30 Julho 2024
"Quando o cristianismo se impôs, realizou em relação às raízes clássicas em matéria de espiritualidade uma vasta e tremenda operação de cultura do cancelamento. Seria oportuno que nós hoje, pós-modernos e pós-cristãos, não repetíssemos o mesmo erro com o cristianismo cada vez mais enfraquecido, mas honrássemos seu legado", escreve Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele, de Milão, e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 29-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A dessacralização da tradição cristã e ocidental realizada pela inauguração de Paris representa a fatuidade destes nossos pobres dias.
Houve um tempo em que os Jogos Olímpicos começavam com uma consagração; hoje, em vez disso, começaram com uma dessacralização. E a questão é que a dessacralização da tradição cristã e ocidental realizada pela inauguração em Paris diz algo sobre nós: representa a fatuidade destes nossos pobres dias, fotografa a miséria cultural e espiritual que os caracteriza, é o emblema da inimizade cada vez mais intensa contra a nossa história. Uma planta sem raízes murcha, uma civilização sem raízes também: e nossa civilização, que é pós-cristã, pós-ocidental e pós-humana, há muito está desenraizada.
Não há praticamente nenhuma manifestação cultural de massa que não nos lembre disso. Os movimentos lânguidos dos corpos das chamadas drag queens, outro dia em Paris, em sua paródia queer da Última Ceia de Leonardo da Vinci (ou seja, da imagem pictórica universalmente mais conhecida da Última Ceia de Jesus Cristo) representavam, naquele momento para o mundo inteiro, o emblema dos espasmos em que está se contorcendo a alma ocidental, inimiga de si mesma e de sua própria tradição, de acordo com a mesma tendência manifestada pelas "cultura do cancelamento", "woke" e orientações culturais do gênero. Se não se deve beatificar o passado, de acordo com aquela visão altamente imatura que coloca todo o bem no passado e vê apenas o mal no presente, também não se deve cair no excesso oposto. A história somos nós, cantava Francesco De Gregori, o que significa que nós, hoje, somos também a história de ontem, ela está dentro de nós, ela nos entrega as palavras com as quais falamos e as ideias com as quais pensamos, e qualquer operação que pretenda "cancelar", e não, justa e kantianamente, "criticar", está necessariamente destinada a não compreender e, portanto, a causar danos. A ignorância, é um fato matemático, sempre produz o mal, ainda mais quando se apresenta como "cultura".
Pois é. Não era a Última Ceia. Até porque este quadro foi pintado por Da Vinci, um italiano, e está na Itália. O tal banquete "atualizava" um quadro de acervo de museu francês, que retrata uma comedoria de deuses gregos. Divindades "pagãs", portanto. Não cristãs. Mas a histeria… https://t.co/w1tqmVnLie
— Christian Lynch (@CECLynch) July 28, 2024
Os Jogos Olímpicos recebem o nome de Olímpia, cidade-santuário da Grécia antiga que foi o local do grande templo dedicado a Zeus Olímpio, dentro do qual estava a enorme estátua do deus supremo, listada entre as sete maravilhas do mundo antigo, obra de Fídias, representando Zeus segurando uma Niké dourada em sua mão direita. Naquela época, Niké se pronunciava exatamente assim, niké, e não, como hoje, naik, e era uma divindade clássica, não uma logo comercial estadunidense. Naquela época, quando alguém olhava para Zeus e para Niké, oferecia-lhes dedicação, ao contrário de hoje, quando alguém olha para uma nike no sentido de naik e pergunta quanto custa.
A cada quatro anos, as renomadas competições atléticas que entraram para a história com o nome de Olimpíadas eram realizadas em Olímpia, e eram, em primeiro lugar, um evento sagrado. Elas tiveram início em 776 a.C. e as últimas foram registradas em 393 d.C., ano em que o imperador Teodósio, que havia transformado o cristianismo na religião do Estado e declarado ilegal a religião clássica, ou seja, a alma da civilização greco-romana, também proibiu os Jogos Olímpicos devido às raízes religiosas às quais ainda se referiam. Esse foi um dos primeiros exemplos nefastos de cultura do cancelamento. Outro caso foi quando o imperador Justiniano fechou a Escola de Atenas, a mais ilustre sede da filosofia clássica, por ser pagã e não cristã.
Diretor artístico da cerimônia nega referência à "Última Ceia". "Não foi inspiração. Acho que tinha ficado claro, lá está Dionísio. Está lá porque é deus da festa, do vinho, e pai de Sequana, deusa ligada ao rio. A ideia era um grande festival pagão ligado aos deuses do Olimpo" https://t.co/b6mU23Ke2k
— Jean-Philip Struck (@jeanstruck) July 28, 2024
Mas voltemos às Olimpíadas antigas. Sua duração padrão era de cinco dias: no primeiro, os atletas e juízes faziam um juramento solene de serem leais e respeitarem as regras; no terceiro, diante do altar de Zeus, realizava-se o grande sacrifício de cem touros chamado hecatombe; no quinto, havia a procissão final. E era nesse esquema sagrado que se realizavam as competições esportivas, com os vários tipos de corrida, luta, saltos, corrida de carruagem e corridas de cavalo. Os prêmios para os vencedores? Não medalhas de ouro, mas coroas de folhas de oliveira.
Na Grécia antiga, havia três outros jogos pan-helênicos: os chamados Píticos, que eram realizados em Delfos e, inicialmente, eram apenas competições musicais e literárias, mas depois se tornaram também competições esportivas; os chamados Ístmicos, realizados no istmo de Corinto; e, finalmente, os chamados Nemeus, porque eram celebrados no santuário de Zeus Nemeus, no vale de Nemeia, cidade no norte do Peloponeso. Os prêmios? Coroas de louro, pinheiro selvagem e plantas aromáticas. Lemos no famoso guia da Grécia antiga escrito por Pausânias justamente na época das Olimpíadas: "Há muitos espetáculos maravilhosos que a Grécia oferece, e alguns deles despertam admiração naqueles que apenas ouvem falar deles; mas nas cerimônias dos mistérios eleusinos e nos jogos de Olímpia, percebe-se a presença de um cuidado especial com o céu". Um cuidado especial com o céu, escreve Pausânias. Para os antigos gregos (ou seja, para os pais de nossa civilização, a quem ainda hoje devemos muito de nossa cultura), cuidar do céu e honrar os deuses significava cuidar e honrar a sua humanidade. Hoje, essa já costumeira dessacralização do divino e zombaria da religiosidade são a porta de entrada para a dessacralização do humano?
Aqui o discurso se torna complicado e o espaço à minha disposição para este artigo está se esgotando. Os antigos gregos tinham escravos, nós, pelo menos formalmente, não temos mais. Eles eram tremendamente machistas e as mulheres não contavam nada; as coisas já são muito diferentes entre nós.
Portanto, não se trata de mitificar o passado; trata-se, como já disse, de aprender com ele, de entender que viemos de lá. Quando o cristianismo se impôs, realizou em relação às raízes clássicas em matéria de espiritualidade uma vasta e tremenda operação de cultura do cancelamento. Seria oportuno que nós hoje, pós-modernos e pós-cristãos, não repetíssemos o mesmo erro com o cristianismo cada vez mais enfraquecido, mas honrássemos seu legado. É a maneira mais sábia e madura de progredir e evoluir, preservando a nossa humanidade.
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Aquela dessacralização da alma ocidental. É errado zombar da religiosidade. Os Jogos antigos eram um evento sagrado. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU