02 Setembro 2024
A ultradireita trava uma batalha mais profunda do que a eleitoral: busca a formação de outras subjetividades. Mais que ressaca conservadora aos governos progressistas, ela viu no individualismo neoliberal uma forma de catapultar o absurdo político.
O artigo é de Luís Felipe Machado de Genaro, historiador e professor, mestre em História pela Universidade Federal do Paraná, publicado por Outras Palavras, 30-08-2024.
Frente as encruzilhadas e revezes históricos que acompanhamos na América Latina dos últimos tempos, há debates e discussões sobre dilemas inúmeros, sejam eles políticos, sociais, culturais ou econômicos. No entanto, inertes perante o neofascismo que avança a passos largos, parece que não conseguimos dominar e propor qualquer argumento ou diálogo possível, muito menos enfrentá-lo com a clareza e coerência como deveríamos.
Algo está se passando nos poros das sociedades latino-americanas para além dos acontecimentos triviais do cotidiano. Um bafio arcaico do passado está unindo-se às ruínas fabricadas no presente.
A América Latina não está isolada do restante do mundo, tendo em vista que a ameaça real e presente do fascismo – ou do neofascismo – alavancada pela extrema direita global atinge não apenas o Sul, mas a Europa e os Estados Unidos.
O fenômeno, para além da desestruturação do Estado de bem-estar social (ou o que resta dele), do ataque frontal contra o que poderíamos elencar como “resquícios civilizatórios” e os mais básicos direitos humanos, atrela-se ao universo virtual das redes sociais e a sua toxidade sem fronteiras, alterando a maneira como nos portamos, reagimos, atentamos e dialogamos com a realidade concreta – e, principalmente, com os outros sujeitos que dela fazem parte.
Quando nos debruçamos no “sujeito latino-americano” contemporâneo, as questões que precisamos nos fazer são as seguinte: com o advento do neoliberalismo, nós latino-americanos, transformados em “laboratório” ainda na década de 1970 através de sua implementação no Chile de Pinochet, do rastro de sangue deixado pelas ditaduras militares e a implementação do Consenso de Washington nas estruturas burocráticas e econômicas região, teríamos nos tornamos sujeitos mais apáticos, brutos, e por vezes mais reativos e violentos do que supúnhamos? Não obstante, a emersão do fascismo como movimento popular em terras tropicais (hibernado por algumas décadas) estaria ganhando contornos mais brutais que no restante do mundo?
Problemáticas como essas precisam ser levantadas quando nos voltamos às nossas dinâmicas e conflitos históricos. Olhar para trás como forma de compreender, minimamente, os dias que correm é urgente.
Neste continente foram erigidas estruturas arcaicas de poder, controle e vigilância advindas do processo de colonização, da escravização de negros africanos e do genocídio permanente dos povos originários das mais diferentes regiões, somados as tentativas de modernização conservadora – levadas a cabo por regimes militares autoritários –, além do desenvolvimento desenfreado e a exploração contínua e brutal dos recursos naturais.
Esses processos não deixariam o sujeito latino-americano ileso, aquém de modificações profundas em suas subjetividades, imaginários e experiências. Para além dos sedimentos passados que se acumulam, de nossas heranças coletivas traumáticas (muitas delas não resolvidas), quatro regressões brutais no presente combinam-se, modificando o sujeito contemporâneo, e em especial, o latino-americano.
Na esteira do neoliberalismo da periferia, da plataformização e precarização da vida, da captura dos sentidos e reações pela virtualidade da tela, instrumentalizados pela extrema direita, estaríamos experimentando uma profunda dessensibilização dos sujeitos, de suas afetações sobre os acontecimentos que se desenrolam no mundo e na sua relação com o “outro”. Uma apatia generalizada que, vez ou outra, emerge em explosões, atos e movimentos extremos.
Se o fenômeno histórico – e inédito – da ‘onda progressista latino-americana’ (1998-2016) avançou na resolução de dilemas específicos de nossas sociedades, realizando políticas de redistribuição, ampliação de espaços de cidadania e uma maior integração econômica das classes e grupos subalternos, o que ocorre com o debacle deste fenômeno é a emergência de figuras e movimentos vinculados à extrema direita mundial após a dita ‘ressaca conservadora’ – momento em que personagens ainda ligados à direita oligárquica e rentista ‘preparam o terreno’ para o que estaria por vir.
Esse fracasso evidencia a crise de representatividade nas democracias liberais e seus pactos conciliatórios. As dificuldades de se estabelecer um diálogo, uma troca, argumentações e pactos políticos, hoje, dominam o cenário latino-americano.
Poderíamos dizer que a característica primeira das lideranças progressistas eram o diálogo e a argumentação, e com elas a construção de “pontes”, a fiação de pactos e redes de comunicação – inclusive com setores conservadores e reacionários quando necessário. Dessa conjuntura controversa e paradoxal brotaram as crises contemporâneas que acentuam-se no continente. Como previsto, não haveria mais a possibilidade de uma repetição histórica – uma ‘segunda onda progressista’ – por mais que almejem ideólogos e politicólogos de esquerda.
No entanto, algo se move nos ‘poros sociais’ da América Latina.
Se existe um projeto estético e político do neofascismo – e ele existe! –, o qual seria a construção de uma “máquina paranoica da gestão do medo”, como conceituou Vladimir Safatle, ele estaria, hoje, se fortalecendo. Em seu âmago a fabricação de uma “outra cultura”, muito além do esvaziamento dos Estados nacionais (apelando para o nacionalismo e o militarismo arcaicos), do obscurantismo intelectual e da precarização do cotidiano: há no horizonte projetos fascistoides que travarão uma batalha mais profunda, aquela pela formação de nossas sensibilidades, da maneira como sentimos o mundo e as pessoas.
Como se não bastasse, estamos anestesiados pela repetição das telas, dos fatos políticos que não se alteram, não modificam o que deveriam, da falta de projetos e construções utópicas de outros futuros, etc., ao mesmo tempo que estamos nos constituindo como “seres bélicos” dentro de um presente perpétuo de emergência. As sociedades latino-americanas estão fraturadas por uma polarização crescente. O que não poderia deixar de ser.
Safatle, ao comentar sobre a ascensão dos movimentos neofascistas, explica que a mobilização social que incitam a partir de uma estética militar, a estética da guerra de todos contra todos, é de total indiferença perante o outro – o outro fragilizado, marginalizado – a “outra cultura” que ganha terreno de maneira irrefreável por uma simples, mas não simplória razão: o espectro político e ideológico que produziria o contra-ataque – as esquerdas – não está apenas na defensiva, mas na completa apatia, confusão e desorganização generalizada.
Como diz Safatle, quando fala sobre o “poder”: “as sociedades se reproduzem a partir da produção do que é possível ou não sentir”. Nessa esteira, quando pensamos a partir do continente latino-americano, o filósofo escreve que “pensar a América Latina é algo que exige saber operar com paradoxos e contradições sem superação” (Safatle, p. 18). Por isso o neofascismo latino-americano abraça a sua herança oligárquico-latifundiária, extrativista e dependente, historicamente violenta, com o intuito não apenas de regredir, “conservar” poderes e privilégios de classe, raça e gênero, mas no intuito programático de aprofundá-las de maneira com que parcelas significativas da população pereçam. Sejam extintas.
O que me parece é que a dessensibilização que formata os sujeitos contemporâneos promoverá a completa incapacidade de sentirmos a realização deste absurdo ético, político e moral. Nessa guerra de todos contra todos, de paranoia e ressentimento constantes, milhares perecerão mental e fisicamente.
Aprofundadas pelo individualismo crescente e a implosão do tempo social provocadas, a ruptura das relações sociais, do ato dialógico, do simples fato de colocar-se na situação alheia – de dores, sofrimento, miséria, fome, etc. – deixariam então de existir.
Não acredito ser uma pretensão ou ato de soberba ou revisão comungar das ideias de Florestan Fernandes a respeito do fascismo latino-americano, sim, mas ir adiante, inseri-lo em sua temporalidade e, com ato político e intelectual, avançar na interpretação de nossa realidade a partir dos instrumentos teóricos que estabeleceu em seus textos do início da década de 1970.
Quando Florestan escreve que na América Latina, o “baixo nível de autonomia da ordem política impede, em toda parte, a eclosão de formas extremas de fascismo”, como aquelas observadas na Alemanha e na Itália da década de 1930, não relega a premissa de que neste território, e nessa mesma condição “se acha a raiz da extrema difusão de traços e tendências fascistoides e especificamente fascistas, em diferentes tipos de composição de poder” (p.36) – as correntes advindas da Argentina de Milei e do bolsonarismo, no Brasil, evidenciam isso.
As novas formas de sujeição social (as transformações ocorridas na psique, nos sentidos, e por conseguinte, nas ações e discursos dos indivíduos) estão na forma e no conteúdo dessas tendências fascistoides descritas pelo sociólogo. Se, para Florestan, o fascismo latino-americano abraça o “desenvolvimento com segurança” (na década de 1970), poderíamos dizer que essa perspectiva permaneceu, por certo, acrescida com a formulação de Safatle, como uma “máquina de inscrição social do desencanto” (Safatle, p. 34) – e do medo, acrescentaria. As questões que ficam, e que sabemos as respostas, é desenvolvimento e segurança para quem, quais classes e sujeitos…
Não pretendo evocar respostas e caminhos para seguirmos na direção contrária, na “utopia contrária” desse continente sobre a qual discursou o romancista colombiano García Márquez na década de 1980, no entanto, tomarmos consciência do que se passa em nossos dias parece ser um bom começo. Sobre essa utopia que parece tão distante, achincalhada perante a barbárie, o autor concluiu ser ela “uma nova e avassaladora utopia da vida, onde ninguém será capaz de decidir como os outros morrerão, onde o amor provará que a verdade e a felicidade serão possíveis”.
Por certo não sabemos como construí-la, mas sabemos que precisamos agir, e rápido, pois a distopia neofascista avança, consumindo tudo e a todos.
Ciclo Mutações. Palestra de Vladimir Safatle. Casa Rui Barbosa, Rio de Janeiro, Ago/2024.
MÁRQUEZ, Gabriel García. A solidão da América Latina. RevIU – Vol. 2, Num. 1, p. 12-14, 2014.
FERNANDES, Florestan. Poder e Contrapoder na América Latina. São Paulo, Ed. Expressão popular, 2015.
SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo, ed. Três Estrelas, 2017.
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América Latina: dessensibilização diante da barbárie? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU