22 Junho 2024
O “fenômeno guerra” é tão diferente, desde que a guerra se tornou “mundial” e começou a envolver estruturalmente os “civis inermes”, que a teologia deve atualizar em profundidade suas próprias categorias, para salvar os esclarecimentos que pode oferecer sobre o fenômeno.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo. O artigo foi publicado em seu blog Come Se Non, 13-06-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A luz do recente documento Dignitas infinita ilumina a questão da guerra de uma forma nova. Em primeiro lugar, leiamos em seguida o texto dos números 38-39, com alguns destaques. É preciso dizer que a perspectiva do documento nesse trecho é a da “negação da dignidade infinita”, que, infelizmente, encontra na guerra um de seus lugares clássicos. Eis os dois parágrafos dedicados ao tema:
Outra tragédia que nega a dignidade humana é o prolongar-se da guerra, hoje como em todos os tempos: “guerras, atentados, perseguições por motivos raciais e religiosos e tantas opressões contrárias à dignidade humana [...] vão ‘multiplicando-se dolorosamente em muitas regiões do mundo, de modo a assumir as feições daquela que se poderia chamar uma ‘terceira guerra mundial em pedaços’”. Com o seu rastro de destruição e dor, a guerra ataca a dignidade humana a curto e a longo prazo: “ainda que reafirmando o direito inalienável à legítima defesa, como também a responsabilidade de proteger aqueles cuja existência é ameaçada, devemos admitir que a guerra é sempre uma ‘derrota da humanidade’. Nenhuma guerra vale a as lágrimas de uma mãe que viu seu filho mutilado ou morto; nenhuma guerra vale a perda da vida, ainda que fosse de uma só pessoa humana, ser sagrado, criado à imagem e semelhança do Criador; nenhuma guerra vale o envenenamento da nossa casa comum; nenhuma guerra vale o desespero de quantos são obrigados a deixar a sua pátria e são privados, de um momento a outro, da sua casa e de todos os vínculos familiares, de amizade, sociais e culturais que foram construídos, às vezes ao longo de gerações”. Todas as guerras, pelo simples fato de contradizer a dignidade humana, são “conflitos que não resolverão os problemas, mas os aumentarão”. Isto resulta ainda mais grave no nosso tempo, quando se tornou normal que, fora do campo de batalha, morram tantos civis inocentes.
Em consequência, também hoje a Igreja não pode senão fazer suas as palavras dos Pontífices, repetindo com São Paulo VI: “jamais plus la guerre, jamais plus la guerre!” e pedindo, junto com São João Paulo II, “a todos, em nome de Deus e em nome do homem: Não matai! Não preparai aos homens destruição e extermínio! Pensai nos vossos irmãos que sofrem fome e miséria! Respeitai a dignidade e a liberdade de cada um!”. No nosso tempo propriamente, este é o grito da Igreja e de toda a humanidade. Papa Francisco sublinha, enfim, que “não podemos mais pensar na guerra como solução. Diante desta realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais maturados em outros séculos para falar de uma possível ‘guerra justa’. Nunca mais a guerra!”. Já que a humanidade recai frequentemente nos mesmos erros do passado, “para construir a paz é necessário sair da lógica da legitimidade da guerra”. A íntima relação que existe entre fé e dignidade humana torna contraditório que a guerra seja fundada sobre convicções religiosas: “Aqueles que invocam o nome de Deus para justificar o terrorismo, a violência e a guerra não seguem o caminho de Deus: a guerra em nome da religião é uma guerra contra a própria religião”.
As três camadas da elaboração
Destaco três linhas de reflexão, quase “três camadas” de elaboração do problema, que convivem com uma forte tensão:
– a guerra como tema “de razão”: a reflexão racional é totalmente necessária e não pode ser resolvida apenas no nível da fé. No entanto, a razão nos leva a justificar a guerra, a falar de uma “guerra justa”. Essa primeira “camada” magisterial, que se inspira no pensamento de Agostinho, começou a entrar em crise com a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais.
– a guerra como tema “de fé e de religião”, no sentido de uma “profecia” que mostra o limite intrínseco à “lógica racional da violência institucional”. Precisamente após os conflitos mundiais, parecia que o cristianismo e as outras religiões tinham entrado nessa lógica diferente, que tende a afirmar que a guerra nunca pode ser “justa”.
– mas a guerra hoje encontra apoio religioso-crente para a sua justificação e gestão: esse tema é específico não apenas dos desenvolvimentos antigos, medievais e modernos, mas também pós-modernos. Essa é a urgência (até mesmo intracristã, além de inter-religiosa) dos últimos 30 anos. Hoje vemos, novamente, guerras entre cristãos na Europa e guerras entre judeus, cristãos e muçulmanos no Oriente Médio. As fés e as religiões não só “perdem a profecia”, mas também exacerbam a razão, podendo chegar a falar de uma “guerra santa”.
O que falta nesse sistema de lógicas justapostas? A correlação dos planos, que é muito delicada, mas decisiva. A guerra eventualmente “justa”, a guerra estruturalmente “injusta” e a guerra presunçosamente declarada “santa” estão em uma tensão não resolvida entre si.
Os três níveis (isto é, a reflexão racional, a profecia da fé e a invocação da fé para simplificar a justificação da guerra, a ponto de santificá-la) requerem um esclarecimento prévio:
a) a guerra, assim como o homicídio, é um “pecado”, uma violação da lei divina e humana.
b) Em alguns casos o homicídio pode ser justificado, e assim parece que a guerra também o pode ser.
c) Excluir o homicídio e a guerra da realidade não é uma forma de compreendê-los. Mas assumir a justificação do homicídio e da guerra como regras gerais é o vício oposto igualmente, senão ainda mais grave.
Excursus sobre as palavras irresponsáveis sobre a “defesa sempre legítima”
Gostaria de recordar o slogan irresponsável de um político italiano: “A defesa é sempre legítima”. Poderíamos nos perguntar o mesmo sobre a guerra: “A guerra de defesa é sempre legítima?”. A resposta é não. A razão humana, com base na experiência, estabeleceu que a “legítima defesa” deve ser provada no contexto, precisamente porque “nem toda defesa é legítima”. Os critérios de consideração da defesa fazem parte da sabedoria humana no que diz respeito ao homicídio individual.
Aparece aqui, a meu ver, um perfil muito delicado da questão. Ou seja, a diferença estrutural entre homicídio e guerra. Nunca se deve esquecer que a guerra – apesar de toda as nossas “éticas” internas à guerra (apesar de todas as especulações sobre o ius in bello, além do ius in bellum) – faz explodir toda ordem ética. É o princípio do domínio da força, que prevarica sobre tudo e não vê mais nada de “digno”. Na raiz dessa diferença fundamental, contudo, devemos lembrar que a sobreposição entre “razão” e “fé” nunca é garantida a priori. O motivo para sair definitivamente da lógica bélica é apenas uma “dignidade infinita do outro”, que, porém, corresponde à finitude de seu direito. Mas aqui, na raiz cristã da argumentação, há um problema histórico que ainda devemos elaborar.
A dignidade infinita e um novo magistério de bello
É preciso notar que o recente texto, que citei no início, tem em suas primeiras palavras (precisamente no número 1) algumas expressões impressionantes, que são muito úteis para compreender a correlação entre “razão” e “fé” na concepção da “dignidade infinita”. Eis o início do documento:
(Dignitas infinita) Uma dignidade infinita, inalienavelmente fundada no seu próprio ser, é inerente a cada pessoa humana, para além de toda circunstância e em qualquer estado ou situação se encontre. Este princípio, que é plenamente reconhecível também pela pura razão, coloca-se como fundamento do primado da pessoa humana e da tutela de seus direitos.
Um pouco mais adiante, o texto pretende identificar essa verdade ao longo de toda a história cristã: “Desde o início da sua missão, impelida pelo Evangelho, a Igreja se esforçou para afirmar a liberdade e para promover os direitos de todos os seres humanos” (n. 3). Curiosamente, a nota 3, que se segue justamente a essa afirmação, porém, cita (com o comentário “pondo atenção somente à época moderna...”) apenas documentos de 1891 em diante. Como isso é possível? Porque a elaboração eclesial foi lenta e prosseguiu a reboque das evidências culturais a partir do século XIX.
A pretensão de que se trata de uma “evidência da razão” tem todos os seus limites, por mais que seja uma profecia cultural totalmente respeitável. A razão é incontornável para a fé, mas a fé mostra continuamente à razão o seu limite. Por outro lado, a razão pode apagar o horizonte da fé, e, por sua vez, a fé pode tornar os comportamentos humanos totalmente irracionais.
Isso também ocorreu com o pensamento cristão e católico mais clássico. Apesar da ideia da “continuidade” do ensino doutrinal, a dignidade humana, como dignidade infinita, não é um conceito conhecido a Tomás de Aquino (mas também a nenhum outro teólogo até o século XIX).
Na grande questão da Summa Theologiae II II q 64 dedicada ao homicídio, o artigo 2 justifica a morte do pecador precisamente no nível da dignidade. Nos argumentos a favor, Tomás cita o Salmo: “De madrugada exterminarei todos os pecadores da região” (Salmo 101,8) e, no corpus, diz: “Com o pecado, o homem abandona a ordem da razão: por isso, decai da dignidade humana, que consiste em ser livre e em viver para si mesmo... Assim, embora matar um homem que respeita a própria dignidade seja algo essencialmente pecaminoso, matar um homem que peca pode ser um bem” (II II, 64, 2, ad 3), porque um homem mau é pior e mais nocivo do que uma fera, diz-se em conclusão, citando Aristóteles.
Não existe aqui nenhuma dignidade infinita: existe uma dignidade muito finita e subordinada a uma comparação entre vida vegetal, animal e humana. O homem que peca, nessa visão, perde a própria dignidade.
Conclusão
Uma cultura de guerra, como pecado contra a caridade, fundamenta-se em evidências históricas nas quais o homicídio como pecado contra a justiça pode ser justificado quando é contra um pecador. Essa “reserva” constitui um reservatório de violência potencial, que vai muito além das regras racionais de composição da relação entre agressão e defesa.
Há, portanto, uma evolução na forma de considerar a “dignidade” como “dimensão infinita” e que nunca pode ser perdida. Essa novidade, que começou entre os séculos XVIII e XIX, transformou gradual e profundamente tanto a concepção do homicídio quanto a concepção da guerra.
Creio que é fundamental, sobretudo hoje, precisamente para iluminar os percursos cristãos que geram violência, entrar nesse denso debate, sobretudo consigo mesmo e com as “zonas de sombra” da própria tradição (largamente comum a toda a cultura ocidental), que ainda pode deixar vestígios, até mesmo entre os católicos, dessa forma de concepção da (falta de) dignidade do pecador, que, por isso, se torna motivo suficiente para justificar sua redução a sujeito “sem dignidade”.
A desqualificação da “indignidade” do inimigo, que ainda hoje é proclamada não só pelos líderes políticos, mas também pelos líderes religiosos, implica uma perigosa distorção tanto da fé quanto da razão. Lucidamente, Dignitas infinita chama a atenção para isso, de forma urgente, embora não promova uma reformulação diferente das evidências de Santo Agostinho no século V e dos alertas da primeira metade do século XX.
No século XXI, a questão da guerra tornou-se mais complicada e exige, também do Magistério católico, respostas novas, que não podem simplesmente ser postas em continuidade com as respostas dos séculos V ou XX.
O “fenômeno guerra” é tão diferente, desde que a guerra se tornou “mundial” e começou a envolver estruturalmente os “civis inermes”, que a teologia deve atualizar em profundidade suas próprias categorias, para salvar os esclarecimentos que pode oferecer sobre o fenômeno.
Caso contrário, ela trai o fenômeno a cuja inteligência deveria servir e, com isso, trai também a si mesma.
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A guerra nega a dignidade humana. As três camadas do Magistério católico e sua difícil conexão. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU