Elogio franciscano das feridas: notas hagiográficas, iconográficas e espirituais sobre a estigmatização de São Francisco de Assis (1224-2024). Artigo de Adriano Cézar de Oliveira

Reprodução da obra de Candido Portinari Pássaros escutam sermão de São Francisco de Assis

24 Junho 2024

"No itinerário de Francisco algumas feridas são importantes para se construir uma espiritualidade das feridas. Essa proposta de espiritualidade não é um masoquismo sangrento e estéril. Pelo contrário, é uma oportunidade única e singular de viver uma relação com o espírito desde dentro do coração, donde pulsa a vida, o mistério, a desnudez e a vulnerabilidade".

O artigo é de Adriano Cézar de Oliveira

Adriano é licenciado em Filosofia, Bacharel e Especialista em Teologia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino. Especialista em História da Arte Sacra pela Faculdade Dom Luciano Mendes. Especialista em Ciências da Religião pela Faculdade Única. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes (PPGArtes/EBA) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na linha de Pesquisa Preservação do Patrimônio Cultural. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Pesquisador do grupo: Arte Sacra Contemporânea: Religião e História do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP-LABÔ. 

Eis o artigo.

Preâmbulo

O carisma franciscano faz memória, em 2024, da estigmatização de seu santo fundador e pai espiritual das Ordens Franciscanas. De acordo com narrativas de fontes hagiográficas medievais, Frei Francisco de Assis (1182-1226) recebeu em seu corpo as marcas da paixão de Cristo no ano de 1224, no alto do monte Alverne. Assim, dois anos antes da sua morte, o poverello de Assis se tornou o primeiro estigmatizado da história da fé cristã, trazendo em sua carne cinco feridas.

Os 800 anos dessa memória dialoga com um período fecundo para o carisma franciscano e capuchinho, um arco de quase dez anos de importantes comemorações para a espiritualidade franciscana. Em 2019, recordou-se o encontro de Frei Francisco com o sultão Malik al Kamil (1219), no contexto da V Cruzada, memória oportuna para evidenciar a sempre atual e urgente necessidade de atitudes éticas, de diálogo e hospitalidade, paz e não violência [1].

Entre os anos de 2021 e 2023 a proposta para as reflexões remonta à memória da Regra não Bulada (1221) e Regra Bulada (1223), essa última que orienta a vida e a missão da Ordem dos Frades Menores até os dias atuais. Ainda em 2023, celebrou-se em todo o mundo franciscano a representação do Presépio realizada por Frei Francisco de Assis na cidade italiana de Greccio (1223), com o objetivo de relembrar aos citadinos a beleza do mistério da Encarnação [2].

Nos próximos anos se recordará a composição de uma das mais belas páginas da poesia italiana, o chamado Cântico das Criaturas (1025), símbolo da sensibilidade de Frei Francisco em relação à natureza e da comunhão universal que celebrou ao final da sua vida. Posteriormente, a Ordem fará memória agradecida pela vida e obra de São Francisco de Assis por ocasião da celebração dos 800 anos da sua entrega definitiva à irmã morte corporal (1226), convite indispensável a humildade e ao essencial.

Finalmente, no ano de 1228, a Família Franciscana e, especialmente, a Capuchinha será convidada a celebrar os 500 anos da Reforma Capuchinha, lembrança de um chamado sempre constante ao essencial da vida franciscana, a oração contemplativa e a missão junto aos mais necessitados, em fraternidade e minoridade.

A cena da estigmatização de São Francisco de Assis ganhou destaque nas hagiografias do século XIII e em toda a literatura franciscana posterior. Para além dos códices literários e das páginas iluminadas, o episódio contou com inúmeras e variadas figurações na arte religiosa e sacra, de matrizes italiana, hispânica, portuguesa e brasileira ao longo de oito séculos. Ainda hoje, esse importante episódio da vida de Frei Francisco oferece para a poética da fé cristã mensagens urgentes e apelos fundamentais.

1. Algumas fontes hagiográficas que narram a estigmatização

O episódio da estigmatização de Frei Francisco foi amplamente descrito ao longo das Fontes Franciscanas – legendas, crônicas, escritos de São Francisco e documentos históricos. A cena foi divulgada pela primeira vez na Carta Encíclica escrita pelo então ministro geral da Ordem dos Frades Menores, Frei Elias de Cortona (1180-1253). O escrito teve como objetivo noticiar a morte de Frei Francisco, fundador e pai espiritual de uma multidão de frades minoritas.

As principais hagiografias medievais que contam a vida de Frei Francisco dão notícias da visão de Cristo como um serafim de seis asas e da impressão das marcas de sua paixão na carne de Francisco, deixando nele as feridas da cruz. As primeiras hagiografias franciscanas, escritas pelo frade Tomás de Celano (1190-1260), primeiro biógrafo de Frei Francisco, a saber: a Vita beati patri nostri FrancisciA lenda do nosso beato pai Francisco (1228-1229); a Legenda ombra - Vita Brevior – Vida breve (1232-1239); o Memoriale in Desiderio animae – Memorial do desejo da alma (1246-1247); e o Tractatus Milaculorum – Tratado dos Milagres (1250-1252) e, depois, a obra Legenda Maior Sancti Francisci – Legenda Maior de São Francisco, de São Boaventura de Bagnoregio (1263), fazem descrições detalhadas, testemunham a autenticidade e atestam milagres que teriam ocorrido a partir da visão das chagas. [3] Os dois principais relatos, de Celano e Boaventura, podem ser lidos conforme abaixo:

2. A iconografia da estigmatização

A figuração de Frei Francisco de Assis, sobretudo, após a sua canonização, realizada em 16 de julho de 1228, diretamente relacionada à figura de Cristo – alter Christus – é a imagem franciscana que mais será alvo de acusações, desconfianças e controvérsias no primeiros século franciscano. Nesse sentido, por volta da metade do século XIII, duas questões vêm juntar-se à problemática da difusão da imagem de Francisco associada ao Cristo.

A primeira é a da oposição de parte do clero secular e de frades de outras ordens mendicantes que manifestamente se colocavam contra essa associação de Francisco a Cristo. As recusas em aceitar a estigmatização de Francisco como obra divina, transformando-o em alter Christus, ocasionaram uma firme intervenção pontifícia neste campo através de bulas papais nas quais, partindo de vários testemunhos, impõe-se a crença nos estigmas de Francisco e a difusão do culto aos mesmos. São exemplos desses documentos a bula Usque ad terminos, de Gregório IX (31/3/1237) contra os bispos da Boêmia; a bula Benigna operatio (29/10/1255), de Alexandre IV, aos bispos em geral, na qual defende apaixonadamente os estigmas; e a Quia longum (28/7/1259), dirigida ao clero de Leão e Castela, na qual o próprio papa apresenta-se como testemunha visível, pois revela ter, pessoalmente, tocado nos estigmas do santo.

A segunda questão refere-se às próprias divisões internas do Ordem dos Frades Menores naquele momento, cujas diversas correntes internas construíram diferentes imagens de Francisco a partir dos seus pontos de vista expressos nas Legendas escritas do período. Foi somente no início do século XIV, após quase um século de história franciscana, que a imagem de São Francisco como alter Christus parece ter sido firmemente cristalizada nos meios oficiais.

Sem dúvidas, o episódio da estigmatização de São Francisco, representado como tal ou com variações como, por exemplo, figurado como um estado de êxtase, é um dos temas mais representados da iconografia franciscana do medievo à modernidade na Europa, América Portuguesa e América Hispânica, sendo, aparentemente, menos representado na arte religiosa da contemporaneidade. Provavelmente, a primeira representação desta cena deu-se na távola, ou retábulo, chamado São Francisco e seis histórias de sua vida (Fig. 1), realizado pelo pintor gótico Boaventura Berlinguieri (1210-1287), tendo como provável datação o ano de 1235, comissionado para a Igreja de São Francisco da cidade italiana de Pescia e que possui uma história marcada por descobertas. [4]

Figura 1: BERLINGHIERI, Boaventura. São Francisco e seis histórias de sua vida, 1235. Igreja de São Francisco, Pescia, Itália. [5]

A cena ganhará expressão em grande escala na Basílica de São Francisco iniciada em 1228, após a canonização do santo de Assis. Primeiramente, foi figurado na igreja inferior, entre os anos de 1260 e 1263, em um ciclo com episódios da vida de Cristo dos quais as cenas da vida de São Francisco fazem paralelo, atribuído ao artista conhecido por Mestre de São Francisco. Posteriormente, agora na igreja superior, foi figurado pelo ateliê do pintor e arquiteto italiano Giotto di Bondone (1267-1337), entre os anos 1296 e 1304. O afresco recebeu o nome de São Francisco recebendo os estigmas (Fig. 2) e servirá como modelo para a figuração da estigmatização por, pelo menos, os dois séculos seguintes.

Figura 2: BONDONE, Giotto di. São Francisco recebendo os estigmas. c. 1296-1304. Igreja Superior Basílica de São Francisco, Assis, Itália. [6]

A Legenda Maior Sancti Francisci (1263), escrita pelo ministro geral Boaventura de Bagnoreggio se tornou, no ano de 1266, a legenda oficial e canônica do santo de Assis em detrimento da destruição das demais, provavelmente por questões políticas internas e externas, no Capítulo da Ordem dos Frades Menores (1263), em Pisa. Por sorte, tal situação foi revertida anos depois, dessa vez no Capítulo de Pádua (1276) no qual se autorizou o recomeço das pesquisas e compilações a respeito de São Francisco de Assis. Há da Legenda Maior vários manuscritos iluminados, como por exemplo o de Sibylla von Bondorf (1450-1525), monja da Ordem de Santa Clara, residente no mosteiro de Friburgo em Brisgóvia, na floresta negra alemã. O volume manuscrito e iluminado foi feito para o uso das monjas em 1478, sob o governo da abadessa Susanna de Falckenstein, conforme a descrição do British Museum [7]. No manuscrito iluminado em questão, o episódio da Estigmatização de São Francisco (Fig. 3) aparece no fólio 164v.

Figura 3: BONDORF, Sibylla. Estigmatização de São Francisco. Legenda Maior de São Boaventura. Manuscrito Iluminado, 1478, f.164v. British Museum, Londres, Inglaterra.

As três primeiras obras selecionadas e descritas possuem origem europeia e mostram a figuração de São Francisco com as mãos elevadas em posição de oração, conforme a tradicional postura de oração no medievo, e diante de um homem em forma de serafim alado (com seis asas) e pregado em uma cruz. Na América Portuguesa, esse tipo iconográfico é recorrente, sobretudo na escultura, conforme se pode observar em vários conjuntos escultóricos presentes em altares-mores, colaterais ou laterais, ou mesmo em hibridismos como as representações de Cristo do Amor Divino. Um exemplo dessa figuração é a obra São Francisco das Chagas (Fig. 4), provavelmente do século XVII, de autoria desconhecida, proveniente da Capela de Nossa Senhora dos Aflitos – SP e custodiado pelo Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS-SP).

Figura 4: ANÔNIMO. São Francisco das Chagas. Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS-SP), São Paulo - SP. [8]

No Rio de Janeiro, na Igreja da Penitência pertencente à Ordem Terceira de São Francisco, o episódio da estigmatização aparece no conjunto escultórico do retábulo-mor. No forro da nave, um dos primeiros exemplares brasileiros da pintura perspéctica e ilusionista, São Francisco aparece estigmatizado, porém em glória, como se pode observar na imagem Glorificação de São Francisco (Fig. 5). A pintura, de autoria de Caetano da Costa Coelho, provavelmente, foi concluída em 1740. Na pintura do forro em questão há uma espécie de deslocamento de atributos iconográficos do Cristo Seráfico para São Francisco, o qual aparece estigmatizado e alado sendo elevado aos céus em glória.

Figura 5: COELHO, Caetano da Costa. Glorificação de São Francisco, c. 1740. Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, Rio de Janeiro – RJ.

Em Minas Gerais no século XVIII, a mesma temática iconográfica que aparece na pintura do forro da nave da capela terceira do Rio de Janeiro pode ser vista em duas pinturas de forro de sacristia. O primeiro exemplar encontra-se na Capela da Ordem Terceira de São Francisco de Ouro Preto na qual se pode observar São Francisco transportado ao céu (Fig. 6), tendo sido executada em torno de 1783 pelo pintor Manoel Pereira de Carvalho o qual figura o santo em glorificação. Posteriormente, na Capela Terceira da mesma Ordem, agora na cidade de Mariana, pode-se observar a pintura Êxtase de São Francisco (Fig. 7), executada por volta de 1800, pelo mais importante pintor do período em Minas Gerais, o marianense Manoel da Costa Athaíde (1762-1830), que representou o santo já estigmatizado e em êxtase místico.

Figura 6: CARVALHO, Manoel Pereira de. São Francisco transportado ao céu, c. 1783. Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, Ouro Preto – MG.

Figura 7: ATAÍDE, Manoel da Costa. Êxtase de São Francisco, c. 1800. Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, Mariana – MG.

Na América Hispânica, as figurações da estigmatização de São Francisco apresentam diferenças substanciais e hibridismos bem mais evidentes de acordo com os aspectos culturais e regionais de onde a cena é representada, conforme alguns exemplos. O primeiro é a pintura São Francisco recebendo os estigmas (Fig. 8), na Basílica de São Francisco da cidade San Salvador de Jujuy, na Argentina, realizado por um artista não identificado com provável origem de Cuzco. Na obra, São Francisco encontra-se alado recebendo os estigmas de Cristo na Cruz por meio de pequenos fios que saem das chagas de Cristo e atravessam a composição rumo ao corpo de Francisco.

Figura 8: ANÔNIMO. São Francisco recebendo os estigmas. Século XVI. Basílica de São Francisco, San Salvador, Jujuy, Argentina. Foto de Carlos Garcés .[9]

O segundo exemplo é do pintor peruano de origem indígena, Basilio Pacheco de Santa Cruz Pumacallao (1635–1710), um dos maiores nomes da escola cuzqueña de pintura. Na obra A Profecia do nascimento de São Francisco (Fig. 9), o santo é figurado estigmatizado e com asas, tendo sido profetizado em forma de anjo conforme as teses do monge cisterciense Joaquim de Fiori, e se torna um homem-pássaro, de acordo com as expressões utilizadas pelo pesquisador James Lara [10]. Esse tipo de figuração franciscana, cada vez mais comum nessa escola de pintura, revela como a iconografia franciscana, produzida na américa hispânica no período, especialmente por alguns fatores, a influência do culto angelical recorrente na Europa do século XVII, o sincretismo religioso em relação aos antigos deuses com asas do panteão andino e, por fim, a inculturação inspirada na beleza, variedade e multiplicidade de aves nativas.

Figura 9: PUMACALLAO, Basilio Pacheco de Santa Cruz. A Profecia do nascimento de São Francisco. Século XVII. Museo y Catacumbas del Convento San Francisco. Cusco, Peru.

Para terminar os exemplos iconográficos selecionados na América Hispânica, temos o escultor Manuel Chili (1720-1796), chamado de “Caspicara”. Manuel Chili, destacou-se na Escuela Quiteña como escultor e entalhador, ativo no século XVIII. Em uma de suas esculturas representou São Francisco Estigmatizado (Fig. 9) com as seis asas do anjo seráfico e portando em cada uma das mãos dois atributos, a cruz e a caveira. A escultura se encontra no Convento de São Francisco na cidade peruana de Cusco e está localizada em um dos retábulos da igreja conventual.

Figura 10: CASPICARA, Manuel Chili. São Francisco Estigmatizado. Século XVIII. Museo y Catacumbas del Convento San Francisco. Cusco, Peru.

3. Por uma espiritualidade das feridas

Celebrar uma memória é uma grande oportunidade de recordar e redescobrir a identidade. Recordar significa trazer novamente ao coração. Redescobrir significa retirar os excessos que escondem o essencial precioso. Esse deve ser o sentido que move a Família Franciscana a evocar a celebração dos 800 anos da estigmatização de Frei Francisco. Qual identidade brota deste movimento?

Assim como viver, ser franciscano é estar ferido. O que constitui o ser humano é a capacidade de se deixar transpassar pelo real misterioso. Deixar-se ferir por algo que está fora de nós ou, até mesmo, pelo outro. A primeira ferida é o nascer, viemos ao mundo transpassando um corpo. Essa é a primeira marca fundamental da existência.

A segunda ferida é o aprender. Aprender dói, apreender sangra. Na primeira infância temos duas tarefas desafiadoras. A primeira é a linguagem, juntar letras, formar palavras, nomear as coisas, processar a realidade que nos cerca. A segunda é caminhar, levantar-se, ficar de pé, mover-se, se livrar do imobilismo, explorar e começar tudo de novo, todos os dias pela vida toda.

A terceira ferida é descobrir o outro, aprender a pronunciar a palavra tu. Descobrir um outro, distinto do eu, uma dessemelhante interioridade. Ousar tirar a máscara de ser filho único e descobrir que se tem um irmão. A quarta ferida vem na esteira da terceira, é amar e, com isso, enfrentar as dores do amor. Entender que o tu que amamos não nos pertence e é mortal.

A partir dessa descoberta de que o amor é a mais profunda e incurável ferida é que nasce o desafio de existir e viver. Nesse ponto nasce a quinta ferida a vulnerabilidade e a desnudez, lugar da identidade franciscana. Esse foi o processo de Frei Francisco de Assis e é assim com todo e qualquer franciscano.

Ele, literalmente, se fez nu em sua busca. Não obstante a teatralidade das narrativas medievais e os medievalismos modernos, ele buscava sentido. Seu gesto foi simbólico à medida que nele cabe toda e qualquer busca humana. Nós, nos movemos em uma sociedade do cansaço, do olhar desatento, da desatenção, da indiferença, do descartável, das aparências, do consumo. Neste cenário, o desafio de vivenciar uma espiritualidade das feridas se torna ainda maior, pois, a grande massa busca por uma espiritualidade light, epidérmica e sem compromisso.

No itinerário de Francisco algumas feridas são importantes para se construir uma espiritualidade das feridas. Essa proposta de espiritualidade não é um masoquismo sangrento e estéril. Pelo contrário, é uma oportunidade única e singular de viver uma relação com o espírito desde dentro do coração, donde pulsa a vida, o mistério, a desnudez e a vulnerabilidade.

1. Fracasso: Francisco fracassou em seu sonho de ser um cavaleiro. Por vezes, a fraternidade fracassa em viver o sonho essencial da primitiva fraternitas, isto é, que cada pessoa seja irmã uma da outra e tenha comunhão com toda a criação. A falta de pertença e comunhão faz fracassar a fraternidade.

2. Prisão: Francisco foi derrotado na batalha e, na prisão, meditou sobre os horrores da guerra. A guerra é uma realidade insistente. Há várias guerras entre nações, entre grupos, entre pessoas. A mentalidade colonialista de destruir e dominar o outro busca se impor a todo momento desde as relações cotidianas. O egocentrismo aprisiona a fraternidade.

3. Rejeição: Francisco ofertou a paz em meio a Cruzada e sua paz foi rejeitada. Nem sempre a oferta da boa vontade é o suficiente. Pode haver interesses obscuros por detrás de buscas e relações, há desencontros pelo caminho. O não querer, a má vontade sempre faz a fraternidade ser rejeitada.

4. Incompreensão: Francisco, incompreendido em seu ideal, pediu demissão da direção da fraternitas. A reta intenção, por vezes, se transforma em um fardo bastante pesado de incompreensão e solidão. As relações adoecidas fazem com que a fraternidade não seja possível.

5. Desapropriação: Francisco recebeu em sua carne as marcas da paixão de Cristo e se tornou um outro. Ele ensina seus companheiros, de ontem e de hoje, que a pobreza é a total desapropriação. Não bastou estar fracassado, derrotado, preso, rejeitado e incompreendido. Ainda existia um algo a mais para se desapropriar. O seu olhar, sentimentos, palavras e ações se tornaram de um outro, algo de si mesmo foi transformado.

No itinerário da Ordem I, alguns momentos históricos são, igualmente, feridas que precisam ser sempre saradas de novo em vista de uma boa vivência da herança, carisma e missão deixados por Frei Francisco à sua fraternitas.

6. Divisão: a Ordem, depois de três séculos de conflitos, se divide, oficialmente, em 1517. A divisão se impôs pelo Papa Leão X, quando publicou a Bula Ite vos, conhecida como a bula da separação. Separação entre os frades conventuais, ou da comunidade, e os frades espirituais, ou da observância. A divisão é um desafio que deve ser trabalhado e superado.

7. Reforma: nasceu no seio da Família Franciscana, em 1528, a Reforma Capuchinha. Uma reforma é sempre algo positivo, embora sempre nasça de uma ferida. A Reforma Capuchinha, buscou no binômio eremitério e apostolado seus pilares de vida, tendo a oração contemplativa como mestra e guia e os lugares onde ninguém queria estar como chão da vida. A reforma é sempre bem-vinda, desde o coração às estruturas.

8. Junção: Novamente o ano de 1897 se tornou um marco histórico no qual o Papa Leão XIII convocou à união os vários ramos da árvore da observância, movimento conhecido como união leonina. As colaborações sempre incrementam a capacidade de evangelizar e testemunhar o carisma.

As feridas do itinerário de Frei Francisco e da Ordem I, precisam e devem ser ressignificadas por meio de uma espiritualidade das feridas. São feridas que sangram, ou mais ou menos, desde mais de 800 anos até nossos dias. Essa ressignificação, existencial e carismática, deve ser realizada na contemplação dos mistérios do próprio Jesus de Nazaré e de seu Evangelho, vida e regra da família dos menores.

Cristo, em sua carne, vivenciou o páthos, isto é, o sofrimento e a paixão. Em sua morte, de cruz, símbolo da espiritualidade dos menores, morreu ferido por pregos, sentindo a ausência do Pai e em profunda solidão. Porém, tendo perdoado os seus, que não sabiam o que estavam fazendo, ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras.

Jesus de Nazaré, o Cristo da fé, tem em si as cicatrizes, as marcas da paixão. Na sua ressurreição, suas feridas estão curadas e se tornam sinal de um Pai misericordioso que não abandona nenhum dos seus. Sua ressurreição é sinal de uma compaixão que não deixa só, socorre o outro, sobretudo, o mais necessitado. Sua ressurreição, deve levar a missão, ao anúncio da boa nova.

A espiritualidade das feridas, de Francisco, da Ordem, da Igreja, e de cada franciscano, não pode ser alcançada pelas próprias forças. É um dom, precisa ser cultivado em diálogo permanente com Deus na oração. É um carisma, pois, ser franciscano é ser ferido e as feridas impulsionam a busca pelo essencial. É uma missão, com feridas abertas ou curadas, a compaixão nascida das chagas de Cristo e Francisco, tem algo a dizer ao mundo e a sociedade.

Ser franciscano é estar ferido! A espiritualidade das feridas está em nossas mãos, pés e lado. O que faremos com nossas feridas?

4. Considerações Finais

A iconografia da estigmatização de São Francisco de Assis é um dos episódios de maior destaque no vasto repertório da iconografia franciscana e observamos sua ocorrência, de maneira pontual, inclusive na pintura religiosa contemporânea. Um exemplo é a San Francesco receve le stimmate do pintor, poeta e escultor italiano Augusto Pelliccione (1938 – 2018). A pintura é custodiada pela Biblioteca San Giacomo della Marca, em Falconara Marittima, comuna da província italiana de Ancona, e representa São Francisco recebendo os estigmas de Cristo (Fig. 11). A composição da obra, com predominância de formas geométricas e cores vibrantes, sugere uma movimentação que deseja presentificar ao fruidor o momento da estigmatização convocando-o ao envolvimento da própria existência no episódio figurado.

Figura 11: PELLICCIONE, Augusto. São Francisco recebe os estigmas. Século XX. Biblioteca San Giacomo della Marca, Falconara Marittima. Ancona, Itália.

Para concluir, trazer à memória os 800 anos da estigmatização de São Francisco de Assis (1224-2024), especialmente após percorrer uma jornada entre fontes hagiográficas, representações iconográficas e provocações espirituais, é uma oportunidade que convida ao comprometimento existencial com as próprias feridas, as feridas da Igreja, as feridas da sociedade e de todo o criado que se congrega sobre a terra e para além dela. Uma vez mais, essa memória franciscana é uma exortação eloquente e um elogio franciscano a, partindo das feridas, trilhar caminhos de comunhão, de solidariedade e de compaixão com os mais necessitados, traduzindo no cotidiano da vida a concretude do Reino.

Notas

[1] Para aprofundar sobre a temática, conferir o livro Francisco de Assis: diálogo, hospitalidade e ecologia e os artigos do mesmo autor disponíveis aqui e aqui. Acessos em 22 de maio de 2024.

[2] Para aprofundar sobre a temática, conferir o livro Francisco de Assis e o Natal. Acesso em 22 de maio de 2024.

[3] TEIXEIRA, Celso Márcio (Org.). Fontes Franciscanas. Petrópolis: Vozes, 2004.

[4] Um pouco da história dessa obra pode ser visualizada nos vídeos aqui e aqui. Acessos em 22 de maio de 2024.

[5] Disponível aqui. Acesso em 22 de maio de 2024.

[6] Disponível aqui. Acesso em 22 de maio de 2024.

[7] Cf. aqui. Recentemente, por exemplo, começaram a acumular-se evidências de que pelo menos 180 ilustrações manuscritas de página inteira podem ser atribuídas à mão de Sibylla von Bondorf (...). Além de iluminuras em volumes litúrgicos e livros de orações, as obras de Von Bondorf incluem ciclos completos de ilustrações de página inteira das vidas de São Francisco (52 miniaturas), Santa Clara (33) e Santa Isabel (14). Este considerável corpo de trabalho é significativo não só porque nos permite estudar o desenvolvimento de estilo e temas na obra de um artista medieval, mas também facilita a identificação do estilo de casa de um scriptorium e das redes pelas quais os seus manuscritos circularam. No caso de Von Bondorf, cópias de suas obras e miniaturas podem ser encontradas em vários outros claustros conectados por um eficiente sistema medieval de empréstimo entre bibliotecas. Cf.: WINSTON-ALLEN, Anne. Observant Sisters: the medieval women who illustrated manuscripts are finally being recognized. Disponível aqui. Acessos em 22 de maio de 2024.

[8] A escultura encontra-se no Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS-SP) e pode ser vista aqui. Acesso em 22 de maio de 2024.

[9] Disponível aqui. Acesso em 22 de maio de 2024.

[10] Cf. LARA, James. Birdman of Assisi: Art and the Apocalyptic in the Colonial Andes. Tucson, Arizona: Centro de Estudos Medievais e Renascentistas do Arizona, 2016.

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