17 Junho 2024
"Já se ouve clamores por mudanças radicais. Enquanto não superarmos a lógica em curso fracassaremos nos anseios de uma sociedade justa e pacífica. Os desastres ambientais se tornarão cada vez mais recorrentes, as guerras e a violência serão nossas companheiras permanentes e a humanidade continuará caminhando para o fosso", escreve Sandoval Alves Rocha, SJ.
Sandoval Alves Rocha é doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciências Sociais pela Unisinos/RS, bacharel em Teologia e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE, MG), membro da Companhia de Jesus (jesuíta), trabalha no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), em Manaus.
Associados ao Fórum das Águas do Amazonas e a organização Habitat para a Humanidade, diversos movimentos ambientais e lideranças comunitárias visitaram comunidades da periferia de Manaus, identificando situações de precariedade ou a total ausência dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário na capital amazonense. As visitas e atividades ocorreram no corrente mês, sendo concluídas no Dia do Meio Ambiente, agregando sabor e rebeldia às manifestações populares.
Participaram da empreitada os seguintes coletivos: Articulação de Mulheres do Amazonas, Articulação Amazônica dos Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro de Matriz Africana, Associação de Moradia Ana Oliveira, Central de Movimentos Populares, Equipe Itinerante, Faculdade de Informação e Comunicação (UFAM), Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas, Maloca Digital, Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais (UFAM), Instituto IAÇU, Instituto Sumaúma, Movimento Nacional de Luta pela Moradia, Movimento das Associações do Igarapé do Gigante, Observatório Socioambiental Encontro das Águas, Rede Jubileu, Remada Ambiental, Comitê da Bacia Hidrográfica do Tarumã Açu e União Nacional por Moradia Popular.
Os coletivos visitaram oito comunidades, onde se constatou a ocorrência de situações de grave impacto na vida de milhares de pessoas de diferentes zonas da cidade. As organizações perceberam a ausência de aparatos públicos fundamentais e a precariedade dos serviços da empresa Águas de Manaus, que opera atualmente a concessão de água e esgoto da capital amazonense. O abandono da população nas comunidades foi observado de perto, tomando dimensões assustadoras.
As comunidades vivem sob o olhar omisso das instâncias municipais, estaduais e federais. Direitos fundamentais, como a água potável e o saneamento de qualidade, a moradia digna, a saúde e a educação adequadas e o trabalho, não fazem parte da vida concreta destas populações. Nestas localidades, a luta pela vida não é somente uma retórica, mas constitui um verdadeiro desafio enfrentado cotidianamente. A vida é uma conquista de cada dia frente às condições desfavoráveis impostas pela cidade capitalista e pelo desinteresse dos poderes públicos vigentes.
A concessionária de água e esgoto, assim como a maioria das grandes empresas, aperfeiçoa diariamente formas de ampliar seus lucros à custa dos trabalhadores e da exploração da natureza, disponibilizando serviços precários a uns, negando serviços essenciais a outros e destruindo os corpos hídricos com poluição e maus tratos. Como seres parasitas, a concessionária suga dos mais pobres até a última moeda, aplicando tarifas exorbitantes e exigindo na justiça o retorno econômico dos serviços mal realizados.
Os povos indígenas do Parque das Tribos resistem a tal lógica, pois para eles a água é um bem comum oferecido gratuitamente pela natureza que é cingida de cuidado, respeito e gratidão. Para estas populações, a água, assim como a biodiversidade, não pertence a empresas privadas que as exploram para o próprio enriquecimento. Estes elementos naturais são seres sagrados e por isso não devem ser transformados em mercadorias em benefício de um sistema econômico injusto e insustentável. Segundo esta cosmovisão, a natureza e todas as suas expressões devem ser reverenciadas e tomadas como seres vivos e atuantes.
A ausência do poder público e da empresa de saneamento no bairro Puraquequara obriga a população encontrar por si saídas para as suas dificuldades, fazendo o que é possível para sobreviver. O Estado e a Concessionária se unem nesta cumplicidade. Eles fogem das suas responsabilidades legais, enquanto o povo é acometido por doenças de veiculação hídrica, conflitos envolvendo o uso da água e a violência da falta de saneamento.
Os depoimentos dos moradores são dramáticos, mostrando que a empresa ignora os lugares que não oferecem retorno econômico. Rei Davi, situada na zona leste da cidade, é uma das comunidades que não possuem serviços de abastecimento de água e nem sonha com o sistema de esgotamento sanitário. Um dos líderes desta localidade revelou que a empresa prometera chegar no lugar somente depois que se certificou de que haverá lucro no empreendimento, mesmo assim ainda não deu as caras. A esperança resiste…
Em Manaus, a implantação destes direitos está vinculada à geração de rendimentos para a concessionária, não importando quem e quantos ficam de fora do sistema. Trata-se de uma lógica perversa, pois a água não é um produto opcional para os seres humanos. A água é necessária e insubstituível. Condicionar o fornecimento de água ao pagamento de faturas para beneficiar uma empresa, significa colocar a decisão da vida ou da morte nas mãos de uma multinacional que tem o lucro como prioridade. Eis mais uma aberração capitalista que desconhece qualquer limite ético.
Já se ouve clamores por mudanças radicais. Enquanto não superarmos a lógica em curso fracassaremos nos anseios de uma sociedade justa e pacífica. Os desastres ambientais se tornarão cada vez mais recorrentes, as guerras e a violência serão nossas companheiras permanentes e a humanidade continuará caminhando para o fosso.
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Águas de Manaus suga dos pobres até a última moeda. Artigo de Sandoval Alves Rocha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU