03 Agosto 2024
A descoberta das possibilidades de uma vida mais humana pode ser garantida justamente pelo elemento religioso. Alfabeto da fé, alfabeto de sentido: esperamos reencontrá-lo o mais rápido possível!
A opinião é de Maria Grazia Giordano, catequista italiana. O artigo foi publicado em Vino Nuovo, 29-07-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nestas tardes escaldantes de verão europeu, à espera de poder colocar o nariz para fora de casa após o pôr do sol, retomei uma publicação de 2022 intitulada “L’analfabetismo biblico e religioso: una questione sociale” [em tradução livre, Analfabetismo bíblico e religioso: uma questão social].
O texto, editado por Brunetto Salvarani, reúne algumas intervenções apresentadas em um congresso sobre esse tema, realizado em Modena, na Itália, em 2021.
Um tema espinhoso, mas que tem sua relevância. Quem se ocupa da catequese sabe que o pouco conhecimento religioso e bíblico é um elemento generalizado. Eu, por exemplo, tenho notado, ao longo dos anos, que ninguém nos meus grupos de crismandos adultos sabia o que é o ano litúrgico ou qual é a festa principal do cristianismo. Mas por que esse analfabetismo deveria ser um problema? E de onde isso vem?
Segundo Brunetto Salvarani, “o analfabetismo religioso denota um empobrecimento cultural” e “também acarreta elevados custos sociais, porque dá espaço, pelo menos indiretamente, a incidentes culturais que minam a coesão social e retardam os processos de integração”.
Além disso, ignorando os códigos religiosos e, em particular, os bíblicos, “impedimo-nos de compreender as múltiplas presenças na vida cotidiana dos países de antiga cristandade: como interpretar esculturas e imagens que povoam as cidades e o campo, entender expressões idiomáticas e provérbios da linguagem popular e culta, mover-se entre calendários, comemorações e festas”.
Pelas pesquisas realizadas sobre a questão, mas também pela experiência cotidiana de ensino e de catequese, a Itália parece ser um país pobre em conhecimentos religiosos. Entre as causas, podemos indicar a tradicional desconfiança do clero católico, que considera que cultura demais é prejudicial à fé; a mentalidade secularista, que escanteou todo o saber religioso como irrelevante; mas também a ruptura do fio de comunicação dos fundamentos do catolicismo, tecidos na família antes ainda que nas paróquias.
O fenômeno tem consequências precisas, como observa Francesca Cadeddu, que também identifica o que falta para resolvê-lo:
“O déficit de conhecimentos e de informações sobre as normas, os textos, as doutrinas e as culturas que as fés habitam e têm habitado historicamente ‘polui’ tanto a vivência comum quanto a forma como ela é representada nas mídias, com preconceitos e estereótipos, provocando incidentes culturais que têm um impacto direto e imediato nas pessoas e em seu senso de pertencimento a uma sociedade. O que falta é uma ação cultural que, envolvendo várias esferas da vida (escola, família, trabalho, saúde, tempo livre) e vários níveis institucionais (político, religioso, escolar, administrativo), reduza os confrontos identitários em favor de uma convivência melhor.”
A discussão, portanto, se amplia: a ignorância dos fundamentos religiosos se insere em um empobrecimento cultural geral, que diz respeito tanto à linguagem quanto aos conteúdos (pense-se, por exemplo, no desaparecimento de tempos verbais como o conjuntivo ou no desconhecimento generalizado da nossa história recente ou da Constituição como base legal e civil da nossa sociedade).
Nos cursos de catequese, a falta de conhecimento das bases do catolicismo implica uma adesão muito subjetiva e muitas vezes vaga aos caminhos da fé, mas também, consequentemente, um desinteresse pelas outras tradições religiosas, as quais, pelo contrário, seria oportuno conhecer, dados os contextos multiculturais em que vivemos.
Além disso, paradoxalmente, a ausência de cultura religiosa favorece formas de religiosidade elementares, beirando a superstição, e torna as pessoas mais vulneráveis ao fascínio das seitas, que são cada vez mais difundidas (apesar da secularização!) e, às vezes, até perigosas (como testemunham notícias recentes e nem tão recentes).
O sociólogo Franco Ferrarotti sublinha com força a necessidade urgente de “redescobrir e reavaliar a função salvífica do sagrado como o antiprofano, o antimercado e o meta-humano, que poderá ajudar na saída da sociedade do ‘usa e joga fora’ e reconstruir a unidade do vivente humano vivo, passando da homminitas à humanitas. Uma sociedade como a atual, que escolhe a inovação tecnológica como princípio orientador, está condenada desde o início, destinada a passar de grupo a amontoado, desorientada, ansiosa, tecnicamente avançada e humanamente murcha”.
“A técnica (…) é certamente um valor, mas é um valor essencialmente instrumental. Não nos diz de onde viemos, onde estamos, para onde vamos. (…) O mesmo se aplica à economia de mercado (…). O mercado é perfeitamente legítimo como fórum de negociação e transação em termos econômicos e financeiros. Mas é um erro patético considerá-lo uma bússola, a fonte de sinais para a vida social.
“Precisamos redescobrir e despertar novamente em nós o sentido da antítese sagrado-profano. Existe um valor para além e contra os valores instrumentais do mercado. É um valor final. É o sagrado: um valor meta-humano, essencial para a comunidade humana.
“Em outras palavras, o meta-humano, o sagrado, longe de se apresentar como uma esperança ilusória (…), emerge e permanece firme como a defesa extrema do caráter humano da sociedade humana, a garantia de sua sobrevivência, a salvaguarda contra sua autoaniquilação.”
Minha experiência como catequista de crisma de adultos confirma plenamente a análise de Ferrarotti. As pessoas que participaram dos vários cursos estavam todas inseridas no mundo do trabalho e se admiravam quando refletíamos sobre a importância do silêncio e da reflexão pessoal, que permite identificar valores e metas diferentes daqueles indicados pela sociedade do lucro, da lógica do trabalho ininterrupto e alienante, da exclusão do tempo pessoal e relacional por ser totalmente subserviente às exigências do trabalho. Era uma surpresa para eles: a descoberta das possibilidades de uma vida mais humana, garantida justamente pelo elemento religioso.
Lembro-me bem dos olhares maravilhados e também das palavras de agradecimento no fim dos encontros. Pequenos vislumbres de vida capazes de devolver um pouco de sentido à existência.
Alfabeto da fé, alfabeto de sentido: esperamos reencontrá-lo o mais rápido possível!
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Analfabetismo bíblico-religioso: uma questão social? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU