15 Junho 2024
No Brasil, ressoa o eco de que durante a ditadura as pessoas viviam em maior segurança. O que ressoa é a sombria litania de que “com Franco as pessoas viviam melhor”.
O artigo é de Juan Arias, jornalista, publicado por El País, 13-06-2024.
Por muitas razões, o Brasil acompanhou as atormentadas eleições europeias mais de perto do que no passado, com os olhos postos numa possível vitória da extrema-direita. A primeira razão foi a situação política deste país onde, apesar da vitória do progressista Lula da Silva, a direita, a do líder golpista Jair Bolsonaro, continua a lutar para se manter viva.
O analista político Merval Pereira saiu imediatamente para tranquilizar as forças progressistas. Segundo ele, os resultados “não significam que a União Europeia esteja à beira de ser dominada pela direita nem que o mundo esteja a caminhar inexoravelmente nessa direção”. Ele não nega, porém, que o resultado “poderá ter consequências no Brasil, que desde 2018 é palco de uma disputa entre esquerda e direita, representando um retrocesso político com graves consequências”.
O eco que hoje ressoa no Brasil, no sentido de que durante a ditadura as pessoas viviam melhor e com maior segurança, me fez lembrar – e o terá feito naqueles como eu que viveram a grave Guerra Civil e os 40 anos de obscurantismo franquista – que o que ressoa é a sombria litania de que “com Franco as pessoas viviam melhor”. É repetido por quem não sofreu as violências e os horrores daquela ditadura que parece querer ressuscitar. Não, com Franco as coisas eram sempre piores porque os sinos do medo e da obediência ao regime tocavam à custa da própria vida. Numa folha de papel que foi entregue ao generalíssimo junto com a xícara de café depois do almoço, estavam os nomes dos que seriam mortos e Franco se divertiu desenhando uma flor ao lado de cada um dos condenados à morte. Ironia terrível!
Foi violência com tons macabros de vingança. Lembro-me que um amigo meu, advogado de Madri, me disse com horror que lhe telefonaram para o caso de querer participar naquela manhã na tortura do homem que tinha sido seu amigo e depois se distanciaram. Eles lhe deram a entender que ele teve a oportunidade de se vingar participando pessoalmente do rito de tortura de seu ex-amigo.
Talvez por essas lembranças e outras que prefiro não reviver, sinto um arrepio ao ouvir hoje que a vida era melhor com Franco. E não se trata de discutir se uma direita democrática é melhor para a própria democracia do que uma esquerda corrupta. O que não há dúvida é que a liberdade, de expressão e de pensamento, será sempre melhor que a ditadura de qualquer cor.
Às vezes, aqui no Brasil, jovens jornalistas que conhecem minha longa trajetória jornalística me perguntam como era a vida na Espanha na época do líder, abençoado até pelo Vaticano com os privilégios concedidos àquele regime de terror que se apresentava como um defensor do catolicismo.
Hoje vou lhes contar uma anedota que vivi em Madri, quando em 1966 o regime de Franco convocou um referendo sobre o regime para comemorar os 25 anos da Guerra Civil. O plebiscito obteve naturalmente 95,90% de apoio ao líder. Foi então que vivi um momento de preocupação com a polícia franquista. Eu vim da Itália. Nesse ano, o toureiro El Viti ganhou o prêmio anual e fui convidado a entregar-lhe o prémio no tradicional jantar desse evento em Madri. Pediram-me para dizer duas palavras ao entregar-lhe o troféu. Com prudência foi entendido. Por toda a cidade, os cartazes gigantes “25 anos de paz” chamaram a atenção.
Contei aos presentes naquele jantar que estavam lotados no hotel que quando me virei encontrei uma cidade coberta de cartazes que diziam: “25 anos de paz”, mas que o importante é que foram “25 anos de paz”, e não da ordem. Quando saí do jantar, dois policiais estavam me esperando na porta. Eles queriam que eu explicasse melhor o que eu queria dizer. Tentei explicar a diferença entre ordem e paz, que a ordem se impõe com a força e a paz se consegue com a liberdade. Eles olharam para mim como se eu fosse um marciano. Um dos policiais me disse para ser mais claro: “Eu quis dizer que enquanto a paz se consegue com a liberdade, a ordem se impõe com a força”. Eles não deveriam ter entendido. Eles me perguntaram o que eu estava fazendo em Roma. Respondi que estudei filosofia. Os dois policiais se entreolharam e me soltaram.
Hoje, a diferença entre paz e ordem permanece viva como duas categorias que definem a existência e explicam em parte a turbulência política no mundo entre esquerda e direita, que lutam para competir. É verdade, talvez, que no tempo de Franco as pessoas saíam às ruas sem medo até o amanhecer. A ordem estava garantida. A punição para quem tentasse quebrá-lo era paga na forma de tortura e fuzilamentos sumários.
É verdade que hoje o ressurgimento da extrema-direita se deve em parte ao fato de a democracia ter adormecido um pouco e ter relegado para segundo plano o problema da violência que assola o mundo e da qual essa extrema-direita, a da sua paixão procura de armas e isso dá origem a novas tentações de impor a ordem à custa do sacrifício da paz.
Apesar de toda a turbulência política que abala perigosamente o mundo como um todo, tal como quando era ainda jovem, continuo a acreditar que a paz só pode ser construída com o diálogo e a colaboração entre as pessoas e não com o medo dos demônios do medo e da violência.
Não! Com Franco as pessoas viviam pior, com maior violência, com mais fome e sem horizontes de esperança de poder saborear os frutos maduros da liberdade.
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Você realmente viveu melhor com Franco? Artigo de Juan Arias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU