07 Junho 2024
"O trabalho de Kafka consistiu em tentar varrer, mostrando-nos, toda a camada de mentira e ilusão que sufoca o sopro dessa esperança palpitante de felicidade", escreve Marcello Tarì, pesquisador independente italiano, em artigo publicado por Settimana News, 03-06-2024.
No cerne da obra de Franz Kafka – e, no centenário de sua morte (03-06-1924), parece-me justo afirmá-lo –, há uma meditação ininterrupta sobre a esperança.
Percebo que essa afirmação pode parecer bizarra para muitos, considerando que o nome do escritor praguense se tornou na cultura de massa, ou melhor, no espírito do mundo, sinônimo do contrário, ou seja, de um desespero absoluto e feroz.
Mas uma sentença como essa, emitida anonimamente, porque a massa não tem nome, é exatamente o tipo de julgamento com o qual Kafka se confrontou durante toda a sua vida, que, no seu caso, se confunde inteiramente com a sua escrita. Realmente desesperador é este mundo, essa massa anônima e julgadora, não Kafka.
Nesse sentido, para ele nunca se tratou da esperança entendida como um fátuo otimismo, precisamente a falsa esperança mundana que Kafka se preocupou em destruir pedaço a pedaço, mas daquela compreendida como a potência de um outro tempo, de um futuro tremendamente libertador contra o futuro estagnado de uma triste história prisioneira de si mesma.
O trabalho de Kafka consistiu em tentar varrer, mostrando-nos, toda a camada de mentira e ilusão que sufoca o sopro dessa esperança palpitante de felicidade.
A luta dele, porque de uma luta se trata desde o princípio – aliás, "Descrição de uma luta" é o título do seu primeiro conto que, a meu ver, pode ser entendido como o programa de tudo o que ele escreverá –, é portanto um combate pela esperança.
Neste conto, que se desenrola na noite entre cidade e floresta, rios e rochas, igrejas e vielas escuras, salões chiques e tabernas malcheirosas, ou seja, no deserto que Kafka escolheu atravessar, a esperança é perceptível na espera confiante pelo nascer do novo dia: o personagem-narrador, apesar do cansaço, da incompreensibilidade da existência e da adversidade da história, sente a aproximação da alva radiante da ressurreição do homem e da transfiguração cósmica. Mas, enquanto isso, sabe que deve lutar, contra o absurdo e também contra a sombra de mundo que carrega dentro de si, mesmo sem saber bem o porquê, como e até onde fazê-lo. É apenas uma questão de fé.
Notando apenas, a propósito da luta nas trevas e da espera pela aurora como início de uma nova vida, que o protagonista, em certo ponto, percebe que foi ferido no fêmur, no mesmo ponto em que Jacó foi ferido em sua luta noturna com o Anjo.
Gershom Scholem, o grande historiador da mística judaica, nas primeiras páginas de seu livro sobre o simbolismo da cabala, ao tentar indicar a situação para fazer compreender o que era essa disciplina mística, que se concentra na busca de uma maneira de acessar o conteúdo da Revelação, e, ao mesmo tempo, indicando a crise espiritual da modernidade, não encontra nada melhor do que recorrer a Kafka.
E, para explicar essa referência, recorre a outro autor, antigo e cristão desta vez, Orígenes, que, ao iniciar o comentário ao Salmo 1, relata o pensamento de outro sábio, um rabino precisamente.
Em suma, Scholem desenha quase a cadeia de uma tradição paralela à oficial, a do exílio no mundo, que vai do antigo rabino de Cesareia até Kafka, passando por Orígenes e os cabalistas.
O rabino havia dito a Orígenes que a Escritura é semelhante a um grande palácio em que há muitas salas e diante de cada uma delas há uma chave, só que não é a correta: as chaves se confundiram e, portanto, o trabalho do exegeta ou do místico é encontrar as chaves corretas para cada porta.
Essa dispersão, que priva de sentido uma Lei que, no entanto, permanece vigente, é o significado teológico dramático do exílio em que vive agora a humanidade secularizada e, segundo Scholem, esta é exatamente a situação iluminada pela obra de Kafka que, especificava o historiador, não tem em si nada de negativo, mas ao contrário indica a profundidade não só existencial mas espiritual, que é algo diferente de “religiosa”, da sua obra.
Portanto, o problema kafkiano é dado pela dispersão da Tradição e, consequentemente, pela confusão de todas as coisas: tudo no mundo está diabolicamente fora do lugar.
O deslocamento, de fato, remete ao pecado original e, portanto, ao mal: pode-se dizer que todos os aforismos kafkianos chamados “de Zürau” falam disso. Disso e do paraíso que, insinua Kafka, talvez nunca tenhamos realmente deixado, mas, por causa do pecado, somos incapazes de reconhecer e, por isso, tudo nos parece desviado, inadequado, absurdo.
