31 Agosto 2024
"É assim que o tom dominante da Amazônia na temporada das chuvas, o verde, é substituído pelas marcas da saison que agora começa: o vermelho do sangue e o amarelo do fogo", escreve Lúcio Flávio Pinto, em artigo publicado por Amazônia Real, 29-08-2024.
Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966, sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973.
(Este texto é de agosto de 2001, exatamente 23 anos atrás. Substancialmente, a situação relatada não mudou)
Há pelo menos quatro décadas [desde os anos 1960, portanto] o verão é marcado, na Amazônia, por uma safra de fogo e de sangue. A estiagem serve de código para o pioneiro avançar sobre a mata, abrindo novas clareiras, penetrando sobre territórios até então dominados pela floresta. Mas a constituição de um imóvel rural na frente pioneira não é um ato pacífico, nem um procedimento meramente legal, um negócio. Sempre envolve um componente de incerteza e de tensão. Costuma gerar confrontos e mortes. A região que deveria ser o éden fundiário, oferecendo um lote para cada um dos imigrantes que penetrasse em suas divisas, tornou-se a campeã brasileira de conflitos.
A uma média de 15 mil quilômetros quadrados ao ano, o desmatamento já se espalhou por 700 mil quilômetros quadrados, consideradas todas as formas de alteração e degradação do ambiente original da floresta. É o equivalente a 17% da Amazônia Legal e quase 10% do território nacional. Aproximadamente 15% dessa área são pastagens, plantios, cultivos agrícolas e outras formas convencionais de uso do solo que se degradaram e foram abandonados. Esses 10 milhões de hectares seriam suficientes para fazer a Amazônia escalar posições nos indicadores de produção, alimentando-se a si, ao país e ainda exportando.
Desde algum tempo atrás a “recuperação de áreas degradadas” ocupa lugar cativo no rol dos estribilhos e jargões que são repetidos ad nauseam, sem outro sentido que não o experimental, ou acadêmico. Basta raciocinar com um pouco de bom senso para chegar à conclusão que é muito mais saudável reaproveitar a área já desmatada do que pôr abaixo novas áreas ainda florestadas. Quando o enunciado é levado à planilha de cálculos do pioneiro, porém, é que o lógico se distancia do real. O bom senso raramente é bem-vindo nos arraiais amazônicos.
Como regra, sai mais barato desmatar uma área virgem do que criar condições de novo aproveitamento econômico para uma área que se degradou por mau uso ou baixa fertilidade natural do solo. Essa regra não admite exceções quando a primeira atividade foi implantada com a colaboração do Estado, numa forma mais ou menos generosa, conforme o padrão da relação e da época.
Os fazendeiros que colocaram a mata abaixo para permitir o “amansamento” da terra amazônica com base na criação do boi, a forma mais barata que se usa no Brasil, puderam receber do poder público até 75% do capital requerido pelo seu empreendimento – propriedade privada, naturalmente. Foi a parceria que prevaleceu entre 1967 e 1982, quando a Sudam destinou a maior parte dos recursos dos incentivos fiscais para apoiar a expansão da pecuária de corte na região.
Colocando no seu negócio (e quando chegava a colocar) apenas um quarto do volume do investimento, o empreendedor sentia pouco (se sentia) o peso do risco de se instalar numa área desconhecida. O método prevalecente era o ensaio e erro. Alguns milhões de hectares são pastos malformados ou mal manejados. Neles, a juquira se infiltrou, sufocando o capim com a praga, ou onde a erosão e a compactação do solo impossibilitaram a continuidade do cultivo. Por conta do “risco amazônico”, o dinheiro do governo não retornou e as áreas sujas foram abandonadas. O que não faltava era terra pela frente nessa “corrida ao oeste” movida à base de especulação.
Com o avanço do conhecimento e um melhor acompanhamento da expansão das frentes econômicas, o financiamento estatal ao pioneiro foi murchando. Não exatamente por uma diretriz política, mas principalmente por escassez de recursos. O Estado ainda aplica em pesquisas, assistência técnica e difusão, mas acabou a era de colaboração financeira na base de três reais do poder público para cada real do capitalista (sem capital). Como, então, já sem essa relação original, recuperar as áreas que se degradaram exatamente quando (e porque) do erário jorravam verbas para a atividade produtiva?
O desafio é maior exatamente porque o restabelecimento da capacidade de suporte das áreas mal-usadas na Amazônia exige investimento muito mais elevado. Uma terra que perdeu a sua cobertura vegetal original precisará ficar em repouso por largo tempo até que a natureza cicatrize as feridas e restabeleça um ciclo de reciclagem de nutrientes parecido com o que antes funcionava. Para antecipar esse tempo natural, que ainda não tem escala econômica, o homem precisa de muito dinheiro para aplicar em ciência e tecnologia. O que mais falta nessa etapa é justamente o conhecimento sobre a natureza.
Definir um ponto de equilíbrio entre as necessidades do homem e as da natureza continua a ser é uma utopia na Amazônia. A presunção de que a região é uma fronteira sem fim e que sempre haverá uma terra virgem mais à frente do ponto em que estancou a frente econômica, adia para depois o momento desse ajuste. Uma proporção de desmatamento que, sendo ínfima no início da década de 1970 (menos de 1%), já é assustadora hoje (17%), é o produto dessa transferência de responsabilidades, dessa recusa à contemporaneidade.
As sequelas na natureza, em vários pontos da região, já se tornaram irreversíveis. Quem mora ao longo da estrada que liga a Belém-Brasília a Marabá, no sudeste do Pará, enfrenta um problema que se apresenta tão pouco amazônico: a falta de água. Os poços artesianos já precisam ser de grandes profundidades para alcançar os lençóis freáticos. Cursos d’água simplesmente evaporaram. A temperatura do solo é cada vez mais quente. As nuvens estão migrando do céu dessa área e, com elas, as chuvas. As temporadas de chuvas e de estiagem são cada vez mais nítidas – e fortes. Muito aguaceiro seguido de seca inclemente.
Se a natureza sofre, o homem também padece. Se com o sol cada um trata de expandir suas benfeitorias, o que costuma acarretar estende-la sobre terras vizinhas, sempre mal definidas, essa é a estação na qual voltam a predominar fórmulas antigas de resolução dos litígios e diferenças, pela violência, sem a mediação do poder público. A ordem legal e jurídica ainda é uma abstração em boa parte do sertão amazônico, onde cabe a advertência que Guimarães Rosa faz na abertura do seu Grande Sertão: Veredas: mesmo Deus, se quiser entrar nesses domínios, que venha armado; ninguém lhe dará garantias só por ser Deus.
As perspectivas, que pareciam ter melhorado nos últimos tempos, com uma baforada de modernização sobre os ermos amazônicos, estão voltando a ser ruins. Voltou a haver mortes de encomenda, com pistoleiros em largo uso no mercado, e os antagonistas já não querem (ou se cansaram de querer) a participação do Estado, partindo para o confronto direto. É assim que o tom dominante da Amazônia na temporada das chuvas, o verde, é substituído pelas marcas da saison que agora começa: o vermelho do sangue e o amarelo do fogo.
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Uma temporada infernal. Artigo de Lúcio Flávio Pinto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU