15 Agosto 2024
Como reconhecer o abuso espiritual? Como alertar as potenciais vítimas de gurus que parecem convincentes e fascinantes? Qual é a relação entre abuso espiritual e abuso sexual?
Essas são as perguntas que serão respondidas pelo curso semestral oferecido pela Faculdade Teológica do Trivêneto. O curso será ministrado pelo Pe. Giorgio Ronzoni, professor de Teologia Pastoral e pároco da Igreja de Santa Sofia em Pádua – ex-diretor do Escritório Catequético Diocesano – que já escreveu dois livros sobre o tema, intitulados “Le sette sorelle. Modalità settarie di appartenenza a gruppi, comunità e movimenti ecclesiali” e, no ano passado, “L’abuso spirituale. Riconoscerlo per prevenirlo”, ambos pelas edições Messaggero, de Pádua.
A reportagem é de Luciano Moia, publicada por Avvenire, 13-08-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O que se entende por abuso espiritual?
O abuso de poder – responde o Pe. Ronzoni que, depois do doutorado em Teologia, especializou-se em Pastoral Juvenil e Catequética na Universidade Pontifícia Salesiana – costuma se concretizar no âmbito de uma relação de acompanhamento espiritual. A relação pode ser entre duas pessoas, por exemplo um diretor espiritual e a pessoa que pediu ajuda. Mas também entre um grupo e uma pessoa que é acompanhada. Quando o abuso ocorre, a pessoa que pede ajuda se torna a vítima nas mãos de um carnífice-manipulador que, justamente, abusa do poder que lhe foi conferido e arruína a vida da pessoa que lhe foi confiada.
Quem é o abusador?
Muitas vezes, é um padre, um religioso, mas também um fundador ou fundadora, um grupo de pessoas que fazem parte de um movimento, um pároco, uma mestra de noviças. Fora do âmbito eclesial, uma “pessoa santa”, um suposto vidente. Eu diria que pode ser qualquer pessoa a quem seja reconhecida uma autoridade moral. A lista seria realmente vasta.
Quais são as condições que levam a desencadear a consciência do abuso espiritual?
A pessoa sofre, sente medo, raiva, depressão, mas lhe é dito que o sofrimento faz parte do processo de cura, que essa é a vontade de Deus, que ela deve oferecer seu sofrimento em expiação por culpas não muito bem especificadas, que deve abraçar sua cruz. Então, ela se cala e segue em frente. Até porque o abusador explica que a relação entre eles não deve ser contada a ninguém, que os outros não entenderiam. Isso pode durar meses, às vezes anos.
E quando a situação finalmente explode?
Explode quando chega uma terceira pessoa e consegue esclarecer ao abusado o que não está certo. Em suma, é preciso uma ajuda externa, que pode ser uma pessoa, mas também uma leitura, uma conferência, algo, enfim, que faça despertar a suspeita, que faça a vítima entender sua condição.
É somente nessas condições que se desencadeia o processo de libertação?
Sim, mas nunca é fácil. E sobretudo não é algo imediato, porque, apesar do sofrimento, as vítimas confiam em seu abusador. Muitas pessoas vítimas de abusos espirituais me escreveram depois de terem lido meu livro e me explicaram que, vistas de dentro, as coisas nunca são tão claras, tão evidentes como para quem observa de fora.
Quem são as pessoas em maior risco?
Eu diria que não existe um perfil da vítima ideal. Todos estamos potencialmente em risco. Mas é claro que, quanto mais frágil for a pessoa, quanto mais ela precisar encontrar um apoio espiritual, mais alta será a possibilidade de cair nas mãos de um abusador. Talvez os únicos que estão seguros sejam aqueles que suspeitam de todos, que nunca confiam, enquanto, quanto mais a pessoa for boa e aberta aos outros, mais poderá ir ao encontro de situações ruins. Além disso, devemos considerar o fato de que os abusadores são muito espertos, sabem encontrar o lado fraco da pessoa em dificuldade. Um jovem em busca, uma pessoa que está vivendo um sofrimento e está pronta para abrir o coração para buscar respostas e alívio pode cair mais facilmente nas tramas do abuso.
Mas que vantagem um abusador obtém com sua ação de controle e de manipulação das consciências?
Existem três tipos de abusadores. Existe o abusador de (parcial) boa-fé. Aquele que está convencido de que está fazendo bem à pessoa, que se sente o salvador da pátria. Na realidade, estamos diante de uma pessoa que tem uma grande necessidade dos outros, que liga a si quem está ao seu redor, porque não conseguiria viver sem isso. Na realidade, mesmo de “boa-fé”, estamos perante uma pessoa altamente problemática. Do lado oposto, está o narcisista perverso. Uma pessoa má, perfeitamente consciente do que está fazendo. Quer controle total da pessoa à sua frente. Quer manipular sua consciência, despertar sua admiração, consenso e aplausos para ela mesma, até chegar ao abuso sexual. Sabemos que os dois tipos de abuso estão estreitamente relacionados. Primeiro, o abusador se apossa do coração e da mente, e depois chega ao corpo.
Você falou de três tipos de abusador. E o terceiro?
Eu diria que existe um estágio intermediário, entre a “boa-fé” e o perverso. Portanto, uma pessoa hiperegocêntrica, que tem uma grande neurose e que, para aplacar a própria ansiedade, usa a própria imagem. Por exemplo, diz que é dedicado à sua própria comunidade, ao seu movimento e, ao invés disso, explora a Igreja para acalmar seu narcisismo. Não gosta da concorrência das pessoas brilhantes, cerca-se de gregários, só quer destacar a própria imagem.
Na era das mídias sociais, é um vício que está afetando muitas pessoas, até mesmo dentro da Igreja...
Infelizmente... Nos tempos de Freud, a psicose mais difundida era a histeria. Hoje estamos no “video ergo sum”, as pessoas acreditam que alcançam mais valor quanto mais são vistas. Mesmo no âmbito eclesial, confunde-se a própria visibilidade com a eficácia apostólica. Muitos cliques, muitos fiéis. Pensa-se que a pessoa carismática é aquela que atrai muitas pessoas. Em vez disso, segundo São Paulo, os carismas são dons do Espírito e não dependem do número de – supostos – seguidores.
Que conselho se pode dar à pessoa em busca, que gostaria de se confiar a um guia espiritual, para evitar o risco de abuso?
Que se informe bem, que faça comparações, que avalie mais pessoas, que escute opiniões diferentes, que não confie completamente em um único guia, principalmente se este reivindica uma exclusividade, se tende a anular outras relações. Quando vamos ao encontro sempre e apenas da mesma pessoa, aceitamos tudo o que ela diz como se fosse a verdade. Quando aceitamos a proibição – quase sempre expressada por um potencial abusador – de não ir ao encontro de outras pessoas, perdemos os anticorpos, e o risco de abuso aumenta.
Agora, porém, fala-se muito sobre isso e também aumentam as oportunidades para aprofundar o problema até mesmo nos seminários.
Sem dúvida, mas tenhamos em mente que não basta acrescentar um curso de seminário para limpar a consciência. Pelo contrário, é preciso ampliar a consciência, focar na formação permanente, explicar às pessoas que têm a responsabilidade da orientação espiritual que devem deixar de lado a tentação de serem fascinantes e envolventes a todo o custo. Temos visto muitos mestres espirituais que abusam de seu próprio fascínio intelectual para vincular as pessoas a eles. Mantenhamos a nossa atenção elevada. Infelizmente, o abuso espiritual é mais generalizado do que possamos imaginar.
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Abuso espiritual: “Cuidado com os padres à caça de ‘curtidas’” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU