08 Março 2019
Como a cultura se comporta diante cenários políticos de autoritarismo e censura moralista? Dois filmes fundamentais — um sobre a Guerra Civil espanhola, outro do Brasil em tempos de ditadura, entram em cartaz.
O comentário é de José Geraldo Couto, crítico de cinema e tradutor, publicado por Instituto Moreira Salles - IMS, 01-03-2019.
Estão chegando aos cinemas dois documentários que, à primeira vista, não poderiam ser mais contrastantes: o espanhol O silêncio dos outros, de Almudena Carracedo e Robert Bahar, e o brasileiro Tá rindo de quê?, de Claudio Manoel, Álvaro Campos e Alê Braga. No entanto, ambos têm um tema em comum: as variadas formas de reagir a uma situação de tirania e opressão.
O filme espanhol, produzido por Pedro Almodóvar e premiado em Berlim, começa mostrando uma anciã em seu casebre, prendendo os cabelos brancos e depois saindo pelas ruas de seu vilarejo, amparada por um andador. À beira de uma estrada ela diz, com uma voz débil e rouca que é quase um sussurro: “Foi aqui que jogaram o corpo da minha mãe. Não deixaram que a família o levasse ao cemitério”.
Em seguida, sobre uma rápida sucessão de impactantes imagens de arquivo, resume-se a tragédia da Espanha no século 20: o levante militar de Franco, a Guerra Civil e a ditadura fascista que se seguiu por quatro décadas, culminando com a lei da anistia de 1977, também chamada de Pacto do Esquecimento. Mas é possível esquecer, “passar uma borracha”, “virar a página”, como disseram os políticos que aprovaram a lei? Quais são as consequências desse apagamento?
Corta para um homem de uns setenta anos que caminha por algumas quadras centrais de Madri, conversando com a câmera, até mostrar o prédio onde mora o sujeito que o torturou há cinquenta anos, Antonio González Pacheco, o famigerado “Billy, el niño”, uma espécie de Brilhante Ustra ou Sérgio Fleury espanhol.
É nesse jogo entre o pessoal e o coletivo, o imediato e o histórico, ora abrindo, ora fechando o foco, que O silêncio dos outros busca dar conta das questões formuladas dois parágrafos acima. Sua conclusão, ou talvez mesmo sua premissa, é a de que o passado não está morto. As feridas da história continuam abertas, e silenciar é contribuir para que não cicatrizem nunca.
Já que a lei da anistia de 1977 paralisa a justiça espanhola, sobreviventes da tortura, parentes de vítimas do franquismo e defensores dos direitos humanos buscam outros caminhos. Pelo direito internacional, crimes contra a humanidade não prescrevem e podem ser julgados em qualquer tempo, em distintos tribunais do mundo. Eles levam então o caso a uma juíza argentina, María Servini, que passa a colher depoimentos (ao vivo e por teleconferência) de vítimas e familiares.
O cerne dramático do documentário são esses depoimentos, pois ao mesmo tempo eles compõem um quadro geral da ditadura e expõem os mais diversos destinos individuais. O cortejo de horrores é impressionante: pessoas mortas a pauladas, fuzilamentos em praça pública, valas coletivas, crianças roubadas na maternidade, torturas modernas e medievais.
Sem perder de vista o contexto mundial (por exemplo, a conivência com Franco de figuras como Eisenhower, Nixon e De Gaulle, além do Vaticano e da própria ONU), o olhar dos diretores volta-se sempre para os seres humanos concretos, as vidas pessoais e intransferíveis. Não por acaso, uma das cenas mais tocantes é a da senhora octogenária à beira da vala comum em que uma ossada acabou de ser identificada por exame de DNA como sendo de seu pai assassinado.
Um aspecto perturbador da realidade retratada por esse notável documentário é a sobrevivência, no seio da sociedade espanhola, de uma legião de nostálgicos da ditadura franquista. Um desses fanáticos vandalizou a tiros em 2009 o “Monumento aos esquecidos da Guerra Civil e da Ditadura”, do artista Francisco Cedenilla, um conjunto de quatro enormes figuras humanas de pedra, instaladas ao ar livre no Valle del Jerte. Aqueles corpos nus e anônimos agora têm furos de balas. Cedenilla declarou que os vândalos completaram a sua obra.
“Humor e ditadura” é o subtítulo do documentário de Álvaro Campos, Alê Braga e Claudio Manoel. A ideia era mostrar como, em diversos níveis, o riso foi uma arma de defesa contra o baixo astral do regime militar que vigorou no país entre 1964 e 1985. Com algumas lacunas e um certo desequilíbrio, o filme cumpre esse papel.
Como os três realizadores são oriundos do humor na TV (Claudio Manoel era da trupe do Casseta & Planeta, os outros dois dirigiram programas e séries cômicas), e talvez também porque se trata de uma produção Globo Filmes, com participação da Globo News, é compreensível que o foco principal sejam os programas televisivos humorísticos dos anos 1960 e 1970, com referências também à imprensa (O Pasquim), às pornochanchadas e a grupos de teatro como o Asdrúbal Trouxe o Trombone.
O rico material de arquivo da Globo é um dos trunfos do filme, com trechos de programas humorísticos e entrevistas preciosas de gente como Henfil, Juca Chaves e Paulo Francis, mas talvez seja também um fator de desequilíbrio, pois a todo momento se puxa para a programação da emissora, quase como num Vídeo Show ampliado. Acentua esse lado chapa-branca o formato quadrado das entrevistas, as mais longas delas com próceres globais como Boni e Daniel Filho.
Um exemplo desse desequilíbrio, possivelmente ditado por questões de direitos autorais, é que Ronald Golias é citado por vários entrevistados como nome fundamental do humor do período (“era o ídolo do meu pai”, diz Bruno Mazzeo, filho de Chico Anísio), mas não se exibe sequer um trechinho da “Família Trapo” ou da participação do comediante na “Praça da Alegria”. Ficou de lado também a importante atuação de grupos de música e humor, como o Dzi Croquettes e os paulistas Premeditando o Breque e Língua de Trapo. (Do Premê só restou uma breve fala do músico e ator Wandi Doratiotto, já nos créditos finais.)
Por conta desse viés, Tá rindo de quê? é sobretudo carioca e global. Mas cumpre um papel importante no resgate da cultura popular-industrial na época da ditadura, ao lado de recentes documentários sobre artistas do período (Wilson Simonal, Torquato Neto, Raul Seixas, Antonio Pitanga etc.), sobre o Asdrúbal e o Circo Voador e sobre a pornochanchada (Histórias que o nosso cinema (não) contava, de Fernanda Pessoa).
Um dos temas mais interessantes discutidos ao longo do filme é a relação nem sempre harmoniosa entre o humor político e o humor de costumes, maneiras diferentes de reagir à opressão, mas que frequentemente geraram patrulhas. Para alguns, o humor comportamental (sexo, drogas e rock’n roll) era alienado; para outros, a esquerda tradicional é que era careta. Uns e outros apanhavam dos brucutus, que não achavam graça em nada.
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Como resistir a uma ditadura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU