Sistemas energético e alimentar são os “monstros da desestabilização climática”. Entrevista especial com Alexandre Costa

“O Brasil vai sediar a COP30 e precisa assumir um papel de liderança. É preciso ter liderança climática e ousar para se colocar à frente do enfrentamento desse desastre”, adverte o pesquisador

Foto: Cesar Lopes | PMPA

Por: Edição: Patricia Fachin | 14 Junho 2024

O emprego do termo “crise climática” é insuficiente para expressar as transformações em curso devido ao aquecimento global. A realidade apresentada, a exemplo da que acomete o Rio Grande do Sul desde as enchentes de maio, é de “caos climático”, afirma Alexandre Costa, físico e doutor em Ciências Atmosféricas.

Neste contexto, sublinha, a humanidade nem sequer pode falar que está vivenciando um processo de transição energética para alterar o cenário. “No máximo, podemos dizer que hoje existe uma adição energética de renováveis a uma matriz que segue sendo predominantemente fóssil. A demanda energética que cresceu de maneira exponencial, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, período que chamamos de grande aceleração, intensificou emissões de gases de efeito estufa, de CO2, por queima de carvão, petróleo e gás, cada vez maiores. Nesse caso, não houve substituição do carvão pelo petróleo e muito menos do petróleo pelo gás. Esses combustíveis fósseis foram sempre adicionados à matriz. A atual crise é evidentemente uma catástrofe associada à demanda crescente de energia por um sistema produtor de mercadorias. Isso precisa ficar claro”, acentua.

Na avaliação dele, dois são os “monstros da desestabilização climática”. De um lado está o sistema energético. “Ele é inflado, gigantesco e segue demandando por quantidades de energia cada vez maiores, cuja demanda não pode ser atendida por renováveis sem que isso implique uma quantidade enorme de impactos das próprias renováveis. Nessa armadilha, os combustíveis fósseis seguem sendo utilizados”, descreve. Do outro lado está o sistema alimentar. “O crescimento substancial do consumo de carne, em especial da carne de ruminantes, acrescenta uma quantidade significativa de gases de efeito estufa na atmosfera, amplifica brutalmente o processo de superaquecimento planetário. Se considerarmos todos os fatores envolvidos nas emissões – substituição de áreas silvestres por área de agropecuária, emissões associadas à produção de carne, transporte, refrigeração e emissões associadas –, perceberemos o seguinte: a produção de um simples quilograma de carne bovina implica, na média global, na emissão de 60 quilogramas de CO2 equivalente”.

Estas declarações foram feitas por Alexandre Costa na videoconferência “Emergência climática. A era da ebulição global, suas causas e impactos”, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em 28-05-2024, enquanto o RS vivenciava os principais efeitos do caos climático, social e político em decorrência dos últimos eventos extremos.

Segundo o pesquisador, no atual contexto, “a agenda de adaptação e construção de resiliência é urgente”, mas, observa, “precisamos entender uma coisa de uma vez por todas – e nisso sinto que há contradições na agenda do atual governo, porque alguns setores defendem a exploração do petróleo até a última gota: se queremos conter o aquecimento global, se queremos nos preparar para o inevitável e evitar os piores cenários, é preciso zerar o desmatamento e encerrar a era dos combustíveis fósseis”.

A seguir, publicamos a conferência de Alexandre Costa no formato de entrevista. O pesquisador também apresenta projeções climáticas para a América Latina.

Alexandre Araújo Costa (Foto: Reprodução Youtube)

Alexandre Araújo Costa é professor da Universidade Estadual do Ceará. Formado em Física, é doutor em Ciências Atmosféricas pela Universidade Estadual do Colorado, com pós-doutorado na Universidade Yale. Foi um dos autores principais do primeiro relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Militante ecossocialista e ativista climático, edita o blog “O que Você Faria se Soubesse o que Eu Sei”, assim como o canal no YouTube de mesmo nome. É um dos coordenadores do fórum de articulação Ceará no Clima.

Confira a entrevista.

IHU – Qual é a diferença entre mudanças climáticas e o novo termo que tem sido empregado mais recentemente, ebulição climática?

Alexandre Costa – Não chamamos mais o que está acontecendo de mudanças climáticas, tampouco de aquecimento climático. Estamos falando de emergência climática, ebulição global, superaquecimento global e caos climático. Inclusive, o termo “crise climática” é insuficiente porque crise significa algo que se pode superar. Temos que fazer todo o esforço para não agravar substancialmente um quadro que já é muito grave e que deve, no melhor cenário, se manter em um patamar ligeiramente mais severo do que o que assistimos hoje.

IHU – Como a ebulição global nos afeta?

Alexandre Costa – Existem duas maneiras de contar essa história. Na primeira, que é a versão curta, tragédias como a que aconteceram no RS seriam atribuídas ao uso de combustíveis fósseis, emissões de gases de efeito estufa, desmatamento e outras atividades humanas que geram eventos extremos cujas imagens terríveis estão no imaginário de todos e se manifestam nos medos e anseios através de termos que não eram conhecidos até bem pouco tempo, como ecoansiedade, depressão climática etc.

Na versão mais longa desta história, trata-se de uma questão de balanço energético. Eu explico. O clima de um planeta é estável, segundo a primeira lei da termodinâmica – uma lei básica da física –, se os fluxos de entrada e saída de energia são equivalentes. No entanto, se houver um desequilíbrio em um desses fluxos ou em ambos, essa condição pode ser alterada. Por exemplo, se mais energia entra no sistema do que sai dele, haverá um crescimento da energia interna. Isso equivale a dizer que o objeto planeta Terra se aquece. Do contrário, se o fluxo de saída é maior do que o de entrada haverá resfriamento do planeta. Essa é uma lei física que vale para qualquer objeto do universo. Essencialmente o que acontece hoje é uma condição em que está entrando mais energia no sistema Terra do que saindo.

Emergência climática. A era da ebulição global, suas causas e impactos:

IHU – O que afeta os fluxos de entrada e saída de energia do planeta?

Alexandre Costa – O fluxo de entrada de energia é função da magnitude do fluxo de radiação solar. Seria essa a principal causa do desequilíbrio dos fluxos de entrada e saída de energia? A resposta é não. Embora o sol tenha uma longa tendência de evolução e a tendência seja que seu brilho aumente gradualmente na escala de bilhões de anos, esse processo ocorre de forma muito lenta. Na realidade, hoje o fluxo de radiação solar é apenas 0,5 maior do que no início da Era Cenozoica [era geológica iniciada há aproximadamente 65,5 milhões de anos]. Os ciclos solares que tipicamente perduram na escala mais curta, por 11 anos, não trazem alterações de longo prazo na média da irradiação solar. Então o sol não é o fator principal dessa mudança nos fluxos energéticos.

Na realidade, tampouco é o albedo, ou seja, a capacidade do planeta de emitir radiação. A resposta a esse desequilíbrio entre os fluxos de entrada e saída de energia está justamente na mudança de intensidade do efeito estufa, que tem a ver com a concentração de determinados gases minoritários na atmosfera, justamente aqueles cujas propriedades físicas permitem que as suas moléculas interajam com a radiação eletromagnética na faixa de comprimento de onda do infravermelho. Em outras palavras, interajam com o calor, com a radiação, que, segundo as leis da física, é emitida por qualquer objeto a depender da sua temperatura.

A Terra, por exemplo, emite radiação infravermelha para o espaço na ordem de 15 micrômetros. Vários gases possuem bandas de absorção de radiação, ou seja, são capazes de capturar essa energia nesta faixa do espectro. Dentre eles, estão o vapor d’água e o ozônio, mas esses são dois gases de vida curta na atmosfera. O vapor d’água, por sofrer processos de condensação e sublimação quando em excesso, ou seja, mudanças de fases que eliminam o componente gasoso da atmosfera. O ozônio, por ser altamente radioativo do ponto de vista químico.

Gases de efeito estufa de vida longa

Somente gases – alguns chamados de gases de efeito estufa de vida longa – com longo tempo de permanência na atmosfera têm a possibilidade de se acumularem caso haja grandes emissões dessas substâncias. Em especial, destacamos o dióxido de carbono, o metano e o óxido nitroso. Esses três gases respondem por bem mais do que 90% da variação da temperatura sofrida pelo planeta desde o período pré-industrial até hoje. Segundo dados de 2019, publicados no último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC em 2021, há uma concentração atual de 410 partes por milhão de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera em contraste com 280 partes por milhão que ficaram praticamente constantes por quase dois milhões anos antes da Revolução Industrial.

Para que tenhamos uma ideia da velocidade do processo, de lá para cá a atmosfera ganhou mais de 10 partes por milhão de CO2, ou seja, ultrapassamos a barreira de 420 partes por milhão. No caso do metano, ocorre algo parecido: em contraste com 700 partes por bilhão, que era a concentração desse gás antes da Revolução Industrial, atualmente ultrapassamos a barreira de 1.900 partes por bilhão. É praticamente o triplo do que existia anteriormente.

Algo parecido também acontece com o dióxido nitroso. Esses três gases têm se acumulado em grandes quantidades na atmosfera terrestre, tornando-a mais opaca ao infravermelho e impedindo que o fluxo de saída de calor seja correspondente ao fluxo de entrada de radiação solar. Ora, se o fluxo de saída de calor agora é reduzido porque uma parcela maior dessa energia é absorvida no meio do caminho pela atmosfera, o que surge é essencialmente um desequilíbrio.

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IHU – Quais atividades mais emitem gases de efeito estufa?

Alexandre Costa – Essas emissões não são majoritariamente naturais. A queima de combustíveis fósseis é o principal fator, hoje, de emissão de CO2, secundado pelo desmatamento. Também existem emissões não neutras da agropecuária, geradas pela fermentação entérica no aparelho digestivo de animais ruminantes, como os grandes rebanhos bovinos presentes em nosso país. Mesmo que não desmatássemos mais um metro quadrado de floresta para a ampliação da pecuária, ainda assim o tamanho desse rebanho implicaria volumosas emissões de metano, unicamente pela fisiologia do aparelho digestivo desses animais, que contam com bactérias que produzem fermentação anaeróbica a fim de quebrar moléculas como as da celulose e, nesse processo, a fermentação anaeróbica produz metano. O metano é liberado por esses animais e contribui fortemente para o acúmulo desse gás na atmosfera.

O óxido nitroso vem da decomposição dos resíduos, incluindo a quebra de moléculas como aquelas presentes em fertilizantes nitrogenados, largamente utilizados nas monoculturas. Nesse sentido, emissões que não são neutralizáveis por fotossíntese são um fator crítico. Soma-se a esses processos o metano que escapa da própria extração e demais operações de combustíveis fósseis, as chamadas emissões fugitivas, e outros processos, incluindo a decomposição de resíduos, a produção de cimento e a emissão de gases halogenados, aqueles usados para refrigeração e propulsão – estou falando de geladeiras e aparelhos de ar-condicionado.

Acumulação de gases de efeito estufa

A somatória desse conjunto de fontes de emissão tem produzido acumulação de gases de efeito estufa, tem intensificado o efeito estufa terrestre e tem reduzido o fluxo de saída de energia, ou seja, o fluxo de calor para o espaço, fazendo com que o planeta acumule calor e eleve sua temperatura. Essas emissões chegaram em uma escala impressionante. Hoje, ultrapassamos a emissão de 40 bilhões de toneladas de CO2 anualmente. Se somarmos esse valor aos outros gases, é como se essa conta ultrapasse largamente os 50 bilhões de toneladas.

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O aumento das emissões de CO2 tem duas fontes. Uma é relativa à mudança do uso da terra, ou seja, ao desmatamento, à perda de cobertura vegetal e à decomposição da matéria orgânica vegetal em contato com o ar, produzindo CO2. Lamentavelmente essa situação se mantém em uma escala semelhante desde antes de meados do século XIX, contribuindo com quatro bilhões de toneladas de CO2 anuais.

A outra fonte de emissão de CO2 – e a principal delas – é justamente a queima de combustíveis fósseis, que se equiparou ao desmatamento no início do século XX. Cerca de 37 bilhões de toneladas de CO2 são emitidos pela composição da queima de carvão, petróleo e gás fóssil.

Demanda energética

A demanda de energia necessária para geração de eletricidade, aquecimento, produção de bens de consumo, transporte etc. é simplesmente gigantesca. Ela se aproxima cada vez mais de 200 mil terawatt-ano. Essa enorme demanda energética implica que apenas o uso muito intensivo de diversas fontes de energia consegue supri-la. Entretanto, os combustíveis fósseis não substituíram a biomassa tradicional; eles se somaram a ela no atendimento de energia cada vez maior. Os combustíveis fósseis somados compõem hoje a maior parte do consumo de energia primária do planeta. A energia hidráulica, nuclear, solar, eólica e outras renováveis compõem uma fração minoritária no valor total de consumo energético.

Quando as renováveis chegam, se estabelecem e crescem, existem dois problemas: primeiro, elas não atendem nem de longe a demanda energética global porque essa demanda é muito grande; segundo, não podemos nem sequer falar que existe hoje uma transição energética – nenhum combustível foi de fato substituído por outro. Ao contrário, as fontes energéticas têm se somado umas às outras para o atendimento de uma demanda de energia cada vez maior para atender àquilo que não é verdadeiramente uma necessidade humana. Estou falando de bens materiais e serviços que seriam perfeitamente dispensáveis ou cuja produção poderia ser muito mais eficiente, como bens de luxo, bens fúteis, objetos descartáveis e comercializados em uma perspectiva individualizada.

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Adição energética

Nem sequer podemos falar de transição energética. No máximo, podemos dizer que hoje existe uma adição energética de renováveis a uma matriz que segue sendo predominantemente fóssil. A demanda energética que cresceu de maneira exponencial, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, período que chamamos de grande aceleração, intensificou emissões de gases de efeito estufa, de CO2, por queima de carvão, petróleo e gás, cada vez maiores. Nesse caso, não houve substituição do carvão pelo petróleo e muito menos do petróleo pelo gás. Esses combustíveis fósseis foram sempre adicionados à matriz. A atual crise é evidentemente uma catástrofe associada à demanda crescente de energia por um sistema produtor de mercadorias. Isso precisa ficar claro.

Desestabilização climática

O primeiro componente do monstro da desestabilização climática é o nosso sistema energético: ele é inflado, gigantesco e segue demandando quantidades de energia cada vez maiores, cuja demanda não pode ser atendida por fontes renováveis sem que implique uma quantidade enorme de impactos das próprias renováveis. Nessa armadilha, os combustíveis fósseis seguem sendo utilizados.

Mas existe outro componente do monstro da desestabilização climática: o nosso sistema alimentar. O crescimento substancial do consumo de carne, em especial da carne de ruminantes, acrescenta uma quantidade significativa de gases de efeito estufa na atmosfera, amplifica brutalmente o processo de superaquecimento planetário. Se considerarmos todos os fatores envolvidos nas emissões – substituição de áreas silvestres por área de agropecuária, emissões associadas à produção de carne, transporte, refrigeração e emissões associadas –, perceberemos o seguinte: a produção de um simples quilograma de carne bovina implica, na média global, na emissão de 60 quilogramas de CO2 equivalente.

O crescimento global do consumo de carne representa um enorme problema para a biodiversidade: subtração de ecossistemas silvestres por causa da expansão da agropecuária – seja em busca de áreas para pastagem, seja em busca de monocultura para a produção de ração animal, como é o caso da soja brasileira devastando o cerrado –, uso de água e de fertilizantes nas monoculturas (que implica na desestabilização do ciclo biogeoquímico de nitrogênio e do fósforo), poluição com substâncias que incluem agrotóxicos para essas lavouras, mas também antibióticos e outras substâncias que são sistematicamente administradas nesses animais. O consumo exacerbado de carne pela humanidade contribui efetivamente para agravar o problema.

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Somando esses fatores, existe hoje um acúmulo de gases de efeito estufa que produz um desequilíbrio energético da ordem de 2,72 watts por metro quadrado. Como a quantidade de luz solar que chega ao nosso planeta não tem mudado na escala de séculos, mas a intensidade do efeito estufa agora é significativamente maior, fica um saldo de energia porque chega a mesma energia, mas sai menos energia para o espaço. O resultado é que 2,72 watts por metro quadrado de energia se acumulam no planeta.

Esse número parece não nos dizer muito, mas, imagine multiplicá-lo pela área da Terra: a área é 4 x π (Pi) x o raio médio ao quadrado. Nesse caso, chegamos a um número formidável, equivalente à energia liberada por 21 bombas de Hiroshima a cada segundo ou 650 milhões dessas bombas por ano. Essa é a quantidade de calor que, anualmente, é armazenada pelo sistema climático terrestre em função do desequilíbrio energético causado pela intensificação do efeito estufa. Nós estamos, literalmente, declarando guerra ao sistema climático terrestre, bombardeando-o com 660 milhões de bombas de Hiroshima por ano. Isso é energia suficiente para derreter calotas polares, elevar o nível dos oceanos, aquecer a média da temperatura global e produzir toda sorte de eventos extremos.

Anomalias de temperatura

O efeito disso, como temos observado, não é apenas no aquecimento do planeta – como fica evidenciado a partir do registro da série de anomalias de temperatura anuais, calculada pela Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (National Oceanic and Atmospheric AdministrationNOA), dos EUA –, mas a aceleração desse processo a partir da década de 1970 em particular. A taxa de aquecimento entre 2003 e 2023 é de 0,24ºC por década ou, extrapolada para um século, de 2,4ºC. Como nós já aquecemos o planeta quase 0,6ºC do período pré-industrial até o final do século passado. Isso significa que, mantido o ritmo atual, sem uma aceleração extra além da que já existe agora, chegaremos no fim do século XXI com 3ºC. Consensualmente, na comunidade científica, isso é visto como algo catastrófico.

Aceleração do aquecimento global

Temos percebido a aceleração do aquecimento global de forma visível desde o ano passado. Durante os três anos anteriores a 2023, tivemos eventos de La Niña. Como, durante a fase de La Niña o oceano Pacífico equatorial está mais frio, esse processo mascarou o aquecimento global subjacente. Quando em 2023 emergiu o El Niño, o aquecimento voltou com força total. Passamos quase todo o ano de 2023, em especial a partir de maio, quebrando recordes atrás de recordes de temperatura. Chegamos a passar a maior parte dos meses de maio em diante com temperaturas próximas ou acima de 1,5ºC de aquecimento global em relação ao período pré-industrial, fechando 2023 com uma anomalia de 1,5ºC.

Iniciamos 2024 na mesma toada. Agora, com o enfraquecimento do El Niño, a temperatura se aproxima dos valores de 2023, mas, nem de longe, retorna ao que seria uma condição mais próxima ao normal. Pelo contrário, permanece num patamar bastante elevado. Como os oceanos absorvem mais de 90% do excedente de energia associado ao superaquecimento global, ou seja, 600 milhões de bombas de Hiroshima por ano, eles acumulam a maior parte do calor. Nesse caso, os anos de 2023 e 2024 estão muito acima da média de todos os outros anos. Estamos falando da ordem de quatro ou cinco desvios de padrão em relação ao que seria o normal, considerando o normal de 1982 a 2011. Os oceanos do planeta estão superaquecidos e têm muita energia.

IHU – Como está a anomalia de temperatura dos oceanos em relação à média de 1971 a 2000?

Alexandre Costa – Hoje, a La Niña está começando a se desenvolver no oceano Pacífico, que vai da costa do Peru rumo ao centro da bacia do Pacífico. Mas, talvez, o mais extraordinário é o que está acontecendo na bacia tropical do Atlântico: tanto o Atlântico Norte quanto o Atlântico Sul estão com temperaturas muito acima da média, ultrapassando a barreira de 2ºC acima do normal. Isso produz um suprimento extra de umidade que vem do oceano Atlântico. Imagine o que isso causa no nosso país em termos de eventos severos, uma vez que o Brasil é um país costeiro à bacia do Atlântico Sul. Imagine a anomalia gigantesca que aparece no Atlântico Norte, estendendo-se desde a costa da África e da Península Ibérica até o Caribe. Imagine o que isso pode provocar e produzir em termos de furacões.

Superaquecimento oceânico

A NOA anunciou a previsão para a temporada de furacões deste ano, que, com 85% de chances, será acima do normal, podendo produzir furacões com intensidade 4 e 5, que tem capacidade devastadora. Oceanos muito quentes são fábricas de eventos extremos. Esse aquecimento é inédito, não tem paralelo nos últimos dois mil anos. Esse aquecimento é tão inédito, que chegamos provavelmente às temperaturas mais altas que o planeta experimentou nos últimos 120 mil anos. Saímos do intervalo de temperaturas do Holoceno, ou seja, da época geológica iniciada no fim da última glaciação, caracterizada por um clima bastante estável. Nos aproximamos do pico de temperatura ocorrido no último interglacial, há 125 mil anos. Se superarmos esse patamar do interglacial anterior, estaremos batendo o recorde de temperatura dos últimos 800 mil anos. Não é apenas a magnitude que é extraordinária, mas a velocidade do processo. Na saída da última era glacial, o planeta aqueceu 6ºC em seis mil anos. Aquecemos 1,2ºC em cem anos. O ritmo de aquecimento hoje é de 2,4ºC em cem anos, 0,24ºC por década. O ritmo atual de aquecimento é 40 vezes mais acelerado do que a última grande mudança climática natural.

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IHU – O que pode estar conduzindo a aceleração do aquecimento global?

Alexandre Costa – Temos algumas hipóteses. A mais óbvia é que há um aumento das emissões de gases de efeito estufa. Não é que mantemos as emissões muito altas; estamos acelerando-as. A velocidade com a qual estamos jogando gases de efeito estufa na atmosfera é cada vez maior. Em 1900, emitimos menos de dois bilhões de toneladas de CO2. Depois, 120 anos mais tarde, emitimos 37 bilhões de toneladas por queima de combustíveis fósseis, sem contar as emissões de CO2 por desmatamento e as emissões dos demais gases de efeito estufa. Houve um crescimento exponencial dessas emissões.

Existem outros processos igualmente preocupantes, processos de retroalimentação associados ao próprio aquecimento, incluindo a perda da capacidade dos sistemas naturais em absorver o CO2. Basicamente o que absorve CO2 são a biosfera, os continentes e os oceanos, e os próprios oceanos dissolvem o CO2 diretamente a partir do ar, tornando-se mais ácidos, o que já é uma tragédia por si só.

Acumulação de CO2

As concentrações de CO2 têm aumentado, mas mais rapidamente que o aumento das concentrações é o aumento da taxa de acumulação. Em 1970, havia 325,7 partes por milhão de CO2 na atmosfera. Esse gás estava se acumulando à taxa de 1,1 partes por milhão na média de dez anos. Passados dez anos, a atmosfera conteria 11 partes por milhão de CO2 a mais. Acontece que nas décadas subsequentes essa taxa foi acelerando e o acúmulo de CO2 passou de 1,1 parte por milhão ao ano, nos anos 1990, para mais de 2 partes por milhão anuais na década passada. Nos últimos cinco anos, a taxa de acumulação de CO2 tem sido 2,5 partes por milhão ao ano. Ultrapassamos a barreira dos 424 por milhão e estamos a cada década acrescentando 25 partes por milhão de CO2 na atmosfera.

A prova de que estamos cada vez mais próximos de um limite perigoso do aquecimento global é que a faixa de 1,5ºC considerada como consenso científico e político, que permite o aquecimento administrável, está bem aí, no nosso nariz. O ano de 2023 já flertou com esse limite, colocando as temperaturas globais por vários meses acima dele.

IHU – Esta condição é irreversível?

Alexandre Costa – Não, porque em refluindo o El Niño, e o oceano Pacífico passando para uma condição neutra, a temperatura deve cair para ligeiramente abaixo de 1,5ºC. Mas a ultrapassagem irreversível desse patamar está muito próxima. Se, em 2014, as projeções eram de que ultrapassaríamos 1,5ºC em 2045, com a aceleração do aquecimento global na última década, estamos, na verdade, muito mais próximos de entrar de vez no terreno do aquecimento global perigoso. Estou falando da ultrapassagem do limite de 1,5ºC já em 2033, antes da metade da próxima década.

IHU – O que caracteriza o aquecimento global perigoso?

Alexandre Costa – Caos climático. Multiplicação e intensificação de eventos extremos com redução do tempo de recorrência. Eventos extremos são ondas de calor, secas, chuvas intensas, ciclones tropicais e extratropicais. Estamos falando de processos que têm uma base estatística.

Por que os extremos se multiplicam tanto? Os extremos são raros, eles aparecem nas caudas de distribuição. No caso de temperatura média, o grosso das temperaturas em um clima estabilizado giraria em torno de zero grau de anomalia. Obviamente, alguns meses, dias ou anos seriam mais quentes do que o esperado para aquele período ou mais frios, e teríamos eventos quentes e frios igualmente distribuídos.

Não é que eventos extremos não acontecessem no passado. É uma falácia usar a enchente de 1941 no RS como evidência de que não tem nada acontecendo. Eventos extremos aconteciam no passado. O que acontece, no entanto, é que quando muda a média – isso supondo qualquer tipo de deslocamento da média – para valores de temperatura maiores, os eventos quentes, que antes eram raros, se tornam muito mais frequentes. Mas não só isso; eventos inéditos aparecem. Este é o processo que temos observado. A partir do momento em que a temperatura média subiu, a distribuição de temperatura foi deslocada e não só a média de temperatura aumentou, mas aumentou também a ocorrência de temperaturas muito altas. Mas é mais do que isso. Não temos apenas deslocamento na média, mas mudanças no comportamento dos eventos extremos na variabilidade e mudanças de simetria na curva dos eventos. Com o aquecimento desenfreado, estamos tornando parte do planeta inabitável.

IHU – Pode exemplificar a variabilidade de eventos?

Alexandre Costa – Por exemplo, existem os extremos secos e úmidos porque o ciclo hidrológico é extremamente afetado por conta do aquecimento global. A atmosfera é um reservatório de água que, segundo as leis da física, é capaz de guardar maior vapor d’água quanto maior for a temperatura. Se a atmosfera é um reservatório, enche-se a atmosfera com vapor e, quando se chega à saturação, a atmosfera está cheia de vapor e ocorrem chuvas, precipitações. A evaporação abastece a atmosfera e a precipitação devolve essa água para o estoque da superfície. A atmosfera mais quente guarda mais vapor d’água e o aquecimento torna a atmosfera um reservatório de vapor d’água maior.

Ora, cabendo mais vapor d’água na atmosfera, ela vai precisar de mais reserva para saturar. Isso implica que as secas serão mais severas. Por outro lado, uma vez chegando ao ponto de saturação, tem mais vapor para produzir nuvens e produzir chuva. Então as chuvas são mais intensas e concentradas. Os dois extremos, seco e úmido, são exacerbados como resultado desse processo. Essa condição já tem sido observada.

Hoje, o planeta tem cerca de 6% a mais de vapor d’água do que em meados do século. Essas são observações sobre a umidade específica do planeta. As observações mostram que a ciência estava certa quando prognosticava essa tendência. Hoje, eventos de precipitação severa estão 30% mais frequentes e cerca de 7% mais intensos. Os eventos extremos de chuva se tornam 50% mais frequentes e 10% mais intensos. Hoje, as secas já estão 70% mais frequentes. Com 1,5ºC, as secas se tornam duas vezes mais frequentes e a cada grau de aquecimento, os eventos extremos se intensificam.

IHU – Quais as projeções climáticas para a América Latina?

Alexandre Costa – Num cenário intermediário, a tendência é que em alguns lugares haja mais secas na América Central, no México, no leste da Amazônia e na parte da costa leste do Brasil. No sul brasileiro, no Uruguai e no norte da Argentina, a projeção é de mais chuvas. Na média, não parece mudar muito no total, mas muda a distribuição.

De outro lado, há uma tendência de aumento de precipitação mesmo em regiões em que a tendência é a chuva total do ano diminuir. A chuva total do ano diminui, mas a chuva em um dia aumenta. A projeção é de uma ligeira redução da precipitação em um cenário de emissões intermediário. No longo prazo, uma redução de 2% das chuvas totais na América Latina. Mas a precipitação diária aumenta 14%, ou seja, um pouco menos de chuva no total e muito mais chuvas concentradas em um único dia. Essa é a tendência. Essas são características dos eventos extremos que ocorrem graças a um ciclo hidrológico modificado pelo aquecimento global.

Eventos compostos

Outra caraterística do aquecimento global é o que chamamos de eventos compostos. O Brasil foi e segue sendo palco de um exemplo tragicamente representativo disso. A cheia em Porto Alegre não aconteceu sozinha; veio com uma onda de calor, localizada no Brasil central, que provocou uma mudança no escoamento dos fluxos de umidade da Amazônia e o branqueamento severo de corais na costa do Nordeste. Parte da umidade veio dos rios voadores, mas parte veio do oceano. Oceano quente produz branqueamento de coral. Águas quentes demais destroem a simbiose dos corais e algas. Isso é terrível porque é justamente a simbiose entre corais e água que garante alimento e oxigenação para aquele ecossistema todo. Esses fatores todos estão interligados e têm a ver com os padrões do superaquecimento global para a América do Sul e a bacia do Atlântico sul. Precisamos entender que risco climático não é só o evento em si, não é só a ameaça; ele é produto da sobreposição de quão expostos e vulneráveis estão as comunidades, as populações e os ecossistemas.

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IHU – Todos estamos igualmente expostos? Somos todos igualmente vulneráveis?

Alexandre Costa – Muitos estão falando de adaptação. Sim, precisamos urgentemente medidas para adaptar as nossas cidades e estruturas para aquilo que já é inevitável. Problemas da ordem que aconteceram no RS vão ser mais frequentes, infelizmente. Meu receio maior é que adentremos um terreno ainda mais movediço do que o do aquecimento de 1,5ºC, se ultrapassarmos a fronteira superior do estabelecido no Acordo de Paris, que diz textualmente que precisamos manter o aquecimento global abaixo de 2ºC. Nesse caso, vamos estar simplesmente chegando a um ponto limite da adaptação resiliente.

Agenda de adaptação

A agenda de adaptação e construção de resiliência é urgente. Precisamos criar sistemas de alerta, mecanismos de evacuação, capacitação e aparelhamento da Defesa Civil. Precisamos impedir que o regramento ambiental seja ainda mais destruído do que já é. Mas precisamos entender uma coisa de uma vez por todas – e nisso sinto que há contradições na agenda do atual governo, porque alguns setores defendem a exploração do petróleo até a última gota: se queremos conter o aquecimento global, se queremos nos preparar para o inevitável e evitar os piores cenários, é preciso zerar o desmatamento e encerrar a era dos combustíveis fósseis. O Brasil vai sediar a COP30 e precisa assumir um papel de liderança. É preciso ter liderança climática e ousar para se colocar à frente do enfrentamento desse desastre.

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