"A fé na Ascensão não é aceitar que uma pessoa “subiu” aos céus. É aceitar que Jesus é o sentido de tudo, a revelação de Deus e do sentido da existência: Ele é o Senhor."
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do Domingo da Ascensão do Senhor, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Marcos 16,15-20.
Eis o texto.
“Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa-Nova a toda criatura” (Mc 16,15)
Ressurreição, Ascensão, sentar-se à direita de Deus, envio do Espírito Santo, são “mistérios” pascais.
O Mistério Pascal é tão rico e tão denso que não podemos abarcá-lo somente com uma imagem; por isso precisamos desdobrá-lo para poder experiênciá-lo de uma maneira mais profunda.
Celebrar a Ascensão de Jesus não significa, para os cristãos, algo diferente que celebrar sua Ressurreição. São só diferentes nomes para referir-se à mesma realidade: que, ao morrer, tanto Jesus como nós, mergulhamos na Vida de Deus.
Lucas, em seu Evangelho, põe todas as aparições e a Ascensão no mesmo dia. No entanto, nos Atos dos Apóstolos, ele fala de quarenta dias de permanência de Jesus com seus discípulos, provavelmente como um modo de indicar que eles haviam recebido a formação necessária para levar adiante a missão (“quarenta dias” com o mestre era o tempo que o discípulo precisava para alcançar uma preparação adequada).
A fé na Ascensão não é aceitar que uma pessoa “subiu” aos céus. É aceitar que Jesus é o sentido de tudo, a revelação de Deus e do sentido da existência: Ele é o Senhor.
Nos relatos da Ascensão, normalmente nos preocupa muito saber o lugar de onde Jesus subiu aos céus e para onde Ele foi; mas o que importa é que nosso destino é o coração de Deus e Jesus revela a grandeza do ser humano capaz de alcançar a divindade.
Pela sua Ascensão, Jesus Cristo acolheu tudo quanto é humano e desta maneira tudo redimiu.
Descobri-lo dentro de nós e nos outros é muito exigente e comprometedor. É muito mais cômodo continuar “olhando para o céu” e não sentirmos implicados com aquilo que está acontecendo ao nosso redor. Por isso, Ascensão é missão; é “descer” da montanha para as periferias da nossa Galileia (periferias existenciais, sociais, religiosas...) e ali prolongar a atividade libertadora de Jesus.
A Ascensão ocorre toda vez que, vivendo o Presente, transcendemos os limites temporais e nos experimentamos “ser em Deus”. Nestes momentos, nos alcança a Plenitude e saboreamos a Alegria.
Ao mergulhar na realidade, interna e externa, nos esbarramos n’Ele, o Ressuscitado.
A Ascensão do Ressuscitado, portanto, nos torna encarregados da missão de “fazer discípulos” à qual Ele, em sua glória, preside. Nós é que devemos reinventá-la a cada momento.
Celebrando a glorificação de Cristo, tomamos consciência de nossa própria vocação à glória.
A Ascensão é o lugar onde vai acontecer uma mudança profunda na vida de cada seguidor de Jesus: partimos para a missão; deixamos a Terra Santa, como os Apóstolos e, até o fim da vida, seremos os peregrinos de Cristo. Somos arrancados de tal experiência para adentrar-nos em um caminho de seguimento de horizontes desconhecidos, mas centrados no compromisso apostólico da missão na e da Igreja. “Passamos” da particularidade de um lugar para a universalidade da missão. A Ascensão pede de todos nós uma “amplitude de visão”, rompendo com tudo aquilo que atrofia e limita, nas diferentes dimensões da vida.
Saber-se continuadora da missão de Jesus, sustentada na bondade e na misericórdia do Abba e impulsionada pela força da Ruah: esta foi a experiência central da primitiva comunidade cristã em seu novo caminho, depois da Páscoa.
Talvez por isto a pergunta dirigida aos discípulos no momento da Ascenção de Jesus: “por que ficais aqui parados, olhando para o céu?” (At 1,10). A pergunta tira-os da imobilidade e os leva de volta a Jerusalém, ao lugar onde começarão a construir a grande comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus. A pergunta os situa no lugar onde encontrarão, nesta vida, o “céu” que Deus quer presenteá-los.
Infelizmente, esta foi a eterna tentação: muitas igrejas e inúmeros cristãos, plantados, quietos, imóveis, ficaram olhando o “céu” durante séculos, com os braços cruzados. Pouco tinham a fazer neste mundo, além de resignar-se e esperar; seu campo de atuação não era o aqui e agora, senão o mais além. O mundo era “um vale de lágrimas” e a vida se definia como situação de passagem, espera de amanheceres que não dependiam deles, vale de sofrimentos sem consolo, morada do desencanto...
Ao contemplar a Ascensão de Jesus, muitos cristãos sentiam uma grande vontade de “subir” com Jesus, de fugir, de abandonar o mundo da violência, da injustiça, da desigualdade social, da fome, da violência... Diante da impossibilidade de “subir” com Ele, para além de nosso mundo caótico, eles se retiraram à vida privada, ao individualismo religioso, ao ritualismo, à salvação de sua alma, aos desertos, aos mosteiros, aos templos... para rezar, fazer penitências e mortificações, enquanto aguardavam a “segunda vinda” de Jesus.
Assim nasceu a “teologia do desencanto com o mundo”, como uma falsa leitura da Ascensão de Jesus.
Ainda hoje, são muitos aqueles que continuam olhando o céu, parados, fechados numa prática religiosa alienante, devocional e estéril, vivendo uma espiritualidade tóxica, distantes do compromisso com a transformação deste velho mundo. Também eles e elas merecem a reprimenda dos Atos dos Apóstolos: “Galileus, por que estais aí plantados, olhando o céu” (At 1,11).
A Ascensão de Jesus, curiosamente, é o contrário do movimento de “subida” ao céu; é um apelo a “descer”, a retornar à cidade, a deixar as alturas, os montes e as nuvens. É preciso olhar a terra, é preciso mobilizar as mãos em favor da mesma obra de Jesus, verdadeira sinfonia incompleta.
O cristão que tem os olhos fixos em Jesus também saberá olhar o chão, fazendo-se presente, de maneira cristificada, na realidade cotidiana. Esta é a desafiante missão de todo(a) seguidor(a) de Jesus: submergir-se na realidade, fazer-se cidadão(ã), “mundanizar-se”, unir-se a outros, lançar-se a gritar pelas ruas e praças que Jesus tinha razão e que seu projeto de humanização ainda é realizável, que ainda é possível recompor este velho quebra-cabeças da família humana, verdadeira Babel de egoísmo e falta de solidariedade, e acabar com esta onda de desigualdade, violência e miséria.
Construir um mundo de irmãos e não de “soberanos”: este é o desafio e a missão de todo cristão; o movimento despertado pela Ascensão significa um verdadeiro apelo a olhar o chão da vida e descer à realidade até transformá-la por dentro.
Assim fez Jesus que, na sua encarnação, vida e morte, desceu, misturou-se com o mundo, fez-se solidário com todos os sofredores da história.
Uma igreja fechada, entrincheirada sobre si mesma, é uma igreja assustada que continua vivendo no cenáculo. Jesus tirou seus seguidores do templo, dos cenáculos e das estruturas eclesiásticas petrificadas: “ide por todo o mundo”.
Tal apelo não faz referência somente a uma questão geográfica, mas humana: ide por todas as culturas, raças, crenças, trabalhe pelo diálogo ciência e fé, situações políticas e compromisso evangélico, anúncio da Boa Nova e cultura.
A evangelização implica uma dinâmica missionária de desinstalação, de agilidade e criatividade, de esperança.
A ascensão aos céus passa pela “descida aos infernos” da desumanização. Jesus, na sua encarnação, vida e morte, desceu ao mais profundo da condição humana, da miséria e da dor, da injustiça e da violência...
Nossa Ascensão passa pela descida ao baixo mundo dos empobrecidos, deprimidos, pisoteados, violentados, marginalizados; também é preciso descer às nossas próprias profundezas, marcadas, muitas vezes, por pesadas culpas, angústias, traumas e feridas. É preciso, em primeiro lugar, levar a boa-notícia do evangelho às dimensões esquecidas e excluídas de nossa vida interior.
Para meditar na oração:
Para entrar no fluxo da Ascenção de Jesus é preciso, antes, “descer” até às profundezas de seu ser, até sua Galileia interior, abrindo espaço para que, também aí, chegue a luz do Evangelho.
Iluminado(a) pela Boa Notícia, “suba” em direção ao serviço e o compromisso com aqueles que estão à margem.
É preciso construir o “céu” neste chão da vida; sobre esta terra, no menor de nossos atos de amor, no menor de nossos gestos de gratuidade, a eternidade já está presente. Que esta eternidade seja saboreada desde agora.