O Gaúcho, não o monocultor rentista, é um entrave à financeirização do meio ambiente. Entrevista especial com Daniel Lemos Jeziorny

O professor e pesquisador da UFRGS demonstra como a própria concepção de gaúcho depende de uma relação com natureza que lhe é intrínseca, mas cada vez mais próxima da extinção

Foto: Eduardo Amorim | Flickr/CC

Por: IHU e Baleia Comunicação | 22 Julho 2024

Quando se fala em gaúcho, a imagem que vem à mente é, possivelmente, de um sujeito vestido de bombachas e tomando chimarrão. Esse imaginário, forjado e galvanizado pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho – MTG, não leva em conta a relação do sujeito com espaço em que nasce, tampouco com a natureza que ao longo de centenas de anos moldou um sujeito associado ao Pampa em todas suas dimensões e peculiaridades. Embora o Pampa seja um bioma que existe numa faixa de terra muito específica entre o Rio Grande do Sul e Buenos Aires – Argentina, passando pelo Uruguai, a ideia de gaúcho no Brasil foi disseminada em 23 estados, com mais de 1,1 mil Centros de Tradições Gaúchas – CTGs. Mas afinal pode haver gaúcho sem o Pampa? O que é o gaúcho?

“Ser gaúcho significa manter o modo de vida típico do gaúcho, sua forma específica de concretizar o metabolismo humanidade/natureza através de um processo de trabalho construído com o bioma Pampa a partir do pastoreio e com a utilização do cavalo – digamos assim – como uma ferramenta absolutamente essencial”, explica o professor e pesquisador Daniel Lemos Jeziorny, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “Um plantador de soja que usa bombachas e toma mate parece um gaúcho, mas não é. Com isso, cria-se não mais do que um de avatar de gaúcho, uma espécie de xororó de bombachas, que não titubeia em evocar as virtudes de uma história e de uma cultura que trabalha persistentemente para pôr a termo”, complementa.

As transformações a que a noção de gaúcho foi submetida ao longo do tempo têm a ver, também, com o processo de subjetivação sustentado pela financeirização da vida. “Na atual etapa do desenvolvimento capitalista, quem dá as cartas na mesa da acumulação é o capital financeiro, talvez muito decisivamente o capital portador de juros, visto que para muitos atravessamos a etapa patrimonial da acumulação”, descreve Jeziorny. “Quando alguém compra uma cota de um fundo que administra uma fazenda no estado do Mato Grosso, o que lhe importa é menos o que vai ser cultivado na terra do que a renda que uma cota da propriedade dessa terra pode proporcionar”, acrescenta.

Mas, ao contrário desta imagem que o agronegócio defende sobre a identidade gaúcha, o verdadeiro gaúcho, o homem pampeano portador e herdeiro da história de charruas a escravizados que viveram ao sul do Paralelo 30º S, numa simbiose entre humano e natureza, é propriamente um entrave à noção de “progresso” defendida pelo agronegócio. “O caminho de saída do labirinto da crise climática passa pela manutenção dos ecossistemas terrestres e marinhos. O modo de vida gaúcho é um exemplo de que é possível – no bioma Pampa – um metabolismo social em harmonia com essa necessidade cada vez mais urgente. Infelizmente, essa alternativa parece não atender aos imperativos de quem dá as cartas na mesa da acumulação na atual etapa de desenvolvimento capitalista, o capital financeiro”, assevera o entrevistado.

Daniel Lemos Jeziorny (Foto: Arquivo pessoal)

Daniel Lemos Jeziorny é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisador do Grupo de Estudos em Economia Política e Ecologia Política (GEPOL) da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS.

Confira a entrevista.

IHU – Como a financeirização constrói subjetividades contemporaneamente? Como esta subjetividade orientada ao capitalismo rentista reorganiza nossa compreensão sobre humanidade e natureza? Em que sentido “mudar” a natureza implica, também, mudar a humanidade?

Daniel Lemos Jeziorny – A subjetividade humana não é inata, mas construída socialmente. Afinal de contas, a essência humana é forjada através de um determinado modelo de sociedade. No fundo, o que explica tanto nossa essência quanto nossa subjetividade não é o que fazemos, mas a forma pela qual fazemos. Por exemplo, todos precisam se alimentar para sobreviver. Sempre foi e sempre será assim.

O que diferencia um esquimó de um gaúcho é a forma pela qual esquimós e gaúchos se organizam socialmente para se reproduzirem materialmente. Se geralmente gaúchos preferem churrasco e esquimós carne crua, é porque o modelo de sociedade no qual estão inseridos – e pelos quais foram forjados historicamente enquanto indivíduos – lhes atribuiu ou fomentou tais preferências. Ninguém nasce apreciador de churrasco, da mesma forma que ninguém nasce apreciador de carne crua de urso polar. A subjetividade de um gaúcho difere da de um esquimó porque seus modos de vida são distintos.

No fundo desse raciocínio, repercute o fato de que a sociedade não é a extrapolação de uma suposta natureza humana, a soma mecânica de indivíduos, mas uma totalidade cuja estrutura tem força suficiente para inclinar comportamentos e constituir formas de consciência. Entendimentos que podem ser distorcidos, como no caso do que se procura difundir a partir da falsa tese de que a troca de mercadorias é a concretização de uma suposta inclinação inata do indivíduo. A rigor, não há comportamento humano inato. O comportamento do ser humano muda conforme muda a sociedade na qual este se insere. Se temos a sensação de que trocar mercadorias é da nossa natureza, é unicamente porque viemos ao mundo numa sociedade de produção e circulação de mercadorias, não o contrário.

Aliás, vale ressaltar: o modelo de sociedade determinado pela forma mercadoria – o capitalismo – é um produto sócio-histórico, no qual a concorrência exacerbada e a profunda atomização individual são forças que se retroalimentam. Portanto, o contexto atual, que nos empurra uns contra os outros não tem nada de natural, é simplesmente produto de um tempo histórico. E como tal pode ser superado.

Alienação capitalista

Para sobreviver, o ser humano precisou cooperar, agir coletivamente em função de um objetivo comum, como o de constituir uma força social capaz de fornecer o indispensável à sobrevivência. O próprio modo de produção capitalista se apoia nisso. Se atualmente a cooperação entre trabalhadores no ato objetivo da reprodução material da vida não é voluntária, mas organizada e comandada pelo capital, é porque assim ele se alimenta e reproduz-se, na medida em que consegue apropriar-se do resultado dessa cooperação ao alienar o trabalhador do produto de seu trabalho.

Desde muito cedo em sua história, o ser humano aprendeu que o produto da ação coletiva organizada é maior que o produto do somatório de ações individuais isoladas. Não somos mais fortes nem mais rápidos do que muitos animais terrestres, o que nos deixou a frente das demais espécies foi nossa capacidade de cooperação, nossa força sinérgica. Foi a partir de nossa essência social que desenvolvemos a linguagem e formas cada vez mais avançadas de aprendizagem e de transmissão de conhecimento – que é tão cumulativo quanto nossas espetaculares forças produtivas (e destrutivas). Nesse ponto, é importante ter em mente que nossa relação metabólica com a natureza não é uma relação indivíduo/natureza, mas sociedade/natureza: a de um modelo de sociabilidade humana que reordena a natureza que lhe serve de condição inalienável de existência.

Além disso, diferentemente das demais espécies, nosso metabolismo com a natureza não é feito de forma imediata, mas intermediada, tanto por objetos técnicos que criamos para transformar o ambiente natural, quanto por significações que atribuímos ao mundo que transformamos – e a nós mesmos nessa transformação. A rigor, nossa subjetividade é produto da forma pela qual nos organizamos para trabalhar e transformar o mundo em função de objetivos previamente estabelecidos. Ao transformar a natureza por intermédio do trabalho, projetamo-nos nela, criamos uma natureza com feição humana. Diferentemente de uma abelha, em que a vida é não mais do que um meio de garantir sua existência física, o ser humano pode fazer da sua atividade vital um objeto da sua vontade e consciência – é por isso que ademais de alimentos e habitações, produzimos literatura, cinema, manifestações artísticas e maravilhas arquitetônicas. Ao humanizar a natureza através do trabalho, somos capazes de nos subjetivarmos, de criarmos uma forma de consciência de nossas ações.

Acumulação capitalista

No capitalismo, a mola mestra de nossa capacidade de transformar a natureza – e o mundo – é a acumulação de capital, pois é ela que está no centro da forma hegemônica pela qual nossa força social de trabalho é organizada e concretizada. Na atual etapa do desenvolvimento capitalista, quem dá as cartas na mesa da acumulação é o capital financeiro, talvez muito decisivamente o capital portador de juros, visto que para muitos atravessamos a etapa patrimonial da acumulação, ou seja, aquela na qual boa parte da riqueza produzida se mantém na esfera puramente financeira – em busca de valorização nominal – ou fictícia, se tomada do ponto de vista da totalidade que é a sociedade. Pensemos no caso de um fundo de investimentos. Antes de tudo, o objetivo de seu administrador é a valorização nominal dos ativos que compõem o portfólio desse fundo. Quando alguém compra uma cota de um fundo que administra uma fazenda no estado do Mato Grosso, o que lhe importa é menos o que vai ser cultivado na terra do que a renda que uma cota da propriedade dessa terra pode proporcionar.

Ademais da valorização nominal da própria cota, que acresce nominalmente o seu patrimônio e lhe permite ganhos com a especulação pura e simples. Se for necessário cultivar soja a partir da aplicação massiva de agrotóxicos para que a fazenda distribua ganhos maiores aos cotistas num prazo mais curto, valorizando nominalmente suas cotas e facilitando a sua negociação com ágio no mercado secundário, a perda da fertilidade natural do solo que daí decorre é um problema que passa a ser lateral (tanto para o gestor do fundo quanto para o cotista). Nesse caso, a relação com a terra, em si, é diferente da que costuma ter uma família de agricultores familiares que cultivam alimentos. Para estes, a propriedade da terra não é primordialmente uma mercadoria passível de ser vendida na esfera puramente financeira e a perda da fertilidade natural do solo é um problema vital, pois a reprodução material da família depende direta e inarredavelmente dela.

Mercantilização da vida

Nesse sentido, talvez seja possível afirmar que a financeirização é o estágio mais avançado da mercantilização da vida. Uma etapa do desenvolvimento capitalista a forjar decisivamente a forma mercadoria na subjetividade humana. É como se a forma mercadoria, atribuída a capacidade humana de transformar a natureza, transformasse também a própria natureza humana, forjando seu próprio conteúdo, sua própria versão de humanidade. Com isso, aprofundam-se ainda mais as velhas contradições sistêmicas. Basta perceber que a alienação do ser humano em relação à natureza é ainda maior do que aquela dos albores do capitalismo. Inclusive, impulsionando ao máximo a falsa ideia de que dinheiro é capaz de gerar dinheiro a partir de si mesmo, sem passar pela esfera da produção propriamente dita.

Esquecem-se os que acreditam nessa falsa ideia, de que a apropriação de excedentes capaz de valorizar patrimônios passa pela exploração do trabalho. Afinal, alguém teve que plantar a soja na fazenda do Mato Grosso, assim como, em algum lugar distante, alguém teve que plantar e colher as uvas que viraram o espumante que o rentista sorve – possivelmente despreocupado com a degradação ambiental – em Paris, Pequim ou Porto Alegre. Assim, a alienação aprofundada pela financeirização não é apenas do ser humano em relação à natureza, mas igualmente de si mesmo, enquanto ser social que é. E isto não apenas porque somos parte da natureza e sem ela não podemos existir, mas também pelo potencial que a financeirização carrega de obliterar o caráter pedagógico, constituinte de subjetividade humana que tem o processo de trabalho.

Ao diversificar seu portfólio com ações da Google, da Tesla ou da Apple, por exemplo, nosso cotista provavelmente não pensa que estas empresas se associaram à exploração de trabalho infantil nas minas de cobalto na República Democrática do Congo. O que lhe interessa são as mercadorias que poderá comprar com a renda proveniente dessas ações. Entretanto, para cerca de 40 mil crianças forçadas a trocar sua força de trabalho (sua natureza orgânica mercantilizada) por um salário miserável e que são exploradas até a medula nas minas congolesas (natureza inorgânica mercantilizada), o trabalho perdeu completamente o seu aspecto teleológico, capaz de desenvolver as aptidões mais elevadas do ser humano, como a criatividade e a inteligência. Nesse ponto, assim como em muitos outros exemplos de trabalhos precarizados, degradantes ou embrutecedores, o ser humano se assemelha a um animal – talvez até mesmo a uma abelha – que gasta sua energia e o tempo de sua vida apenas para sobreviver – e não para se desenvolver.

Labirinto de ilusões

Em suma, enquanto expressão do estágio mais avançado da mercantilização da vida, a financeirização contribuiu para o aprofundamento da alienação do ser humano da natureza da qual faz parte e de si mesmo. Com isso, forja uma subjetividade fantasmagórica, na qual os seres humanos são cada vez mais apartados, afastados de sua essência social mediante um processo exacerbado de individualização/atomização. Enfeitiçados pela pura forma sem conteúdo do dinheiro e assombrados pelo fruto de suas próprias mãos (inclusive mercadorias puramente financeiras), os seres humanos acreditam cada vez mais na cantilena de que são concorrentes, em vez de semelhantes, de que a pobreza e o sofrimento de muitas pessoas são o justo castigo pela falta de iniciativa individual empreendedora e no total devaneio de que a economia capitalista está se desmaterializando.

Escapar desse labirinto de ilusões – e violência crescente – passa por outra forma de relação humanidade/natureza, com lógica distinta e com outro sistema de significações. Portanto, passa por uma forma de concretizar a força social de trabalho para além dos imperativos da acumulação de capital. Uma forma de metabolismo social que reenlace o ser humano com a natureza e consigo mesmo, capaz de forjar uma subjetividade que nos afaste da falsa ideia de que somos indivíduos em concorrência, e nos conscientize daquilo que somos em essência: seres sociais que dependem uns dos outros – para existir e se desenvolver enquanto espécie.

IHU – Em linhas mais gerais, ainda para introduzirmos nossa entrevista, como esta subjetividade tem impactado na compreensão que temos sobre o “gaúcho”?

Daniel Lemos Jeziorny – Por aprofundar a alienação do ser humano da natureza, a subjetividade que emerge com a financeirização extrapola a falsa ideia de que é possível manter um modo de vida, forjado com um determinado ambiente natural, sem esse ambiente natural. A subjetividade própria da financeirização, talvez pelo seu caráter fantasmagórico e de pura forma sem conteúdo, nos provoca o engano de que é possível haver gaúcho sem o processo de transformação material – de humanização da natureza – que constitui o gaúcho. Não importa quanta carne de urso polar crua eu possa comer em minha casa em Porto Alegre, isso não fará de mim um esquimó. Da mesma forma, não importa quanto mate possa tomar um esquimó na Sibéria, isso jamais fará dele um gaúcho.

Ser gaúcho, em si, não diz respeito ao que comemos, bebemos, vestimos ou ouvimos em nossos aparelhos musicais, quer dizer, não diz respeito às mercadorias que consumimos. Tampouco diz respeito a estabelecer residência em determinado recorte do espaço geográfico. Ser gaúcho significa manter o modo de vida típico do gaúcho, sua forma específica de concretizar o metabolismo humanidade/natureza através de um processo de trabalho construído com o bioma Pampa a partir do pastoreio e com a utilização do cavalo – digamos assim – como uma ferramenta absolutamente essencial. A imagem do “centauro dos pampas” que vive das lidas com o gado, é um emblema cabal de que ao humanizar a natureza através de uma forma específica de trabalho, forja-se uma versão específica de humanidade. A versão especificamente gaúcha de humanidade não existe sem um bioma específico e uma forma específica de reprodução material através deste.

Para não me estender ainda mais, em linhas gerais, eu diria que o poder enfeitiçador das mercadorias é potencializado com a subjetividade própria da financeirização. Se o feitiço da mercadoria nos faz perder de vista a importância do caráter formador de subjetividade – ou de humanidade – do processo de trabalho, ele também nos cria a falsa consciência de que é possível existir um modo de vida sem as condições naturais que são essenciais para que esse modo de vida exista. A subjetividade própria da financeirização propicia o devaneio de que é possível existir gaúcho sem o modo de vida gaúcho.

Plantar soja no Pampa não faz de ninguém um gaúcho. Pelo contrário, destrói tanto o bioma quanto a forma de se viver com esse bioma que estão na essência do gaúcho. Mas o proprietário de terra que arrenda sua propriedade no Pampa para viver de renda em outro lugar (possivelmente sem trabalhar), segue a enganar a si mesmo pensando que é um gaúcho, tal qual o arrendatário monocultor de soja, que negocia sacas sequer colhidas no mercado de futuros bebendo mate e ouvindo sertanejo universitário.

IHU – Observando dados do MapBiomas percebemos que o RS perdeu, nas últimas quatro décadas, 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa. Já o cultivo da soja cresceu 4,9 milhões no território. Como essa realidade está ligada à catástrofe das enchentes vividas recentemente no estado?

Daniel Lemos Jeziorny – O solo da vegetação nativa possui grande capacidade de infiltrar água da chuva, portanto, de evitar que boa parte da precipitação escorra para os rios, provocando assoreamentos e inundações. O cultivo da soja acaba com a vegetação nativa, e, assim, enfraquece a capacidade do solo de absorver água da chuva. Dessa forma, uma quantidade maior de água tende a escorrer pela superfície do solo até os rios, aumentando-se a possibilidade de assoreamentos e de inundações.

IHU – É possível haver gaúcho sem o bioma pampa? Como a identidade histórica dos gaúchos vem sendo substituída pela imagem do monocultor?

Daniel Lemos Jeziorny – À primeira vista não me parece que seja possível haver gaúcho sem o bioma Pampa. A rigor, o gaúcho é um modo de vida que se constitui com esse bioma. Talvez a ideia de cultura em [Terry] Eagleton (que é muito próxima a de subjetividade acima resgatada) nos ajude a entender como a identidade histórica do gaúcho vem sendo substituída pela imagem do monocultor.

De um ponto de vista etimológico, cultura é um conceito que deriva da relação humana com a natureza, pois inicialmente diz respeito à forma pela qual a cultivamos e a transformamos em função de nossas necessidades. Nesse sentido, vale atentar à própria etimologia da palavra agricultura. Mais que isso, de que nossa palavra mais recorrentemente utilizada para referenciar as mais nobres atividades humanas é derivada de trabalho.

Contudo, se por um lado cultura significa a procura de crescimento natural, por outro sugere uma relação dialética entre aquilo que fazemos ao mundo e aquilo que o mundo nos faz. Se tanto é possível que enquanto seres humanos cultivemos a natureza, modificando-a, não menos possível é que cultivemos nossa natureza interior nesse processo, modificando-nos. Ou seja, “cultura é uma forma de subjetividade universal em elaboração dentro de cada um de nós”. Por isso, faz sentido falar de uma cultura capitalista dentro de cada um de nós, visto que a lógica que rege nossa relação com a natureza é a da acumulação de capital.

Com o tempo, a ideia de cultura – digamos assim – se desmaterializou. Ou seja, criou-se uma percepção de cultura desatrelada da relação dialética humanidade/natureza. Se inicialmente “Cultura” apontava ou significava um processo material, posteriormente foi transferida – metaforicamente – para assuntos do espírito. Para Eagleton, esse desdobramento semântico mapeia o câmbio histórico de uma humanidade hegemonicamente rural para uma existência humana hegemonicamente urbana, “da criação de porcos para Picasso, de lavrar o solo à divisão do átomo” – exemplifica ele.

Talvez, nessa virada etimológica, tenhamos perdido a percepção de como realmente constituiu-se uma cultura. Um esquecimento que pode contribuir para o engano de procurar apenas na aparência das coisas algo tão essencial, como a cultura. Um plantador de soja que usa bombachas e toma mate parece um gaúcho, mas não é. No entanto, a partir dessa percepção enganosa, fica mais fácil o ardil de acabar com a cultura gaúcha sob a retórica de lhe fortalecer, de colar num monocultor de soja a embalagem de um gaúcho, ao mesmo tempo em que se esvazia essa embalagem de todo o seu conteúdo – que em essência é o modo de vida que emerge da relação do ser humano com o bioma Pampa. Com isso, cria-se não mais do que um de avatar de gaúcho, uma espécie de xororó de bombachas, que não titubeia em evocar as virtudes de uma história e de uma cultura que trabalha persistentemente para pôr a termo.

IHU – Até que ponto esta existência gaúcha, marcada pela relação dos humanos com o bioma pampa, continua resistindo?

Daniel Lemos Jeziorny – Não é apenas a sojificação que destrói o bioma Pampa e inviabiliza o modo de ser gaúcho. Mesmo que em menor medida, outras atividades típicas do neoextrativismo também contribuem nesse apagamento de uma forma gaúcha de sentir-pensar-existir e no epistemicídio que lhe acompanha. A megamineração é certamente uma delas. A criação do Comitê de Combate a Megamineração e a ação deste, por exemplo, foi fundamental para barrar a construção daquela que seria a maior mina de carvão a céu aberto do Brasil, em Eldorado do Sul.

Caso essa mina houvesse sido construída, possivelmente hoje, com as inundações recentes, estaríamos vivenciando um quadro muito mais preocupante tanto naquela cidade que ficou devastada, como na capital gaúcha e em sua região metropolitana, inclusive com possibilidade de contaminação das águas do Guaíba com metais pesados. Esse é um exemplo concreto de uma ação de resistência bem-sucedida. Nela se envolveram 27 organizações e entidades, com presença marcante de movimentos sociais e grupos de pesquisa comprometidos com o Comum dos gaúchos. Resistir ao avanço de um modelo de desenvolvimento capitalista calcado num padrão de reprodução do capital neoextrativista no Pampa é uma forma de resistência. Talvez seja importante mencionar que os vultosos subsídios que o Estado brasileiro tem dado ao agronegócio seja uma poderosa alavanca do padrão de desenvolvimento capitalista que se concretiza no Brasil e que – no Pampa – coloca o “fio do bigode sob o fio da navalha”.

IHU – Em que sentido a imagem histórica e social do gaúcho se constitui, ao mesmo tempo, como um entrave (neste caso positivo) ao avanço capitalista monocultor e uma alternativa diante dos desafios climáticos globais?

Daniel Lemos Jeziorny – Existem distintas teorias sobre a origem do gaúcho. Independentemente de suas diferenças, tais teorias confluem no entendimento de que o gaúcho é uma forma de existência construída com o bioma Pampa, certamente transformado – mas não acabado – pela ação humana. A rigor, o gaúcho – “centauro do Pampa” – é um modo de existir com o Pampa acrescido de equinos e bovinos trazidos pelo homem branco, uma prova viva de que ao transformar a natureza da qual faz parte, o ser humano modifica também a sua própria natureza.

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Parte I

A primeira versão do “centauro dos pampas” foram os indígenas pampeanos, povos nômades de caçadores e coletores que conviviam em harmonia com o ambiente natural. Durante o capitalismo em sua fase ainda embrionária do mercantilismo, o afã colonizador do europeu branco trouxe o cavalo para o Pampa. De certa forma abandonados, ante ao insucesso da primeira investida colonizadora naquele recorte do espaço, os equinos encontraram no bioma formado por vastas pastagens de terras relativamente planas um ambiente bastante propício para sua reprodução. Rapidamente, os povos originários se tornaram exímios cavaleiros – especialmente os Charruas.

Igualmente trazido pelos colonizadores, posteriormente o gado bovino também se multiplicou livremente nas coxilhas do Pampa e passou a ser caçado pela primeira versão do centauro. Não é nenhuma novidade que os povos originários do Pampa legaram técnicas e instrumentos de caça essenciais ao modo de ser gaúcho, como a boleadeira e o laço de couro trançado. Descendentes de espanhóis e de portugueses, mas também de africanos se misturaram ao indígena e ao seu modo de vida nômade, cavaleiro e caçador de gado. Deram origem ao gaúcho, um ser que se formou miscigenado e que – tal qual os povos originários – vivia sem conhecer fronteiras ao cavalgar pelas terras do Pampa atrás do gado xucro.

Num mundo sem cercas e fronteiras políticas, a primeira e principal atividade dessa versão de humanidade “aérea” e altiva é a courama, ou seja, a caça do boi para o aproveitamento sobretudo do couro. Com a crescente mercantilização para aproveitamento em diversas mercadorias, o couro passa a ser cada vez mais procurado e taxado pelas Coroa portuguesa, que regula a sua comercialização. Cola-se à imagem do gaúcho – altivo e “aéreo” – um rótulo de fora da lei, de vagamundo, um contrabandista de couro que desrespeita todas as regras, que não sejam de seu próprio modo de ser. A bovinocultura surge posteriormente, em boa medida associada ao cercamento dos campos do Pampa pelo regime de sesmarias e a introdução da agricultura de subsistência. Praticamente obrigado a transformar a sua força de trabalho em mercadoria, ou seja, a trocá-la por um salário, o gaúcho se vê convertido em peão de estância. Mesmo forçado a alienar-se de seu modo de via nômade, verve de sua altivez, o gaúcho ainda se manteve “aéreo”, quer dizer, um centauro, que de cima de seu cavalo vive e reproduz-se majoritariamente das lidas com o gado, já não mais xucro, mas criado em certa harmonia com o bioma. Ainda que alienado do produto de seu trabalho, o gaúcho resiste, na medida em que o Pampa e o pastoreio lhe permitem manter traços essenciais de seu modo de ser.

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A passagem I acima é um excerto da reflexão que saiu no portal Outras Palavras [reproduzido pelo IHU aqui]. O que ela revela? Dentre outros aspectos, que o gaúcho é capaz de se adaptar e manter-se vivo enquanto ser social que é, na medida em que o bioma Pampa, substrato e condição inalienável de sua existência também se mantiver. Isto já aconteceu uma vez na história. Apesar da introdução da propriedade privada e da conversão do gaúcho em peão de estância, foi possível manter a forma de relação humanidade/natureza que constitui o ser social gaúcho. O gaúcho é uma prova viva de que é possível viver no bioma Pampa sem a sua destruição, portanto, um exemplo de que existem alternativas ao padrão de reprodução do capital monocultor. Apreender a importância dessa alternativa num contexto de emergência climática passa pelo entendimento de que a natureza não é mera fonte de recursos naturais e de que a biosfera é um sistema de ecossistemas com funcionamento próprio. Assim, de que problemas como o aquecimento global, a acidificação dos oceanos e as enchentes cada vez mais recorrentes são resultados da degradação ecossistêmica em curso. Ecossistemas fornecem serviços ecossistêmicos essenciais, como a ciclagem de nutrientes do solo, a regulação de doenças e a regulação do ciclo hidrológico (logo, do regime de chuvas).

O caminho de saída do labirinto da crise climática passa pela manutenção dos ecossistemas terrestres e marinhos. O modo de vida gaúcho é um exemplo de que é possível – no bioma Pampa – um metabolismo social em harmonia com essa necessidade cada vez mais urgente. Infelizmente, essa alternativa parece não atender aos imperativos de quem dá as cartas na mesa da acumulação na atual etapa de desenvolvimento capitalista, o capital financeiro, que encontra oportunidades mais atraentes de valorização com a soja, uma commodity negociada no mercado internacional – inclusive de futuros – com preço referenciado na Bolsa de Chicago. Em relação ao boi gordo, que também é uma commodity, a soja responde melhor à necessidade de aceleração que caracteriza a temporalidade do capital financeiro. Pelo menor tempo de produção, capitais investidos no cultivo da soja apresentam uma velocidade de rotação maior. Talvez por isso, o gaúcho seja um entrave. É justamente por ser um entrave ao modelo de desenvolvimento que nos leva cada vez mais fundo no labirinto da emergência climática, o gaúcho é fio de Ariadne amarrado a porta de saída desse labirinto.

IHU – Como o cavalo Caramelo, ícone das enchentes no RS, se tornou um avatar da crise climática global?

Daniel Lemos Jeziorny – Eu diria que a imagem do cavalo Carameloesgualepado no telhado de uma habitação submersa – está mais para emblema do que para avatar. Um retrato simbólico dos efeitos ecocidas do negacionismo climático, que infelizmente grassa num modelo de sociedade irresponsavelmente mercantilizada até a medula e pelo qual se alarga cada vez mais a fissura aberta entre as partes que compõem o metabolismo humanidade/natureza. Com isso, traz-se à tona a emergência climática que atravessamos. Mas, por outro lado, a imagem também pode ser interpretada como um grito de socorro e um sinal de alerta da natureza, de que é preciso urgentemente puxar o freio de emergência desse modelo de desenvolvimento que os donos da riqueza socialmente produzida e seus capatazes insistem em levar adiante, apesar de sua flagrante autofagia.

IHU – Quem é, ou melhor, o que é o gaúcho hoje?

Daniel Lemos Jeziorny – Possivelmente um ser em extinção. Através de um processo no qual o centauro dos pampas cede lugar a uma espécie de xororó de bombachas, alguém que parece desconhecer o que significa ser gaúcho, mas que não titubeia em evocar os feitos de sua história ao mesmo tempo em que trabalha para lhe pôr a termo. Isto, ao acabar com o Pampa, transformando-o num mar de soja e soterrando as tradições e costumes da cultura gaúcha debaixo de uma montanha de direitos de compra e venda de sacas de soja sequer colhidas, mas já freneticamente negociadas no mercado de futuros. Na raiz desse movimento estão também os proprietários de terras que se convertem em meros rentistas, ao arrendar suas propriedades no Pampa para os monocultores.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Daniel Lemos Jeziorny – Gostaria de agradecer o espaço e as excelentes perguntas. Espero que as respostas tenham fica à altura dos questionamentos e que – com sorte – possam estimular boas reflexões para quem chegou até aqui.

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