24 Mai 2024
"O seu pedido de mandados de prisão para os líderes do Hamas e do governo israelense é um ato revolucionário que ridiculariza as narrativas com as quais o Ocidente se refestelou nos últimos vinte anos. De repente, deparamo-nos com verdades desagradáveis: o fosso entre autarquias e estranhas 'democracias' não é tão amplo como pensávamos; mesmo um governo regularmente eleito pode cometer 'crimes contra a humanidade'; 'os nossos valores', a 'nossa civilização' são fórmulas bombásticas mas vazios, quando não pretextos para estratégias repugnantes...", escreve Guido Rampoldi, em artigo publicado por Domani, 22-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Escocês, filho de emigrantes paquistaneses, formado em Oxford, casado com uma advogada malaia, irmão de um ex-deputado do Partido Conservador britânico, o procurador do Tribunal Penal Internacional Karim Khan tem o perfil “global” e fora-dos-esquemas adequado ao papel que está desempenhando.
O seu pedido de mandados de prisão para os líderes do Hamas e do governo israelense é um ato revolucionário que ridiculariza as narrativas com as quais o Ocidente se refestelou nos últimos vinte anos. De repente, deparamo-nos com verdades desagradáveis: o fosso entre autarquias e estranhas “democracias” não é tão amplo como pensávamos; mesmo um governo regularmente eleito pode cometer “crimes contra a humanidade”; “os nossos valores”, a “nossa civilização” são fórmulas bombásticas mas vazios, quando não pretextos para estratégias repugnantes... E ao mesmo tempo os pedidos de prisão para os líderes do Hamas, obrigam as esquerdas populistas e supostamente alternativas, os terceiro-mundistas da vez, os libertários de meia-tigela a lidar com evidências não menos incômodas.
Aparentemente, a justiça internacional não é o instrumento do império estadunidense e do "novo colonialismo”, como se afirma em Moscou. Aparentemente, os oprimidos podem ser semelhantes ou piores que os opressores, e não há injustiça sofrida que os absolva quando atacam os indefesos.
Tudo isso remete à ideia liberal, e se quisermos muito “ocidental”, de que as pessoas devem ser julgadas pelas suas ações, não pelas bandeiras que desfraldam, pelas religiões que praticam ou pelas “civilizações” que pretendem representar. Pode haver fatores atenuantes, mas que não isentam. No final, um crime desprezível continua a ser um crime desprezível, não importa quem o cometa.
De forma que Karim Khan fez escola ao combinar os pedidos de prisão para o primeiro-ministro Netanyahu e para Sinwar o terrorista. Por moderação senil, exigências diplomáticas ou cálculos eleições Biden protestou ("ultrajante"), Londres, Roma e Berlim objetaram ("Inoportuno"). Mas outros governos da União, por exemplo Paris, defenderam de fato o Tribunal Penal Internacional. Produto essencialmente europeu, nasceu em 1998 também por impulso da Itália (governo Prodi, Ministro da Justiça Conso), tanto que hoje o seu código de referência é chamado de Estatuto de Roma.
No entanto, não se poderia dizer que a Itália se lembre aquele acontecimento com orgulho. Mais exatamente não se lembra de forma alguma. E, a julgar pelas reações, parece que a iniciativa do procurador Karim Khan tenha causado na Itália principalmente constrangimento. Desnorteando aquela somatória de direitas e de esquerdas que descreve o Israel do governo Netanyahu como "a única democracia na área". Ficou em silêncio até Bonino, que participou do nascimento do Tribunal, mas hoje se alia a Renzi, devoto ao amigo Bibi. De forma que no final ressoam especialmente as gritarias da Brigada Hasbara, o círculo de jornalistas que por consonância ou por conveniência, está sempre alinhado com a direita israelense. No futuro próximo eles irão antecipar as táticas em que o governo Netanyahu se baseará para confrontar a justiça internacional.
Será tentada alguma manobra para induzir o Tribunal a declarar-se na impossibilidade de continuar a investigação: é possível que tenha sucesso. Aparecerão retratos corrosivos de Karim Khan. Vai ser omitido o único aspecto do seu perfil que parece significativo nessas circunstâncias: seja qual for a sua fé, o procurador vem do Ahmadiyya, um movimento islâmico que está entre os mais perseguidos do planeta (especialmente por alguns regimes islâmicos, por ser considerado herético).
Estar exposto à perseguição é terrível, mas tem uma vantagem: alimenta uma paixão pela justiça e pela liberdade nunca ingênua, porque nunca separada de uma razoável desconfiança pelas massas. Bem enraizada há séculos no Judaísmo, é essa qualidade que acabará por salvar Israel do seu pior inimigo, a maioria dos israelenses. Mas será necessário um processo de autoconsciência, que, aliás, parece ter começado, caso contrário não leríamos (no Haaretz) manchetes como as seguintes: “O que acontecerá quando o Holocausto não puder mais impedir que o mundo olhe para Israel pelo que é?". O artigo começa assim: “Para quem quiser ver, a verdade já era bastante clara em 1955: ‘Tratam os árabes, aqueles que ainda estão aqui, de uma forma que seria suficiente por si só a induzir todo o planeta a manifestar-se contra Israel", escrevia Hannah Arendt".
Se estudantes italianos dissessem coisas semelhantes, seriam imediatamente crucificados pela massa opinionista por serem antissemitas, ignorantes, pró-terroristas, nazistas, imbecis, quinta-colunistas de Hamas, ocidentais renegados, portanto traidores. Parece que esses baderneiros – assim nos informam – repitam constantemente o slogan “Do rio ao mar, a Palestina será livre”. Muitas vezes nos mapas em uso nas escolas israelenses o espaço "do rio (o Jordão) ao mar (o Mediterrâneo)" é um continuum em que a Cisjordânia aparece como território de Israel. O fato que de repente naquele vazio apareçam os palestinos provoca reações suficientes para demonstrar que o problema não é apenas Netanyahu.
Aqui está Yehuda Shlezinger, colunista do Israel Hayom, jornal de grande circulação. Questionado por uma famosa rede de TV sobre um filme que mostrava palestinos tomando banho no mar de Gaza, Shlesinger pôde comentar tranquilamente: “Aquela gente merece a morte. Uma morte dura. Uma morte com agonia. E em vez disso os vemos indo para a praia. Deveríamos ver muito mais vingança por lá. Muitos mais rios de sangue."
Segundo Megan Stack, correspondente de longa data do New York Times em Jerusalém, Shlesinger testemunha um sentimento comum definido por vários indicadores: “Uma linguagem, usada por políticos e militares, que desumaniza (os palestinos) e promete aniquilação. As sondagens mostram um amplo apoio a políticas que infligem devastação e fome aos habitantes de Gaza. Selfies de soldados desfilando em bairros esmigalhados pelas bombas. A repressão de toda mínima forma de dissenso entre os palestinos."
Gideon Levy, jornalista do Haaretz, comenta: “É muito mais fácil descarregar tudo sobre Netanyahu, o homem das trevas. Mas (a verdade é que) as trevas estão em toda parte."
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A decisão sobre Gaza é revolucionária. O constrangimento do Ocidente e dos pró-Hamas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU