Novo regime climático e a insistência na exploração petrolífera em Roraima: um desastre anunciado. Artigo de Gabriel Vilardi

Manifestação dos Povos Indígenas I Foto: Hellen Loures/Cimi

21 Mai 2024

A Terra de Makunaima não é "terra de ninguém"! Com uma longa trajetória de luta pela defesa de seus direitos e dos seus territórios, os Povos Wapichana e Macuxi não aceitarão passivamente que decidam sobre sua terra ancestral à sua revelia. Como fazem há séculos, os filhos da resistência estarão vigilantes e de prontidão contra qualquer ameaça ao seu chão sagrado. Atacar uma das comunidades indígenas significa declarar guerra contra todas as demais, que se levantarão em solidariedade aos parentes ameaçados pela mão invisível e insaciável do mercado. O tempo do silenciamento já terminou!

O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo.

“A América era um vasto império do Diabo, de redenção impossível ou duvidosa, mas a fanática missão contra a heresia dos nativos se confundia com a febre que, nas hostes da conquista, era causada pelo brilho dos tesouros do Novo Mundo”, certa feita escreveu Eduardo Galeano em As Veias Abertas da América Latina. “Bernal del Castillo, soldado de Hernán Cortez, escreve que eles chegaram à América ‘para servir a Deus e a Sua Majestade, e também por haver riquezas”[1], acrescenta o pensador uruguaio. Passados mais de quinhentos anos da chegada dos europeus “muito mudou para que tudo permanecesse igual” e a Amazônia continua sendo alvo da cobiça colonizadora.

Na última quarta-feira (15), o jornal Folha de Boa Vista divulgou que o Ministério de Minas e Energia irá dar o sinal verde para a exploração de petróleo na bacia sedimentar do rio Tacutu, em Roraima. A informação foi confirmada ao deputado federal Gabriel Mota (Republicanos-RR), após reunião realizada com os secretários-executivos das pastas de Minas e Energia e do Meio Ambiente, Arthur Cerqueira Valério e João Paulo Capobianco, respectivamente. Segundo as informações, as autorizações devem sair em 30 dias, liberando o leilão de concessão dos dois blocos, localizados no município de Bonfim.

Além de toda a tragicidade de autorizar a exploração de petróleo na Amazônia, com os altos impactos ao meio ambiente em uma região de grande biodiversidade, no meio do caminho estão as comunidades indígenas da Serra da Lua. Apenas no município de Bonfim existem 17 comunidades dos povos Wapichana e Macuxi, com cerca de 6 mil pessoas. Sem mencionar as consequências indiretas às demais comunidades, seriam diretamente atingidas as comunidades Bom Jesus e Jabuti, habitadas por 700 indígenas.

O mundo vive uma emergência climática sem precedentes, enquanto o Sul do Brasil é caoticamente assolado por inundações nunca antes vistas. Ainda assim não parece ser suficiente para que o paradigma antropocêntrico comece a dar lugar ao paradigma ecocêntrico. Como uma das poucas vozes lúcidas com autoridade moral para cobrar por ações efetivas, o Papa Francisco tem sido um profeta que clama no deserto:

“Mas, com o passar do tempo, dou-me conta de que não estamos reagindo de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe, está-se esmoronando e talvez aproximando de um ponto de ruptura. Independentemente desta possibilidade, não há dúvida que o impacto da mudança climática prejudicará cada vez mais a vida de muitas pessoas e famílias. Sentiremos os seus efeitos em termos de saúde, emprego, acesso aos recursos, habitação, migrações forçadas e noutros âmbitos”. [2]

O próprio presidente Lula foi eleito com um discurso de comprometimento com a proteção da Amazônia, dizendo que o país iria assumir a liderança no enfrentamento ao aquecimento global. Entretanto, seu governo não tem se empenhado com afinco em frear o Pacote da Destruição Ambiental que avança vorazmente no Congresso. Fundamentais na preservação das florestas, os povos originários perderam a paciência com a atual administração federal. Depois de um ano e meio de governo, somente 10 Terras Indígenas foram demarcadas, enquanto o Executivo sucumbe a negociações espúrias com os inimigos históricos dos Povos Indígenas.

Ao invés de apostar na descarbonização da economia, em modelos alternativos e sustentáveis de geração de energia, o Brasil insiste na exploração de combustíveis fósseis em pleno coração da Amazônia. Recentemente, a nova presidente da Petrobrás, Magda Chambriard, defendeu que Lula intervenha no Ibama para autorizar a exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas, uma vez que a demora na concessão da licença ambiental pode “condenar o Brasil à estagnação”. Então a executiva da maior empresa brasileira acha que o “desenvolvimento” econômico deve avançar a qualquer custo?

Não bastassem os defensores do neoliberalismo dos partidos de centro-direita da coalizão governamental, a linha desenvolvimentista do PT parece estar ganhando cada vez mais força no governo. Altamente problemática, foi essa mistura ideológica que permitiu a catastrófica construção de Belo Monte (PA), no governo Dilma. Insistirá mais uma vez o governo nesse caminho ecocida? Já não foram suficientes os absurdos ataques do desgoverno anterior ao meio ambiente?

Na Exortação Apostólica Laudate Deum, sobre o novo regime climático, o pontífice não deixa margem para dúvidas quanto às hipocrisias dos discursos econômicos que querem se sobrepor ao bem-estar das pessoas e ao cuidado com a Casa Comum:

“Diz-se também, com frequência, que os esforços para mitigar as alterações climáticas, reduzindo o uso de combustíveis fósseis e desenvolvendo formas de energia mais limpa, levarão à diminuição dos postos de trabalho. Quando o que está a acontecer é que milhões de pessoas perdem o emprego devido às diversas consequências da mudança climática: a subida do nível do mar, as secas e muitos outros fenómenos que afetam o planeta deixaram muitas pessoas à deriva. Aliás a transição para formas renováveis de energia, quando bem gerida, assim como os esforços para se adaptar aos danos das alterações climáticas, são capazes de gerar inúmeros postos de trabalho em diferentes setores. Por isso é necessário que os políticos e os empresários se ocupem disso imediatamente”. [3]

Há quase uma década a República Cooperativa da Guiana, vizinha de Roraima, descobriu suas reservas petrolíferas e desde 2019 começou a explorá-las. Os investimentos estão na ordem das dezenas de bilhões de dólares. Apesar do crescimento dos índices econômicos, pouco tem chegado efetivamente para população. Conforme inúmeros estudos, mais do que uma oportunidade de melhora no desenvolvimento socioeconômico de um país, a descoberta de grandes quantidades de petróleo pode ser uma maldição.

Além do mais, existe um fator crucial nessa equação que parece ter sido desconsiderado. O que pensam as comunidades indígenas que serão afetadas caso a exploração seja autorizada? O país é signatário da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que estabelece, dentre outros, o direito à consulta livre, prévia e informada dos Povos Indígenas sobre quaisquer medidas administrativas e legislativas que impactem seu território e seu modo de vida. A decisão final possui efeito vinculante, ou seja, deve ser observada pelo Estado. Longe de ser, pois, mera formalidade.

Infelizmente, tal direito vem sendo sistemática e recorrentemente violado, dando espaço aos interesses econômicos de uma minoria poderosa, dona do capital. Tantas vezes, as consultas acontecem de forma açodada e sem os devidos esclarecimentos necessários. Propostas ilusórias e muita pressão sob as lideranças mais críticas, por parte dos políticos e empresários, são as estratégias mais comuns nessas ocasiões. Outra ação bastante utilizada é a divisão das comunidades, mediante a cooptação de alguns membros com irrisórias vantagens pessoais. Enfraquecido o senso comunitário, esses povos ficam vulneráveis às falsas promessas, como há pouco tempo ocorreu com o Povo Mura, no Amazonas.

Vale anotar que a etnorregião Serra da Lua possui um protocolo de consulta próprio, aprovado pela Assembleia Geral dos Tuxauas, que define um procedimento específico a ser observado pelo governo, nas medidas que impactem seu estilo de vida. E pelo que consta, mesmo com a movimentação ávida de político locais, as comunidades indígenas seguem completamente alheias às decisões tomadas nos palácios de Brasília.

Assim, restam inúmeras e inquietantes dúvidas que precisam ser imediatamente esclarecidas pelo poder público, com a fiscalização atenta do Ministério Público Federal. Com que legitimidade o Ministério de Minas e Energia pretende autorizar a exploração de petróleo sem a consulta prévia, livre e informada das comunidades indígenas impactadas? O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) foram ouvidos e estão acompanhando o processo? As organizações indígenas foram envolvidas nessa tomada de decisão ou apenas foram considerados os interesses de inescrupulosos empresários e da anti-indígena classe política local?

O Brasil assiste estarrecido à destruição das águas no Rio Grande do Sul. Centenas de mortos, milhares de casas submergidas, indústrias comprometidas, vidas interrompidas. A vida dos gaúchos não é mais a mesma. Os danos e as sequelas ainda estão por serem avaliados e vão perdurar por muito tempo. Mas uma certeza emerge com intensidade: não se trata de mera “tragédia” incontrolável da natureza. As ações e omissões humanas são evidentes e as responsabilidades precisam ser assumidas.

As leis ambientais no estado foram flexibilizadas e o Pampa perdeu 3 milhões de hectares de vegetação nativa ou quase um terço do seu tamanho original de 1985 a 2022. Por outro lado, as ações de mitigação da emergência climática e o enfrentamento das inundações foram deixados de lado. Apesar dos alertas dos cientistas, haviam “outras agendas”, segundo declarações do governador Leite. Até quando os alertas continuarão a ser deliberadamente ignorados?

Após o choque inicial, corre-se o risco de tudo voltar a ser como antes até a próxima “tragédia ambiental” que pegará a todos de “surpresa” novamente. Se não houver um novo pacto social com mudanças profundas no modelo de desenvolvimento, as medidas adotadas não passarão de mero jogo de encenação, como aponta o Papa Francisco:  

“Não obstante as numerosas negociações e acordos, as emissões globais continuaram a subir. É verdade que se pode argumentar que, sem tais acordos, teriam aumentado ainda mais. Mas sobre outras questões ambientais, onde houve vontade, foram alcançados resultados muito significativos, como no caso da proteção da camada de ozono. Já quanto à necessária transição para energias limpas, como a eólica, a solar e outras, abandonando os combustíveis fósseis, não se avança de forma suficientemente rápida e, por conseguinte, o que está a ser feito corre o risco de ser interpretado como mero jogo para entreter”.[4]

A anuência a exploração de petróleo em um bioma tão sensível por parte de um Ministério do Meio Ambiente comandado por uma das maiores ambientalistas do planeta indica um sinal de alerta perigoso. O discurso internacional parece um e as medidas internas para mitigar o aquecimento global vão noutro sentido. As pressões indecentes e as armadilhas políticas de autoridades e empresários que só pensam em quanto vão lucrar sempre existiram. Mas Marina Silva possui prestígio e respaldo suficiente junto ao presidente para impedir essas decisões erráticas contra o meio ambiente?

Ser forçada a concordar com a exploração de petróleo na Amazônia será violento. Se essas decisões baseadas em um modelo que já se esgotou há muito perdurarem negando tudo aquilo que acredita, só caberá à discípula de Chico Mendes, mais uma vez, optar pela coerência com sua longa história e deixar o ministério, como fez em 2008, no segundo governo Lula.

A Terra de Makunaima não é "terra de ninguém"! Com uma longa trajetória de luta pela defesa de seus direitos e dos seus territórios, os Povos Wapichana e Macuxi não aceitarão passivamente que decidam sobre sua terra ancestral à sua revelia. Como fazem há séculos, os filhos da resistência estarão vigilantes e de prontidão contra qualquer ameaça ao seu chão sagrado. Atacar uma das comunidades indígenas significa declarar guerra contra todas as demais, que se levantarão em solidariedade aos parentes ameaçados pela mão invisível e insaciável do mercado. O tempo do silenciamento já terminou!

Por isso, antes de qualquer autorização para a concessão de blocos de petróleo na bacia do rio Tacutu, em Roraima, é inadiável uma ampla e respeitosa consulta aos Povos Indígenas que habitam a região. Sem uma discussão profunda e bem fundamentada sobre qual futuro esses povos sonham para os seus filhos e filhas, nenhum projeto dessa envergadura pode avançar. Afinal, apostar em um modelo fracassado de exaurimento do planeta não trará nenhum progresso, ao contrário, levará a mais destruição. Mesmo sendo tarde, os Povos Indígenas muito podem contribuir rumo a uma sociedade do Bem-Viver. Para tanto é preciso coragem para dizer, como Sepé Tiaraju: “alto lá! Esta terra tem dono!”. Por uma Amazônia livre de petróleo!

Notas

[1] GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2021. p. 29.

[2] PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Laudate Deum. nº 2. Disponível aqui. Acesso em: 17/05/2024.

[3] Idem, nº 10. 

[4] Id., nº 55. 

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