De fato – lembram ainda alguns sábios judeus – a vinda do Messias consistirá em um pequeníssimo deslocamento de todas as coisas do mundo que as colocará de volta em seu devido lugar, o da origem edênica. Lembro que Walter Benjamin, que escreveu talvez o mais belo ensaio de todos sobre Kafka, tinha bem presente essa interpretação do gesto messiânico.
Não sei realmente se alguém já notou, mas logo no início de O Processo, romance mais célebre de Kafka, há um pequeno mas importante sinal da catástrofe que está prestes a se abater sobre o personagem da novela, ou seja, que todas as coisas no apartamento de K. parecem iguais, na verdade são exatamente as mesmas do dia anterior, mas ligeiramente deslocadas.
Kafka mostra o reverso da lenda rabínica, mostra seu lado negativo, tudo o que o Messias deve redimir. É dessa forma, com essa chave, que é possível entrar no labirinto da obra de Kafka sem se perder. O mundo que ele descreve é o negativo do Reino messiânico, por isso parece sujo, malicioso, incompreensivelmente complicado, malvado até o homicídio insensato.
O mundo é um paraíso deformado pela queda, mas – lembra Benjamin em seu ensaio sobre Kafka – as deformações que o Messias virá um dia a corrigir não dizem respeito exclusivamente ao espaço, elas são deformações do nosso tempo. Uma ordem aparente, a do mundo, remete a uma verdadeira desordem, enquanto uma desordem aparente, a messiânica, remete a uma verdadeira ordem.
Todo o desespero e a vergonha pela desumanidade dessa desordem leva Kafka a um incessante corpo a corpo espiritual e existencial com a injusta disposição das coisas do mundo em um tempo torto, mas, ao mesmo tempo, toda a esperança e a coragem de Kafka estão na certeza de uma ordem cósmica justa que aguarda apenas ser reconhecida, relembrada, louvada em outro espaço-tempo, o da Redenção.
Até lá, é como se nada tivesse realmente acontecido, dirá ele falando dos movimentos revolucionários espirituais. Como acessar essa outra temporalidade? Como esperar contra toda esperança? Esses são os dilemas de Kafka, e evidentemente também os nossos.
Muitas vezes me recordei de uma conversa de Kafka com seu amigo Max Brod, em que este lhe pergunta se, afinal, havia uma esperança. Kafka, com sua habitual ironia dolorosa, respondeu que claro que há uma esperança, uma grandíssima esperança, apenas não para nós.
Pessoalmente não entendo esse não para nós em um sentido de fechamento e condenação definitiva, que é a interpretação banal e no fim confortável que o mundo daria, mas como um “não para nós assim como somos”, ou seja, que é necessária uma descontinuidade, uma ruptura, uma metamorfose, uma mudança radical, ou seja, aquele deslocamento existencial que, na tradição cristã, estamos acostumados a chamar de conversão. É apenas essa destituição do ego que nos faria ver as coisas de maneira diferente, como realmente são ou deveriam e poderiam ser, e não mais como nos aparecem no espelho deformante do mundo.
Scholem, talvez compreensivelmente do seu ponto de vista, não contou tudo o que disse Orígenes, e que a nós, no entanto, deveria interessar (cf. PG 12, 1079-1080), ou seja, que o palácio tem uma chave externa para abrir a Porta central e então alcançar as várias salas cujas chaves foram jogadas de forma desordenada. Essa chave principal é – segundo Orígenes – o Espírito Santo e, para corroborar essa sua hipótese, cita São Paulo: dessas coisas nós falamos, com palavras não sugeridas pela sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito (1Cor 2,13).
Em suma, sem a ajuda do Espírito não é nem mesmo possível entrar no Palácio, muito menos então encontrar a chave correta para cada uma de suas salas. Mas se o Espírito é amor, então essa é a única chave que permite abrir a Porta de todas as portas; amor que é exatamente o que Kafka procurou durante toda a sua existência, lutando e esperando contra toda esperança. Para se convencer disso, basta ler seus Diários, suas cartas a Milena e até mesmo sua terrível Carta ao pai.
A Porta – nos disse Jesus – é Ele mesmo e é através Dele, guiados pelo Espírito, que podemos acessar a verdade do Reino. Kafka acredito que percebia mais de algo desse mistério, por exemplo, quando, respondendo a uma pergunta de seu jovem amigo Janouch, disse: Cristo é um abismo de luz. É preciso fechar os olhos para não cair nele.
Muito bem então, enquanto saudamos e agradecemos nosso irmão Franz Kafka, não nos resta senão pedir ao Espírito que abra nossos olhos.
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Kafka e sua esperança dispersa. Artigo de Marcello Tarì - Instituto Humanitas Unisinos - IHU