, oriental e ocidental. A verdade não é uma posse, mas uma busca, vai sendo gestada no diálogo e no silêncio, e é um parto. Precisamos de todos, não podemos excluir ninguém.
Existe uma tendência em relegar o religioso e o espiritual à esfera do privado?
Quando Gandhi foi questionado a esse respeito, respondeu: “Quem diz que religião e política não têm nada a ver uma com a outra, não sabe o que é religião e não sabe o que é política”. Embora no mundo contemporâneo tenha havido uma tentativa de privatização do religioso, o religioso é público, assim como qualquer outra dimensão do ser humano. Não somos só indivíduos, mas seres sociais.
A prática da meditação possui pontos em comum com os conselhos da autoajuda?
Existe algum vínculo, porque muitas pessoas que recorrem aos livros de autoajuda buscam as práticas de meditação. A chamada “alta cultura” condena a autoajuda como se fosse algo menor, ingênuo. O que deve ser avaliado é a cultura. A autoajuda responde a um desejo de encontrar a verdadeira cultura, o cultivo de si mesmo, como agir para viver em maior plenitude. Ao contrário, a cultura se torna uma busca da autossatisfação e não contribui para a felicidade, a busca do mais pleno.
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“A conectividade excessiva gera seres que não conhecem a si mesmos”. Entrevista com Pablo d’Ors - Instituto Humanitas Unisinos - IHU